Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 16, 2007

Merval Pereira

Saco de gatos

 A relativa moderação com que o presidente Lula recebeu oficialmente sua maior derrota nesses cinco anos de governo tem a ver menos com um acesso súbito de bom senso e mais com a votação em segundo turno da Desvinculação dos Recursos da União, a famosa DRU, que permite aos governos movimentar 20% das verbas do Orçamento de acordo com suas prioridades, sem obedecer às vinculações legais. Sem esse instrumento, fica praticamente impossível ao Executivo governar, pois a maioria das verbas já vem “carimbada” para diversos setores, restando pouca margem de manobra para um governo que pretende manter o superávit primário intacto.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o artífice por trás da atuação do PSDB na derrubada da CPMF, citou em sua nota oficial a aprovação da DRU com votos da oposição como uma demonstração de que há compreensão por parte da oposição para as dificuldades do governo.

Fernando Henrique sabe o que é governar com um orçamento engessado, pois foi em seu primeiro governo que nasceu a DRU, então com o nome pomposo de Fundo Social de Estabilização.

Já nas negociações para separar a DRU da CPMF, na noite tensa em que o governo já pressentia que não conseguiria aprovar a prorrogação do chamado “imposto do cheque”, a oposição deu uma mostra de magnanimidade aceitando votar os dois assuntos separadamente, abrindo caminho para o governo não sofrer uma derrota completa. E foi com nada menos que 16 votos de senadores que haviam derrotado a CPMF que o governo conseguiu manter a DRU.

Se dependesse apenas de sua base, teria sido derrotado novamente, pois dela saíram apenas 44 votos, cinco a menos do que o governo necessitava.

A votação do segundo turno da DRU se dará esta semana, e tudo indica que o governo precisará mais uma vez da oposição para confirmá-la. Alguns senadores que votaram a favor da CPMF se colocam contra a DRU, muitos por motivos ideológicos.

A DRU é entendida pela esquerda radical como um instrumento para garantir o pagamento dos juros aos banqueiros, o que na verdade quer dizer que ela pode ser usada para fazer o superávit fiscal, reduzindo a dívida pública e melhorando sua relação com o PIB.

O senador Cristovam Buarque, por exemplo, votou a favor da CPMF com a condição de que o governo não usaria a DRU para retirar do orçamento verbas da educação. Esse compromisso já foi para o espaço nessa confusão pós fim da CPMF, e dificilmente Cristovam votará com o governo.

O senador petista Tião Viana nem mesmo votou na primeira sessão, alegando que já havia muitos votos “da direita” a favor dos banqueiros. A oposição, por sua vez, deu apenas metade de seus votos para a aprovação da DRU, o que foi mais que suficiente para salvá-la, mas tem poder de fogo para até mesmo obstruir a votação e não permitir que o governo aprove até o final do ano esse instrumento tão importante para a gestão do Orçamento.

Por isso os governistas, a começar pela língua presa, mas afiada do presidente Lula, estão em recesso momentâneo, tentando não criar um clima radicalizado até a próxima votação. Ao mesmo tempo, essa cautela toda só se justifica porque o governo já sabe o que desconfia há muito tempo: não tem uma maioria confiável no Senado, onde, dos 53 votos oficiais das bancadas de sua base parlamentar, não consegue unir 49 senadores para defender seus interesses quando se trata de uma emenda constitucional.

A alta fragmentação partidária verificada no Brasil faz com que os chefes do Executivo usem as nomeações ministeriais para construir a sua base de apoio no Poder Legislativo, mas não se consegue formar uma verdadeira coalizão partidária, e sim uma coalizão de sustentação parlamentar.

Mas como essa base de apoio não se assenta sobre princípios programáticos, e sim na troca de interesses políticos freqüentemente mesquinhos, o governo vê-se na situação de ter que negociar a cada votação mais difícil.

O Ministério do segundo mandato de Lula, além de ser o maior já formado em tamanho, abriga indicados por cerca de dez partidos e é considerado pelos estudiosos como o mais fragmentado da história do presidencialismo latino-americano, um verdadeiro “saco de gatos”, como definido por um antigo coordenador político do governo.

As dificuldades de coordenar uma coalizão com tantos partidos, e tão heterogêneos quanto os que compõem a base de sustentação do governo — vão da extrema esquerda, com o PCdoB, à direita, com partidos conservadores como o PP e o PRB dos evangélicos —, aparecem desde o primeiro governo, quando, a pretexto de controlar os votos na Câmara, montou-se o mensalão, um esquema de corrupção em massa dos deputados, que até hoje deixa seqüelas na relação do Executivo com sua base parlamentar.

Mesmo tendo uma maioria folgada na Câmara, o governo tem que negociar com seus próprios deputados para aprovar qualquer coisa, e já teve dificuldades para aprovar a CPMF. Os prazos apertados que dificultam ainda os movimentos do governo no Senado têm origem na protelação que o relator da CPMF na Câmara, o deputado do PMDB Eduardo Cunha, provocou para forçar a nomeação de Luiz Paulo Conde para Furnas, o que conseguiu.

O PMDB, o maior partido da coalizão, disputa o poder com o PT, partido do qual se originou o governo e que a cada dia perde mais influência política, em troca de mais espaço na máquina pública. Mas o PMDB não quer só prestígio, quer também ocupar esses espaços, deslocando o PT.

No Senado, o PR deu dois de seus quatro senadores para a dissidência do governo na CPMF, enquanto o partido tem um dos ministérios mais cobiçados e importantes no PAC, o de Transportes. Portanto, as dificuldades do governo não acabaram com a derrota da CPMF nem terminarão se conseguir aprovar em segunda votação a DRU.

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