Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, dezembro 04, 2007

Míriam Leitão - Nova chance


PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
4/12/2007

Foi uma surpresa a derrota de Hugo Chávez, mas ela valoriza velhas lições da política, como a de Tancredo Neves: "Quando a esperteza é demais, come o dono." Chávez manipulou a forma de apresentar a pergunta e proibiu o debate na televisão. E perdeu. Ontem ele disse que "a proposta segue viva. Não se pode agora, mas a mantenho". A oposição fez um chamado ao presidente à reconciliação nacional.

A derrota de Chávez é uma estrondosa vitória da democracia, tão ameaçada pelo controle que ele tem sobre os poderes e pelo cerceamento à liberdade de imprensa. E tão ameaçada também pelas interpretações criativas sobre o seu significado. No Brasil, houve quem defendesse que a alternância do poder é "facultativa". O chanceler Celso Amorim disse, em defesa da proposta de reeleições sucessivas de Chávez, que: "Cada um resolve como quiser. No Brasil, nós temos o princípio da alternância do poder, mas a democracia assume várias facetas." A alternância de poder é parte indissociável da democracia. Reeleição perpétua é tirania.

Foi uma vitória estrondosa para a América Latina, região conturbada por períodos ditatoriais freqüentes e que está vendo uma nova moda surgir: a ditadura plebiscitária. Os truques de Chávez são fortes e tinham funcionado até então. Mas são o que são: uma forma de manipular as regras da democracia.

Primeiro, ele propõe plebiscitos quando está com alta popularidade, com o recall ainda das urnas. Foi reeleito no ano passado e, com o eco das urnas, preparou o outro passo. Segundo, embaralhou, na mesma pergunta, medidas simpáticas, como redução da jornada e proteção aos trabalhadores informais, com mais um mandato para ele e mais centralização do poder. Terceiro, ele se mistura com a pátria, velha tática dos ditadores, e joga o nome "traidor da pátria" sobre os que dele divergem. Quarto, perto da eleição, arranja inimigos, fortalece conflitos, diz que é a pátria que está ameaçada.

Quando viu que corria o risco de perder, apelou para a chantagem, dizendo ao povo que os benefícios concedidos pelo seu governo podiam ser suspensos caso perdesse no referendo.

Diante dos resultados da boca-de-urna, Chávez garantiu que respeitaria o resultado. Agora está prisioneiro pela boca, mas já pensa no passo seguinte:

- A proposta segue viva, não está morta. Não se pôde agora, mas a mantenho. Faltou tempo e capacidade para explicar melhor - disse o presidente da Venezuela.

Pelas contas que ele mesmo fez, Chávez diz que perdeu três milhões de votos em relação ao que havia tido na eleição. Recebeu 7 milhões de votos, e o "sim" agora recebeu apenas 4 milhões. Ao fazer o cálculo e tratar como uma perda pessoal de votos, ele mostra que não era reformar a Constituição o que queria, mas, sim, ampliar seu tempo no poder. Tempo já demasiado. Ao fim do mandato, Chávez terá permanecido 14 anos na presidência.


O fator novo, desta vez, foi a mobilização dos estudantes. Ontem os vários líderes ficaram em alerta na fiscalização da apuração.

- É proibido dormir, tem que cuidar dos votos! - disse Freddy Guevara, um dos líderes estudantis.

Os líderes da oposição propuseram reconciliação:

- Este é o momento de reencontrar todo o povo para que possamos nos sentar com o presidente para ver qual é o projeto para a Venezuela. Chega de desqualificação, vamos buscar a conciliação - afirmou Leopoldo Lopez.

Faz bem a oposição. Ela também errou demais na Venezuela. Errou na desastrada tentativa de golpe em 2002; errou nos anos em que permaneceu no poder, quando a corrupção e a ineficiência administrativa alimentaram a descrença nos partidos e na democracia. A Venezuela, pelos erros do governo e da oposição, ensina a todos da América Latina o que temer, o que evitar.

A derrota de Chávez aborta outros projetos de tiranetes que vinham se fortalecendo por aí, outras idéias de seguir o mesmo caminho: plebiscitos manipulados e mandatos sucessivos. Na hipótese de vitória de Chávez, seus seguidores mais explícitos, como Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Corrêa, no Equador, sentiriam-se fortalecidos na caminhada. Idéias estranhas que começavam a aparecer no Brasil também foram abortadas.

Por outro lado, a região precisa refletir sobre a herança que carrega dos erros de antigas elites políticas: a miséria, a desigualdade, a exclusão do processo decisório. A Bolívia, por exemplo, com sua maioria indígena sempre excluída do processo, deve buscar mudanças que agreguem o grupo à estrutura do poder e distribuir melhor os frutos da riqueza nacional. Os bolivianos pobres nada viram do ciclo da prata; nada ganharam com o ciclo do estanho. Precisam ganhar com o ciclo do gás. Isso será mais bem feito se o presidente Evo Morales conseguir unificar o país. Com métodos chavistas, apenas alimentará o separatismo.

Como bem ensinou o mestre Sobral Pinto: "Não existe democracia à brasileira, existe peru à brasileira." Que as receitas criativas fiquem na culinária, e não nas instituições. Não existe democracia à moda da Venezuela, da Bolívia, do Equador ou do Brasil. Existe democracia. E ela tem ingredientes clássicos: independência dos poderes, liberdade de imprensa, alternância do poder e eleições. Ter só eleições, sem as outras qualidades, não garante o estado democrático, como nos mostram as eleições de Hitler, Mussolini, Fidel Castro, Vladimir Putin e tantos outros.

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