O realismo de Lula

editorial

O Estado de S. Paulo

20/12/2007

Os problemas do Mercosul são criados em casa e não adianta procurar culpados fora da região. Este foi o recado mais importante do presidente Luiz Inácio Lula da Silva aos governantes do bloco, na terça-feira, no último dia da reunião de cúpula realizada em Montevidéu. "Se não avançamos mais rapidamente, a culpa não é dos Estados Unidos, nem da Alemanha, nem de qualquer país de fora do bloco. É de nós mesmos", disse o presidente brasileiro, destoando, mais uma vez, da tradição latino-americana de atribuir os infortúnios da região a forças externas. A observação poderia parecer extemporânea a um observador de fora. Por que falar de um assunto tão velho quando o bloco tem tantas questões importantes para resolver? Mas aquela tradição não está morta, como provou com eloqüência, logo depois, a nova presidente da Argentina, Cristina Kirchner. "Perdoe-me, presidente Lula, mas considero que há fortes interesses externos, como também de alguns setores de nossos países, que têm cegueira cultural em relação ao próprio e recebem com agrado o que vem de fora", disse a presidente, marcando com um velho discurso a sua primeira participação numa reunião do bloco. A conferência de cúpula acabou servindo à presidente argentina para transformar num capítulo do conflito Norte-Sul um problema seu - o escândalo dos dólares levados a Buenos Aires, durante a campanha eleitoral, por um empresário venezuelano. Como o caso teve desdobramentos policiais nos Estados Unidos, nada mais natural do que reduzir as acusações a mais uma sórdida manobra do imperialismo. A intervenção do presidente Lula poderia ter sido a deixa para um reexame sério dos problemas do Mercosul. Criado em 1991, o bloco permanece atolado em divergências entre os quatro sócios originais e até hoje mal funciona como área de livre-comércio, embora seja, formalmente, uma união aduaneira. Mas a deixa não foi aproveitada. Em termos práticos, o resultado mais importante da conferência foi a assinatura de um acordo de livre-comércio com Israel. Sobrou também uma notícia animadora: Mercosul e União Européia poderão retomar, em breve, as negociações congeladas há dois anos. Se essas negociações nada renderam em mais de dez anos, foi principalmente porque os governos do bloco foram incapazes de se entender e de aproveitar a oportunidade para firmar seu primeiro tratado de livre-comércio com um grande parceiro do mundo rico. A afirmação do presidente Lula aplica-se também a esse caso. Os europeus podem ter criado obstáculos a um acordo, mas os principais entraves foram mesmo produzidos pelos sócios do Mercosul: se não sabem como integrar seus sistemas produtivos, como poderiam entender-se na hora de apresentar suas ofertas à União Européia? O mote do presidente Lula - não adianta buscar culpados no exterior - foi por ele apresentado pela primeira vez em janeiro de 2003, quando discursou no jantar ibero-americano do Fórum Econômico Mundial. Sua declaração soou, na ocasião, como promessa de realismo. Mas a promessa foi cumprida apenas parcialmente. No plano interno, a política de ajuste permitiu manter a inflação sob controle, melhorar os indicadores fiscais - ainda de forma insuficiente - e abrir algum espaço para o crescimento. No plano externo, a diplomacia enveredou por um terceiro-mundismo requentado e contribuiu para o emperramento do Mercosul. O projeto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) deu em nada, as negociações com a União Européia foram paralisadas em 2005 e a integração sul-americana é muito mais uma fantasia brasiliense do que uma realidade econômica. Em nome dessa fantasia, o presidente Lula engajou a Petrobrás em sua estratégia diplomática. Ele mesmo afirmou, em Montevidéu, que as decisões recentes de firmar acordos com a Petróleos de Venezuela SA (PDVSA) e com a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos só foram tomadas porque a "vontade política" prevaleceu sobre as avaliações técnicas. Acionistas nacionais e estrangeiros da Petrobrás certamente lêem declarações desse tipo com muito interesse e com muita curiosidade. Afinal, eles devem querer saber como a "vontade política" se refletirá nos ganhos da companhia. Em matéria de realismo, eles são muito mais radicais que qualquer presidente do Mercosul.