Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 09, 2007

FERREIRA GULLAR

Pobre, eu ria à toa


Foi aquele um tempo estranho da minha vida, de que não sinto saudade nem mágoa

UM EDITOR quer lançar uma tradução do "Poema Sujo" na Argentina. Falaram comigo por telefone, o que me fez lembrar daqueles tempos em Buenos Aires, quando escrevi o poema, hoje já traduzido em vários países, mas não lá, onde ele nasceu.
Não é bem assim, foi traduzido. Depois de trazê-lo para o Brasil, no final de 1975, naquela tal fita que ele me fez gravar, Vinicius de Moraes entendeu de traduzi-lo para o espanhol, mas uma tradução a dez mãos, em equipe, de que participaram ele, sua namorada argentina, minha namorada argentina, eu e uma amiga dele que era tradutora. Uma farra.
Como se não bastasse, a tradução foi submetida a uma última revisão, na casa de Augusto Boal, também em grupo, de que participavam Eduardo Galeano e Santiago Kovadloff, que traduzia, na época, uma antologia de poemas meus para uma editora em Caracas. Essa revisão final foi sugerida pela Editora De La Flor, que aceitara editá-lo.
Ocorreu que, antes que isso acontecesse, o dono da editora teve que fugir às pressas da Argentina, para não ser preso pelos militares que acabavam de depor a presidente Isabelita, viúva de Perón. Guardei comigo os originais da tradução, corrigido naquela noite e, quando recentemente o reli, quase agradeço aos militares por terem impedido sua publicação: era um boi com abóbora.
Para essa nova iniciativa de editá-lo, terá que ser traduzido de novo, e não a dez mãos; por duas é melhor. O que também tornaria desnecessário prender o novo editor.
Brincadeira, claro. É que me lembrei de uma piada, que eu mesmo inventei a meu respeito, apropriada àqueles tempos instáveis. Dizia às pessoas: fui para Santiago do Chile, poucos meses depois derrubaram Allende; segui para Lima e, no dia em que decidi mudar-me para Buenos Aires, ainda no avião me informaram da morte de Perón. Pouco depois, um golpe militar depõe Isabelita. Agora -dizia eu-, quando falo em mudar de país, dizem: "Não vem pra cá, pelo amor de Deus!".
Foi aquele um tempo estranho da minha vida, de que não sinto saudade nem mágoa, embora tenha me custado um alto preço em sofrimento e desamparo. E quando o evoco é quase sempre pelo que teve de engraçado, apesar de tudo. Sim, a gente ri, apesar de tudo, e é isso o que nos salva.
Um episódio que se contava então ocorreu com Paulo Freire -autor, como se sabe, de um famoso método de alfabetização- quando estava exilado em Montevidéu. Nordestino, saudoso das comidas e bebidas de sua terra, um dia chegou radiante e anunciou aos companheiros de exílio que acabara de descobrir, ali perto, um boteco onde se vendia suco de cajá. Saíram todos correndo para lá e, ao chegarem, tiveram uma decepção. Era de fato uma venda de sucos, mas o que confundira o nosso alfabetizador foi a palavra "caja", que em espanhol significa "caixa", o local onde se paga a compra feita.
Como essa, havia muitas outras anedotas, envolvendo asilados e quase sempre decorrentes de confusões lingüísticas. É que, como o português e o espanhol são línguas muito parecidas, eram muitos os equívocos em que nos metíamos. E, se às vezes criavam embaraços, pelo menos nos divertiam. Entre muitas dessas confusões vocabulares, houve uma que se espalhou pela comunidade dos exilados e que se passou na Bolívia. Ao chegar ao hotel, com malas e bolsas, um brasileiro se dirige ao funcionário de portaria, dizendo-lhe que lhe providenciasse um "sepélio". O homem arregalou os olhos e, sem saber se ria ou não, perguntou:
-Un sepelio, señor?
-Sí, y lo más pronto que pueda.
A surpresa do funcionário se justificava, já que "sepelio", em espanhol, quer dizer "velório". O nosso compatriota necessitava, de fato, de um "cepillo", escova de dentes.
Essas confusões, que acometem quem vive em terra alheia, nem sempre são divertidas, como as que passei, altas horas da noite, nas ruas de Buenos Aires, quando fui parado por patrulhas militares, posto de mãos para cima contra a parede, sob a mira de uma metralhadora, só por ter cara de índio. Naquela época, era perigoso parecer latino-americano na América Latina.
Por isso, quando não havia motivos para rir, eu os inventava. Certo fim de tarde, vinha eu do aeroporto, num ônibus, quando vejo, à margem da estrada, uma casa comercial com o seguinte nome na fachada: "fábrica de pasta". Distraído, li: "fábrica de bosta". Então, me imaginei indo até a fábrica e dizendo ao dono: "O nome de sua fábrica está escrito errado. Em vez de fábrica de pasta puseram fábrica de bosta". Ao que o homem respondeu: "É fábrica de bosta, mesmo".
Ri todo o resto da viagem. Pobre ri à toa.

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