Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, novembro 18, 2010

Vendemos comida. E daí?: Carlos Alberto Sardenberg

O Globo - 18/11/2010


Cruzamento de melancia com abóbora, dá o quê? Dá melancia, mas de um
tipo mais resistente. Mas se você estiver interessado em plantar essas
melancias, não precisa se preocupar com isso. A variedade já está
disponível no mercado, mais exatamente em Nehalim, Israel, no centro
de produção da companhia Hishtil.

Agricultura contemporânea é isso. Pura pesquisa e tecnologia. Deixa-se
quase nada por conta da natureza. Aquela companhia israelense, por
exemplo, não produz sementes, nem grandes plantações. Compra as
sementes e as cultiva em áreas que são quase um laboratório, com tudo
controlado (a terra, quantidade de água, nutrientes, tempo de
exposição ao sol e, claro, os enxertos). Ao cabo de algumas semanas -
prazos fixos, conforme a variedade - a produção está "pronta".

São mudas em, digamos, montinhos de terra, uma a uma. O cliente leva
aquilo e planta em suas terras.

Nada fica ao acaso. É produção padronizada, planejada e controlada
pelos computadores, sobencomenda e com data certa de entrega. Como se
fosse uma produção industrial.

E eis por que estamos falando disso. Muita gente no Brasil está
incomodada com a grande expansão do agronegócio nacional, também um
prodígio da pesquisa e da inovação tecnológica. A exportação de
alimentos, em extraordinária expansão, mudou a estrutura das contas
externas brasileiras, ao trazer bilhões de dólares que foram parar, em
grande parte, nas reservas do Banco Central. De eterno devedor, o
setor público brasileiro passou a credor em dólares - circunstância
que permitiu passar pela crise financeira global.

O crescimento do agronegócio foi de tal ordem que reduziu o peso
relativo da indústria tradicional no comércio externo brasileiro.
Mesmo com o real valorizado, mesmo com o elevado custo Brasil, os
produtos agrícolas brasileiros foram competitivos e ganharam mercados
globais.

Mas é isso que a gente vai ser, vendedor de alimentos? - tal é o
incômodo. Essa bronca vem deideologia do passado. A velha teoria dizia
que os países subdesenvolvidos só ficariam ricos com a
industrialização, pois produtos agrícolas e minérios, as commodities,
ficariam cada vez mais baratos, por serem, digamos, banais, fáceis de
fazer e de extrair. Em compensação, os preços de manufaturas, com toda
sua tecnologia e valor agregado, ficariam cada vez mais altos.

Aconteceu o contrário. As manufaturas - as básicas, geladeira, fogão,
televisores, carros - ficaram cada vez mais baratas, em grande parte
por causa da inundação de produtos chineses. Além disso, ficou fácil
fazer: qualquer um monta um computador. O valor se deslocou para a
ideia, a criação, o design, o marketing.

Olhem na parte de trás de um iPhone. Está escrito: Desenhado pela
Apple na Califórnia - montado na China. Desagregue-se o preço do
celular e se verificará que a maior parte do dinheiro fica na
Califórnia.

No outro lado de nossa história, os alimentos ficaram cada vez mais
caros, por causa da demanda crescente dos emergentes, em especial de
China e Índia. Reparem: nos países já ricos, ganhos derenda adicionais
não levam a um aumento no consumo de alimentos. Simples: as pessoas já
comem o suficiente, até demais.

Considerem a China: a renda per capita vai de mil dólares para oito
mil - e aumenta o consumo decarne, leite, chocolate, biscoito, arroz.

Preços de alimentos em alta estimularam o plantio e, especialmente, os
investimentos em tecnologia para que se pudesse retirar mais produto
das mesmas terras ou de terras até então improdutivas. Como foi o caso
de cerrado brasileiro, onde não crescia nada e de onde hoje sai a soja
que domina mercados mundiais. Pode-se dizer que a soja de lá e o
próprio terreno foram "inventados" pelaEmbrapa.

Todos os cenários indicam que o mundo emergente continuará em
expansão, de modo que a demanda por alimentos será crescente.
Considerando os limites de espaço e as restrições ambientais, só
haverá uma saída para alimentar o mundo: tecnologias, inovação,
ciência e pesquisa.

Ora, como Israel, o Brasil já dispõe de tecnologia e tem conhecimento
e capacidade para continuar inovando, se o pessoal do ramo não for
bloqueado por ideologias velhas. E, ao contrário de Israel, o Brasil
tem abundância de recursos naturais. Ou seja, podemos inventar a
melancia (ou a soja) eplantar milhões, para o mundo.

Resumo da ópera: o país precisa entender que produzir alimentos será
simplesmente lucrativo eestratégico. Não podemos atrapalhar o
agronegócio.

(OK, fazemos o hedge: claro que todas as ressalvas ambientais precisam
ser respeitadas, mas é preciso buscar soluções que combinem a
preservação e a restauração com uma sólida produção dealimentos).

Isso não quer dizer que dispensamos a indústria, a manufatura. Há um
argumento essencial: o país,em algumas décadas, terá 150 milhões de
trabalhadores. Será preciso arranjar emprego para todaessa gente, o
que será impossível sem uma indústria desenvolvida.

Mas também aqui precisamos entender qual a indústria do século 21 (uma
delas será certamenteaquela ligada a alimentos, no que o Brasil pode
ter boa posição). Se a escolha for, por exemplo, por montar iPhones,
estaremos de novo no lado fraco, sem valor. É por isso que a China
coloca muito dinheiro em compra de terras e pesquisa de alimentos,
energia renovável (no que o Brasil também pode ser campeão) e novos
produtos industriais.

Arquivo do blog