O ministro da Fazenda diz que, se a CPMF
for aprovada, o governo vai anunciar a redução
de tributos "no dia seguinte"
Marcio Aith
Lailson Santos | "Ninguém mais quer saber de déficit público e inflação. Se no futuro for eleito um presidente irresponsável, ele terá de se submeter às regras do jogo ou será ‘impichado’ " |
Guido Mantega era, até pouco tempo atrás e para quem desconhecia suas ligações antigas com o presidente Lula, o patinho feio entre os economistas petistas. Não tinha a verve do senador Aloizio Mercadante nem a simpatia professoral do acadêmico Paul Singer. Quando assumiu o posto de principal assessor econômico na campanha petista, em 2002, imaginava-se que seria o ministro da Fazenda. Foi preterido em favor do médico sanitarista Antonio Palocci. Restou-lhe o Ministério do Planejamento, depois a presidência do BNDES. O comando da economia caiu em seu colo em 2006, depois dos escândalos que vitimaram Palocci. Desde então, Mantega imprimiu à economia (e aos gastos sociais) um ritmo mais veloz – segundo ele, típico do "social-desenvolvimentismo", modelo que caracterizaria a segunda fase do programa econômico de Lula e, na visão dele, o fator principal do momento virtuoso da economia. Nos últimos meses, ele tem se empenhado em convencer senadores da oposição da necessidade de prorrogação, para até 2011, da cobrança da CPMF, o "imposto do cheque". Na entrevista a seguir, elogiou o legado do governo tucano e disse que, se a CPMF for aprovada, anunciará "no dia seguinte" um corte na contribuição previdenciá-ria sobre a folha de salários. Formado em economia e administração pela Universidade de São Paulo, Mantega nasceu em Gênova, na Itália, em 1949 e é brasileiro naturalizado.
Veja – A que o senhor credita a atual fase virtuosa da economia brasileira?
Mantega – No passado, crescíamos por espasmo, com profundos desequilíbrios. Hoje, não mais. A economia brasileira está arrumada. O Brasil finalmente está prestes a entrar no seleto grupo de países com taxas de expansão iguais ou superiores a 5%. O consumo cresce a taxas de 10%. Nunca se produziram ou se venderam tantos carros. Mesmo setores tradicionais da indústria, como o têxtil, o moveleiro e o de calçados, que sofrem com a inevitável e necessária concorrência internacional, estão integrados, pois fornecem para um mercado interno aquecido. Há uma nova classe média se formando, com dezenas de milhões de consumidores. Se não tivesse havido avanços institucionais e uma política agressiva no comércio exterior, que abriu novos mercados e diversificou parceiros, certamente não teríamos surfado nessa onda de expansão do comércio internacional. O Brasil não aproveitava essa onda porque, com um câmbio artificial, fixo, estávamos na contramão do comércio internacional. Nos anos 90 éramos importadores. Hoje somos exportadores.
Veja – Quem arrumou a economia brasileira?
Mantega – Sob uma perspectiva histórica, foi a própria sociedade, a partir das crises da década de 80. Até então, éramos uma das economias mais dinâmicas do mundo. Tínhamos as taxas de crescimento mais elevadas, mas acumulávamos uma série de problemas. Vieram as crises: a inflacionária, a da dívida externa, a de confiança, a crise de crescimento. Foi nesse cenário de dificuldades que se criaram as forças e o consenso para a transformação da sociedade brasileira que está sendo coroada hoje. Naquele período começamos a amadurecer as instituições. Foi um trabalho longo e coletivo. Separamos as contas do Banco do Brasil e do Banco Central, criamos a secretaria do Tesouro Nacional, estruturamos o sistema financeiro, aperfeiçoamos o mercado de capitais.
Veja – E o Plano Real, dos tucanos?
Mantega – Ele foi importantíssimo, por ter abandonado a filosofia do congelamento que norteou os planos antiinflacionários que vieram antes. Seu grande mérito foi conseguir um controle da inflação dentro de padrões de mercado. Havia uma leniência generalizada com a inflação e com o descontrole fiscal. Os bancos, a classe média, os empresários e o próprio governo tiravam proveito da inflação. Antigamente, sem saber se a economia continuaria crescendo, o empresário brasileiro não aumentava a produção, mas o preço. Essa mentalidade não existe mais. Hoje o empresário brasileiro compete por fatia de mercado, não mais por margem de lucro. A sociedade incorporou o combate à inflação como dever básico do governo. Assim como a responsabilidade fiscal. A cultura do desperdício foi substituída pela filosofia da responsabilidade. Hoje, independentemente das ideologias que norteiam os governos, o princípio da responsabilidade fiscal foi consolidado. Foi uma grande contribuição do governo anterior, dos tucanos.
Veja – Os analistas observam que a política econômica do segundo mandato de Lula já não é a mesma do primeiro, pois o governo tem poupado menos e gastado mais...
Mantega – Isso é procurar pêlo em ovo. Temos uma agenda de crescimento mais explícita, é verdade, mas mantivemos os fundamentos do primeiro mandato. Mudamos apenas de fase na política econômica. Em um primeiro momento tivemos de reequilibrar as contas, fazer cortes, elevar o superávit primário. É verdade que reduzimos em 2006 a meta de superávit primário em 0,5 ponto porcentual, para dar espaço a mais investimentos. A rigor, no entanto, apenas recolocamos essa meta no patamar em que estava no começo do governo Lula, em janeiro de 2003. E, mesmo com um objetivo mais flexível, nossa economia tem ficado acima da meta. Não houve, portanto, conseqüência negativa alguma.
Veja – Outra crítica que se faz é que o Ministério da Fazenda se tornou tolerante à inflação ao defender, neste ano, a meta de 4,5% para 2008 e 2009, um índice superior à inflação que já existia.
Mantega – Podemos ser acusados de várias coisas, menos de defender a inflação. Naquele momento quis uma meta de inflação um pouco mais folgada por causa das oscilações da economia mundial. Foi uma medida de precaução, para acomodar eventuais choques externos. A crise provocada pelo mercado de hipotecas nos Estados Unidos provou que eu tinha razão. Como podem dizer que defendo a inflação se ela hoje é inferior à da era Palocci? O controle da inflação independe de grupos políticos. Se no futuro for eleito um presidente irresponsável, ele terá de se submeter a regras consolidadas ou será "impichado". Ninguém quer mais saber de déficit público ou de inflação.
Veja – Curiosamente, todos os economistas que chegaram à Fazenda com o senhor são críticos ferrenhos à política monetária do Banco Central. Existe um cerco desenvolvimentista ao Banco Central?
Mantega – Essa idéia de cerco ao Banco Central é uma balela. Ocorre o contrário. Só agora a Fazenda voltou a trabalhar em sintonia com o BC. Antes, havia uma disputa entre o Afonso Bevilaqua e o Joaquim Levy. Os dois não se sentavam à mesma mesa. A harmonia agora foi retomada. As reuniões semanais de trabalho entre o ministério da Fazenda e o BC, que haviam sido suspensas, foram retomadas.
Veja – A saída de quatro pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) não alinhados com o governo não é sinal de subordinação da política econômica a interesses ideológicos?
Mantega – Houve um exagero brutal nesse episódio. Atribuiu-se ao órgão um alcance que ele não tem. O Ipea exerce uma função muito relevante no campo das análises setoriais, é verdade, mas não define política econômica. Quem exerce a política econômica são os ministérios da Fazenda e do Planejamento, o Banco Central e a casa Civil. Como ministro da área econômica, não me limito a ler documentos e análises produzidos pelo Ipea. Acompanho análises econômicas de bancos e de empresas – por sinal, cada vez mais precisas.
Veja – A Fiesp alega que, entre 2004 e 2007, os gastos cresceram mais do que o PIB e até mais do que a receita. Está havendo gastança?
Mantega – Os gastos públicos de fato aumentaram, mas subiram menos que a arrecadação. O que houve foi um crescimento real da transferência de renda. O Bolsa Família era de 2 bilhões de reais. Hoje é de 10 bilhões de reais. Isso foi uma opção política do governo, uma estratégia para formar um mercado consumidor de massa. Mas os gastos de custeio da máquina estão controlados. Eu já fui ministro do Planejamento. Sei como cortar. Faço isso permanentemente. Por maior que seja o esforço do senhor Skaf (Paulo Skaf, presidente da Fiesp), ele não vai conseguir provar que os gastos cresceram mais que a arrecadação tributária. Porque não aumentaram. Prova disso é que sobra mais dinheiro, estamos com um superávit primário maior. Quanto aos gastos subirem mais que o PIB, é uma comparação inadequada, considerando o aumento da arrecadação e a necessidade de inclusão social.
Veja – Em vez de transferir tanta renda e elevar tanto o salário mínimo, não teria sido melhor usar os recursos para investir na combalida infra-estrutura?
Mantega – Na verdade, a opção foi nas duas direções: melhorar a condição dos miseráveis e, ao mesmo tempo, elevar os investimentos. Mas, num primeiro momento, só pudemos transferir renda. Isso porque, depois de vinte anos parada, a máquina pública não conseguia mover-se. O investimento do setor público passa por etapas burocráticas obrigatórias: licitação, audiência pública, licença ambiental. Uma licitação leva seis meses para ser montada. A da concessão das estradas, conduzida pela ministra Dilma e que mudou o paradigma das privatizações no Brasil, demorou mais de cinco anos para ser feita. Para se ter uma idéia, não conseguiremos gastar todo o recurso de investimento disponível para 2007. Faremos metade daquilo que está colocado. Mas em 2008 ganharemos velocidade de cruzeiro nos projetos do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
Veja – Até pouco tempo atrás o senhor se alinhava entre os que viam o câmbio valorizado como uma ameaça às exportações. O que o fez mudar de opinião?
Mantega – Minha geração de economistas foi formada no pensamento cepalino (tendência desenvolvimentista latino-americana que teve seu auge nos anos 50 e 60). Isso foi válido para determinado período, mas a globalização revolucionou todos os princípios econômicos. Aquela história de reserva de mercado, de protecionismo, que eu mesmo defendi, hoje não vale nada. O Brasil pode ser um protagonista importante com uma economia mais aberta, mais competitiva. Isso implica certa valorização do real e governo e empresários mais competitivos. Quando o dólar estava a 2,80 reais, dizíamos que a economia ficaria inviável. Quando se aproximava de 2,50 reais, dizíamos que as exportações iriam travar. Quando caiu para 2,30 reais, então, afirmávamos que o setor manufatureiro seria eliminado. Nada disso aconteceu. Com o câmbio valorizado, os empresários brasileiros des-cobriram que podem importar máquinas e insumos mais baratos. Em geral, nós, economistas, tendemos a ter padrões de pensamento voltados para o passado, como se a economia fosse a mesma de dez, quinze ou vinte anos atrás. Mas não é. A economia é outra.
Veja – Em 2002, 25% das exportações brasileiras iam para os Estados Unidos. Agora são 15%. Estamos negligenciando os mercados consumidores mais ricos?
Mantega – O comércio com os Estados Unidos aumentou menos, mas também aumentou. O que diminuiu foi sua proporção com relação ao destino total de nossas vendas externas. Essa redução não é produto de opção ideológica ou política. É o resultado natural da desvalorização do dólar, que encarece nossas exportações para os Estados Unidos, e da diversificação do comércio exterior brasileiro. Eu adoraria exportar mais para os Estados Unidos. Tenho um ótimo relacionamento com o Paulson (Henry Paulson, secretário do Tesouro americano). Os presidentes Lula e Bush levaram as relações bilaterais a um momento maravilhoso. Nada temos contra os mercados ricos. Nos últimos doze meses, aumentamos em 25% nossas exportações para a União Européia.
Veja – Por que a Venezuela deveria ingressar no Mercosul?
Mantega – Porque é um parceiro comercial importante, com o qual temos um superávit comercial de 3 bilhões de dólares ao ano. E porque, se a Venezuela for aceita, ela se submeterá às regras que serão estabelecidas pelo Mercosul. Além disso, o ingresso da Venezuela no Mercosul reforça a participação das grandes empresas brasileiras que têm obras de vulto ali.
Veja – Essas companhias também se internacionalizam para fugir da carga tributária e da burocracia brasileiras.
Mantega – É claro que temos problemas a resolver. Mas já alcançamos um outro patamar na história. Estamos constituindo um admirável mercado de consumo de massa. Uma nova classe média. Temos, é verdade, uma carga tributária elevada, custos financeiros ainda altíssimos e uma infra-estrutura combalida. O Brasil está longe de ser um país acabado. O governo tem de reduzir custos, oferecer portos, aeroportos, energia elétrica, precisa garantir que haja energia.
Veja – Extinguir a CPMF não seria um bom começo?
Mantega – A CPMF é um tributo que onera pouco as operações e do qual dependem muito as políticas sociais. Por que não fazer melhor? Se quisermos que as empresas brasileiras possam competir em pé de igualdade com as estrangeiras, precisamos reduzir o custo da folha de pagamentos. Já temos uma proposta nesse sentido. Se a CPMF for aprovada, o governo anunciará, no dia seguinte, uma redução em etapas, para até 15%, da contribuição previdenciária sobre a folha de pagamentos, hoje em 20%. Essa redução faz parte da proposta de reforma tributária que não foi enviada ao Congresso para não tumultuar o ambiente da CPMF.
Veja – Não é curioso o fato de o presidente Lula não ter um candidato para suceder-lhe num momento em que a economia está indo de vento em popa?
Mantega – É cedo demais para falar em candidato. Ao longo do segundo mandato do presidente, poderá surgir um governador ou um ministro que sobressaia.
Veja – O senhor não pode ser candidato à Presidência por não ser brasileiro nato. Mas teria essa ambição?
Mantega – Eu, não. Nunca me candidatei a nada. Sempre fui um professor de economia preocupado com o desenvolvimento do país. Sou um estrategista econômico. Por não ter ambições próprias, não preciso fazer sombra ao presidente. Antes de ser ministro, o Palocci era político. Tinha uma carreira política pela frente. O presidente Lula precisa de colaboradores totalmente dedicados à causa do governo, e não a interesses próprios.