Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 15, 2007

Retratistas da nacionalidade

R

Biografias revisam a formação de dois praticantes
de um gênero peculiar: a interpretação do Brasil


Jerônimo Teixeira

GILBERTO FREYRE
Com seu estilo sensual, Casa-Grande & Senzala colocou a mestiçagem no centro da cultura brasileira

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Trecho do livro

A interpretação do Brasil foi um gênero literário fértil. Sociólogos, historiadores, antropólogos ou simples diletantes já se arriscaram a definir uma espécie de caráter do país, em livros de corte ensaístico que em geral retrocedem até os tempos da colônia em busca dos elementos formadores da sociedade brasileira (veja quadro). Algumas dessas obras já estão superadas, mas outras ainda fornecem a moldura do pensamento social brasileiro – e são, portanto, constantemente glosadas, analisadas, revisadas, resgatadas, desconstruídas. Nessa linha da análise dos analistas do Brasil, surgiram recentemente dois livros cujo enfoque não é tão comum: parte-se da biografia de grandes "intérpretes do Brasil" para tentar entender o contexto de suas obras. Gilberto Freyre – Uma Biografia Cultural (Record; 658 páginas; 80 reais), de Enrique Rodríguez Larreta, antropólogo da Universidade Candido Mendes, e Guillermo Giucci, professor de letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, revisa a vida do sociólogo pernambucano até 1936, quando ele lança Sobrados e Mucambos. Caio Prado Jr. – Uma Trajetória Intelectual (Brasiliense; 250 páginas; 54 reais), do historiador Paulo Teixeira Iumatti, examina a evolução do pioneiro da historiografia marxista no Brasil.

À primeira vista, não há autores mais opostos do que o pernambucano Freyre (1900-1987), um conservador que mostrou simpatia pela ditadura de 1964, e o paulista Caio Prado Jr. (1907-1990), um comunista militante. Freyre, porém, reconheceu a pertinência das interpretações materialistas de Prado Jr. Ambos os autores, aliás, vêm de famílias tradicionais da classe alta. Caio Prado – o mais rico dos dois – era discreto sobre suas origens. Freyre, ao contrário, fazia alarde de sua ascendência. Sua auto-imagem idealizada, dizem seus biógrafos, é a de um "aristocrata popular". Gilberto Freyre – Uma Biografia Cultural recorre a uma vasta documentação, boa parte dela inédita, para reconstituir a formação do pensamento de Freyre. O centro do livro é a composição de Casa-Grande & Senzala. Hoje um clássico estabelecido, o livro foi, sem exagero, uma revolução no seu tempo. Derrubou o racismo científico ainda vigente então e valorizou a mestiçagem. Em uma temporada nos Estados Unidos, quando deu aula na Universidade Stanford, Freyre escreveu ao pai uma carta em que prenunciava o "programa" de Casa-Grande & Senzala, exaltando a miscigenação brasileira como "uma aventura nacional tão interessante quanto a russa ou a americana". Escrito em um estilo opulento e sensualista, Casa-Grande & Senzala já foi criticado, com alguma razão, por mitologizar o passado colonial e amainar a violência da escravidão. Mas não há dúvida de que o livro compôs a descrição mais vigorosa dos elementos constitutivos da civilização brasileira.

Fotos arquivo pessoal/Editora Brasiliense, Clodomir Bezerra

CAIO PRADO JR.
Filho de duas ricas famílias paulistas, sua adesão ao marxismo foi uma "traição de classe"

As realizações de Freyre, tido como brilhante desde a adolescência, sempre foram celebradas pelo círculo de amigos e familiares do Recife – que chegou a promover um baile a fantasia, com mucamas, sinhás e meninos do engenho, para comemorar o lançamento de Casa-Grande & Senzala. Caio Prado Jr., ao contrário, tornou-se uma ovelha negra em seu meio social, na década de 30. Houve quem jogasse pedras no carro em que circulavam sua mulher e seus filhos. Sua inusitada adesão ao Partido Comunista, em 1931, converteu o rebento de dois dos clãs mais ricos e tradicionais de São Paulo, os Prado e os Penteado, em "traidor de classe". Quatro anos mais tarde, estava na cadeia por sua militância. Prado Jr. foi o primeiro brasileiro a estudar o Brasil de maneira consistente pelas lentes do materialismo histórico, o "método" proposto por Karl Marx. Seus esforços culminaram em 1942, com o lançamento do livro Formação do Brasil Contemporâneo, segundo o qual a colonização do país foi antes de mais nada um empreendimento comercial – o que teria determinado e continuaria a determinar muitas das mazelas do Brasil.

Avesso a confissões, Caio Prado Jr. jamais esclareceu os motivos que o levaram ao comunismo. O que confere um certo mistério à biografia dessa que foi uma das mais influentes figuras da cultura brasileira no século XX. Afora esse enigma, contudo, Paulo Teixeira Iumatti lança luz de maneira notável sobre a vida e a obra de Caio Prado Jr. em seu livro. Para isso, valeu-se de documentos inéditos. Quando morreu, em 1990, depois de conviver por vários anos com uma doença degenerativa, Caio Prado Jr. deixou um acervo com quase 50 000 itens, entre livros, cartas, diários, fotografias, fichários e recortes de jornal. Adquirido pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo em 2001, esse acervo mal começou a ser desbravado – mas Iumatti, no momento, certamente é o que melhor o conhece.

A obra de Caio Prado Jr. (a par do estilo pesadão) padece da superação de sua base teórica, o marxismo. Freyre segue relevante pelo que tem a dizer sobre a questão racial. Os ideólogos do vitimismo que desejam estabelecer cotas raciais (aliás, racistas) em universidades e repartições públicas detestam Freyre exatamente porque sua obra torna irrelevantes as divisões raciais – na trilha, aliás, de Joaquim Nabuco (leia matéria na próxima página), que Freyre reconhecia como um antecessor. Prado Jr. admitia o preconceito racial como parte do sistema escravista, mas apenas como uma espécie de agravante da discriminação social – como bom marxista, estava preocupado com a luta de classes, não de "cores". As políticas de cotas são um retrocesso inequívoco sob qualquer ponto de vista. Talvez isso explique o charme duradouro de tantas interpretações do Brasil escritas há mais de meio século: o Brasil está sempre retornando aos mesmos velhos problemas. Às vezes, falsos problemas.

O país dos intérpretes

Outros autores que tentaram definir
o Brasil em ensaios de fôlego

Antonio Milena

Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982)
Clássico da sociologia brasileira, Raízes do Brasil (1936) propôs, entre outras idéias inovadoras, o conceito de "homem cordial". Não, Sérgio Buarque não faz o elogio do "brasileiro bonzinho". A cordialidade, ao contrário, traduz-se na tendência do brasileiro de elevar as motivações afetivas e os interesses familiares acima dos princípios abstratos que devem reger a sociedade moderna e o estado democrático


Florestan Fernandes (1920-1995)
Escrito sob o impacto do golpe militar de 1964, A Revolução Burguesa no Brasil (1973) se vale da teoria marxista para tentar entender a formação de uma sociedade capitalista periférica como o Brasil
Antonio Milena
Arquivo/AE

Oliveira Vianna (1883-1951)
Populações Meridionais do Brasil (1920) prega uma adequação dos "elementos bárbaros" do povo brasileiro ao "caráter da raça branca" – uma posição racista que seria criticada por Gilberto Freyre

Raymundo Faoro (1925-2003)
Em Os Donos do Poder (1958), o jurista identifica uma constante na formação histórica do Brasil: o sufocamento da sociedade sob a opressão do estado e do "estamento burocrático"
Fabio Motta/AE

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