Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 15, 2007

Os maridos -blog do NOBLAT


por Vitor Hugo Soares -
15.12.2007


Em setembro deste ano, por ocasião da abertura da 59ª Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), aconteceu em Nova Iorque um encontro que deu o que falar no circuito Norte-Sul. Aproveitando-se de uma brecha entre os soníferos discursos da maioria dos chefes de Estado presentes, o casal de poderosos da Argentina, Néstor e Cristina Kirchner, deu uma escapada do hotel "Four Seasons" (Rua 57 com Madison) para um encontro com o ex-presidente americano Bill Clinton, no Sheraton da esquina famosa da Sétima com a Avenida 52.

Clinton, ex-ocupante da Casa Branca por oito anos e ainda uma das figuras mais populares dos Estados Unidos, a certa altura da conversa puxou o visitante para fora do alcance dos ouvidos da esposa, e sussurrou: "Me perguntam sempre a que nos vamos dedicar quando elas forem presidentas". E o próprio marido de Hillary (postulante à candidatura do Partido Democrata à sucessão de Bush) propôs uma resposta comum: "Eu vou fazer o que ela mandar".

Na confusão da saída do hotel, o casal argentino foi cercado na calçada por cinegrafistas e repórteres sedentos de novidades. Um deles fez a esperada pergunta, mas o marido de Cristina preferiu fugir do roteiro combinado minutos antes: "Vou ser o seu chefe do Protocolo", disse o ex-presidente, com um sorriso maroto. Bem parecido com o que ele exibiu o tempo inteiro em Buenos Aires, segunda-feira passada, na cerimônia de posse, no Congresso, e na entrada triunfal da mulher na Casa Rosada.

Na época dessa "charla no Sheraton", destacada pelos jornais portenhos em generosos espaços, Cristina Kirchner acabara de conquistar vitória eleitoral retumbante nas margens do Rio da Prata. Na passagem por Manhattan, dias depois, ela nem disfarçava a enorme satisfação de ser chamada de "gêmea política" de Hillary.

Esta semana, a "pinguina" recebeu o bastão da presidência das mãos do marido e já anda a braços com a primeira crise do seu governo, desatada por uma mala com quade 800 mil dólares despachada na Venezuela e apreendida no período da campanha eleitoral no aeroporto de Buenos Aires. Segundo notícias procedentes de Miami, que agitam Buenos Aires (enquanto Cristina espuma de ódio, levanta suspeitas contra os serviços secretos americanos e dispara duras acusações contra Bush) , a grana iria regar a campanha "de um dos candidatos a presidente da Argentina". Ontem, o jornal "La Nacion", ainda a partir de informações procedentes de Miami, informou que o dinheiro era destinado à campanha de Cristina Kirchner.

A Hillary, que azeita o verbo e exercita as pernas para a maratona das prévias em que disputará a sua indicação como candidata, resta longo e pedregoso caminho a percorrer na tentativa de retornar ao palacete de Washington onde ela residiu com o marido, na condição de primeira dama. O que não falta na mulher de Bill é disposição e, na histórica empreitada de poder, ela espera do companheiro a mesma conjugação de empenho e prestígio – ou maior ainda - empregada por Néstor Kirchner para empurrar Cristina para o alto.

Enquanto isso, os ex-presidentes dos Estados Unidos e da Argentina, em seus recentes movimentos e atitudes, lembram cada vez mais os personagens de "Os Maridos" (Husbands), filme de John Cassavetes lançado no Brasil nos anos 70, que assisti em Salvador no extinto Cine Liceu. Incluído em listas qualificadas entre os 100 melhores filmes em qualquer tempo, "Maridos" trata da peculiar relação de amizade entre homens casados de meia idade em seus labirintos existenciais.

Com Peter Falk e Ben Gazara, seus dois atores preferidos, além dele próprio em papel de destaque, Cassavetes promove uma catarse  e faz um demolidor questionamento do estilo de vida americano (American Way of Life). A realização beira a genialidade em termos de ousadia e criatividade, ao radiografar a alma masculina "e os arroubos emocionais próprios do homem", como assinalou um crítico da obra, com sinceridade que espanta e comove.

O ponto de partida é uma farra homérica em memória de um quarto amigo de cujo sepultamento, em um cemitério de NY, acabavam de retornar. Os três reviram suas vidas matrimoniais pelo avesso em um bar, e ali mesmo decidem tirar umas férias em Londres, sem passar em casa para comunicar às respectivas mulheres.

É uma realização fora dos padrões lineares das narrativas de Hollywood, com princípio, meio e fim. Na verdade, é uma grande e anárquica celebração masculina. Em 154 minutos, no melhor estilo do chamado movimento do Cinema Independente surgido em Nova Iorque nos anos 50, John Cassavetes questiona, põe em xeque todas as faces e disfarces do "jogo de encenações sociais" embutido na vida de cada um dos personagens. As mulheres entram como pano de fundo.

No jogo político desta primeira década do séc. XXI, das mulheres poderosas como Hillary e Cristina, os maridos Bill e Néstor levam jeito como atores para a hipótese de nova versão desse filme magistral dos anos 70.

Falta um Cassavetes para dirigí-los.

Vitor Hugo Soares é jornalista - E-mail: vitors.h@uol.com.br


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