Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Laboratórios do crime

Carlos Alberto Di Franco

O procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, denunciou criminalmente ao Supremo Tribunal Federal (STF) o ex-ministro de Relações Institucionais Walfrido dos Mares Guia, o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e outras 13 pessoas, por desvio de pelo menos R$ 3,5 milhões de recursos públicos para a campanha de Azeredo à reeleição do governo mineiro, em 1998.

O procurador, homem sério e reconhecidamente competente, acusou-os de peculato e lavagem de dinheiro e afirmou que o esquema montado pelo publicitário Marcos Valério Fernandes de Souza para injetar dinheiro público na campanha do tucano é semelhante, mas não idêntico, ao mensalão nacional do PT - ocorrido entre 2003 e 2005 e cuja denúncia foi aceita pelo STF. Antonio Fernando de Souza salientou que "os fatos não são exatamente iguais. O procedimento que se adotou para fazer o desvio do dinheiro é o mesmo, mas com objetivos diferentes". Quer dizer, o esquema montado em Minas Gerais está bem na linha da triste tradição política brasileira: desvio de dinheiro público para abastecer campanhas eleitorais. O mensalão petista foi muito mais longe: armou uma estrutura de pagamento periódico a parlamentares pelo apoio ao governo Lula. O partido do presidente da República, ao inovar a metodologia da delinqüência, instaurou a propina como instrumento de governo.

Do ponto de vista jurídico, os crimes que o procurador-geral atribui aos políticos mineiros e aos representantes dos petistas não são idênticos. Moralmente, no entanto, são igualmente condenáveis e esmagam a política brasileira sob uma pesada laje de corrupção, pragmatismo e cinismo. Esbofeteia-se a verdade numa escala sem precedentes.

Chegam-me e-mails de leitores, de variados coloridos ideológicos e partidários. Batem numa tecla comum. "A impunidade venceu", dizem os leitores. "Não adianta o trabalho de denúncia da imprensa." Compreendo o desânimo dos homens de bem. Mas não é por aí. O Brasil, não obstante os reiterados esforços de implosão da verdade (a mentira e o cinismo tomaram conta da vida pública) e de destruição da liberdade (a desmoralização programada das instituições democráticas, o apoio irresponsável às piores ditaduras e a transformação das imensas massas de excluídos em instrumento do marketing populista), ainda conserva importantes reservas éticas. Penso, caro leitor, nos cidadãos honrados. Eles existem. E são mais numerosos do que podem imaginar os aéticos detentores do poder.

Penso nos políticos que ainda acreditam que a razão de ser do seu mandato é um genuíno serviço à sociedade. Penso nos magistrados, nos membros do Ministério Público, nos servidores do Estado. Penso nos educadores, nos estudantes, nas instituições representativas dos diversos setores da sociedade. Penso nos meus colegas da imprensa, depositários das esperanças de uma sociedade traída por suas autoridades. Nós, jornalistas e formadores de opinião, devemos fazer uma serena, mas impiedosa, autocrítica sobre a qualidade das nossas coberturas. O esforço de isenção, prática elementar do bom jornalismo, não se deve confundir com a omissão. A sociedade espera uma imprensa de buldogues, disposta a exercer seu intransferível papel de contraponto.

Cabe-nos, agora e sempre, aprofundar o processo de apuração. Não tenhamos receio das sempre renovadas tentativas de atribuir à imprensa falsos propósitos de engajamento político. Trata-se de síndrome persecutória, patologia defensiva bem conhecida. Políticos acuados, do governo ou da oposição, declaram-se vítimas de supostas conspirações da mídia. É sempre assim.

O Brasil está, de fato, passando por uma profunda crise política. A simples leitura dos jornais oferece um quadro assustador do cinismo que se instalou na entranha do poder. Os criminosos, confiados nos precedentes da impunidade, já não se preocupam em apagar as suas impressões digitais. Tudo é feito às escâncaras.

Mas, não duvidemos, o homem tende para a verdade. E a falência da verdade é a principal causa da decadência de qualquer sociedade. Em contrapartida, reerguer uma sociedade é reerguê-la primeiro eticamente, fazendo reinar nela o que há de mais essencial: o primado da verdade.

Há em todos nós um instinto de autenticidade. O cidadão honrado sabe confrontar o brilho do olhar limpo com a mirada opaca dos corruptos. Pode até ser enganado. Mas um dia, talvez antes do que se pensa, a casa desabará. "O que acontecerá", escrevia Nietzsche, "quando cair a máscara?" Não ficará "mais do que um espantalho". A advertência do filósofo é de grande atualidade. Está dirigida a certos governantes e políticos, do governo e da oposição, que caminham de costas para a verdade.

Homens, instituições e agremiações possuem o terrível poder de decapitar esperanças e de abortar projetos. Tristeza não tem fim. Felicidade, sim. A felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar; voa tão leve, mas tem a vida breve. (...) A gente trabalha o ano inteiro para fazer a fantasia de Rei ou de Pirata ou de Jardineira, para tudo se acabar na quarta-feira. A canção de Vinicius de Morais, símbolo maior da nossa poesia, não pode continuar forjando o futuro. É preciso superar a ética da omissão. A batalha da verdade se trava no cerne da sociedade civil: cobrando o fim da impunidade, apoiando o esforço de apuração da imprensa, pressionando legitimamente as autoridades, respaldando decisões como as que foram tomadas pelo honrado procurador-geral da República.

Uma democracia séria, com imprensa livre e instituições sólidas, é a melhor prevenção contra as crises. Políticos passam, mas as instituições ficam.

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