Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 09, 2007

Desastre subprime não é a grande história

Anatole Kaletsky

Qual foi a mais importante história econômica e financeira deste ano? Muita gente parece concordar que foi o aperto global do crédito e a crise imobiliária nos Estados Unidos. Na verdade, porém, essas foram ocorrências menores se compradas com a mudança bem mais importante verificada na estrutura do crescimento global, em favor dos Estados Unidos e em detrimento da Europa, inclusive a Grã-Bretanha.

Essa mudança foi confirmada pelos dados impressionantemente sólidos do Produto Interno Bruto (PIB) dos Estados Unidos divulgados na semana passada e deve provocar uma recuperação substancial do dólar - exatamente quando reportagens, em todo o mundo, anunciam o declínio permanente da moeda americana. Embora os mercados e a mídia venham se concentrando nos riscos de uma recessão, os números do PIB relativos ao terceiro trimestre mostraram uma aceleração do crescimento para 4,9%, taxa trimestral mais vigorosa desde o primeiro ano da presente expansão, em 2003.

Entretanto, a boa notícia, de que os EUA vêm crescendo velozmente apesar do colapso do setor imobiliário, é mitigada por algumas notícias muito ruins, ou seja, as maiores vítimas da desvalorização do dólar e da crise no mercado imobiliário não serão os consumidores e proprietários de imóveis americanos, mas empresas e trabalhadores no resto do mundo.

Isso porque a força propulsora da aceleração da economia dos EUA neste ano foi um recrudescimento das exportações líquidas, e essa tendência deve ser ainda mais acentuada num futuro próximo, por razões diretamente ligadas ao colapso do setor imobiliário.

Com o passar dos anos, vem se observando nas economias mais avançadas um elo muito forte entre os ciclos imobiliários e a balança de pagamentos.

Quando os preços dos imóveis explodem, as importações de um país tendem a subir e suas exportações desaceleram, ao mesmo tempo em que as forças do mercado transferem o trabalho e os recursos da área da manufatura para a da construção de imóveis e o consumo.

Quando os preços de imóveis começam a declinar, e a balança comercial muda em favor das exportações. Essa relação ficou demonstrada num estudo detalhado de 44 ciclos do setor imobiliário em 18 países, publicado há dois anos pelo Conselho de Diretores do Federal Reserve (banco central americano).

A experiência de todos esses ciclos sugere que, à medida que os preços dos imóveis declinam, os EUA provavelmente conseguirão reverter grande parte da deterioração no seu déficit de conta corrente dos quatro últimos anos. Esse déficit aumentou em 3,5% do PIB, o equivalente a US$ 400 bilhões, entre 2002 e 2005. Portanto, uma redução desse mesmo valor - digamos US$ 200 bilhões em cada um dos próximos dois anos - deve ser esperada.

Há um ano, esse tipo de previsão poderia parecer apenas uma especulação teórica, mas nos últimos meses se vem observando uma redução do déficit comercial americano e um boom no setor de exportações. Desde o terceiro trimestre de 2006, o déficit dos EUA encolheu 1,5% do PIB, e os últimos dados sobre o comércio mostraram que essas exportações cresceram 15% em termos reais, ao mesmo tempo que as importações registraram apenas 5% de aumento.

Nos próximos dois anos, com o dólar contabilizando hoje baixas recordes, essa mudança no padrão de comércio americano deve ser ainda mais rápida, acrescentando mais 1,5% a 2% ao crescimento do país.

A boa notícia é que esse aumento nas exportações deverá ser suficiente para contrabalançar os prejuízos decorrentes do colapso do setor imobiliário para a economia americana e o seu mercado de trabalho. A má notícia é que os US$ 400 bilhões equivalentes a essa atividade econômica extra, conseguida pelas empresas e trabalhadores americanos, corresponderão exatamente às perdas contabilizadas na Europa, Ásia e no resto do mundo.

Se isso ocorrer - e já está ocorrendo - serão os parceiros comerciais dos EUA que sofrerão mais as conseqüências do colapso do mercado imobiliário. E o mais importante, talvez, no caso dessa perspectiva econômica para o próximo ano, é saber que países e regiões sofrerão mais com esse “progresso” no comércio americano. Muitas pessoas responderão intuitivamente que os mais ameaçados pela redução do déficit americano podem ser os países com os maiores superávits em relação aos Estados Unidos, ou seja, China, Japão e os países produtores de petróleo.

Se o déficit comercial americano encolher em torno de US$ 200 bilhões em cada um dos próximos dois anos, uma aritmética simples parece sugerir que os superávits comerciais de outras regiões deverão cair mais ou menos o mesmo valor.

Como o Japão, a China e os países da Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep) são os únicos parceiros comerciais dos Estados Unidos com grandes superávits, seria natural supor que eles serão os únicos que sofrem com os prejuízos do comércio americano. No entanto, essa aritmética é equivocada: o déficit comercial dos EUA pode encolher facilmente em US$ 200 bilhões ou mais, mesmo se os superávits chineses e japoneses permanecerem no mesmo nível ou continuarem expandindo.

Isso pode ocorrer se a Europa sair da posição de um equilíbrio comercial para uma déficit ao estilo americano de algumas centenas de bilhões de dólares. Nesse caso, a Europa estaria ainda mais vulnerável do que Japão, China ou Oriente Médio, a um desaquecimento da economia dos EUA, como ocorreu em 2000-2002 e 1991-1993.

Qual a probabilidade disso ocorrer nos próximos um ou dois anos? Muitos legisladores e empresários europeus acreditam que isso é impossível. Segundo eles, a Europa nunca contabilizou déficits enormes como os EUA no passado. Por que ocorreriam repentinamente agora? Infelizmente para os exportadores europeus, a resposta é simples: os movimentos da moeda. Embora as manchetes dos jornais e as fofocas do mercado sejam hoje dominadas pelo “colapso” do dólar, o fato é que, nos últimos anos, não se vinha falando da desvalorização do dólar, mas da supervalorização do euro e da libra.

O fato é que o dólar não tem, absolutamente, se desvalorizado em relação a importantes moedas asiáticas - seu valor ante ao iene permanece exatamente o mesmo de três anos atrás. De outro lado, o euro e a libra hoje estão 20% mais caros não só em relação ao dólar, mas também ante o yuan e o iene.

Para piorar ainda mais a situação dos exportadores europeus, o caráter do ajuste comercial dos EUA está passando agora por uma mudança. Enquanto a redução do déficit comercial foi causada sobretudo por uma queda do consumo, agora o sistema de comércio global entra numa fase em que a desvalorização do dólar acaba se tornando a principal força motriz.

Isso porque um movimento da moeda geralmente leva dois anos ou mais para afetar as exportações. Dessa maneira, os efeitos do dólar fraco para o sistema de comércio global só serão sentidos daqui a dois anos. Assim, é provável que os produtores marginais de produtos para o mercado americano sejam os europeus, mais do que chineses, sul-coreanos ou japoneses. Além disso, as conseqüências maiores do declínio do dólar ante o euro não deverão ser observadas nos mercados europeu ou americano, mas em outros países onde os produtores europeus competem com americanos, japoneses e outros em condições mais ou menos iguais. Existem mercados onde o exportador europeu poderá se ver pressionado a sair por causa da concorrência de preços de seus rivais americanos e asiáticos. Em resumo, pode parecer natural imaginar que empresas como Toyota, Sony ou Samsung se tornem mais vulneráveis à atual crise hipotecária dos EUA, mas as vítimas de fato de um desaquecimento americano possivelmente serão empresas como Volkswagen, Philips, Nokia e similares.

*Anatole Kaletsky escreve para o ‘The Times’

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