Para o grande desaponto dos brasileiros que não se conformam com o baixo nível do debate público no País, confinado a uma polarização entre o lulismo e o antilulismo, em geral cheia de som e fúria e significando quase nada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso vinha se notabilizando há algum tempo por aceitar de caso pensado as “regras” desse tipo de combate político. Decerto a continuada erosão do prestígio do PSDB, o seu déficit de lideranças e o virtual emudecimento de que a sigla se viu acometida desde que as urnas a conduziram à oposição - o que para os tucanos tem sido uma verdadeira travessia do deserto - levaram Fernando Henrique, à falta de melhor, a vestir uma roupagem retórica que não lhe cai bem - a das cores berrantes da radicalização. Com isso arranhou a imagem que o distinguia como pensador político e vice-versa, conhecida raridade no cenário mundial, que dirá no Brasil.
E, pior para ele, sem que a substituição do florete pelo tacape compensasse. Ao contrário, excetuados os aplausos dos convertidos para quem pregava, a aspereza dos seus ataques ao presidente Lula, até mesmo no plano pessoal, parece ter produzido o clássico efeito bumerangue - que, nas circunstâncias, não tem nada de surpreendente. Afinal, nas últimas pesquisas divulgadas, a aprovação a Lula aumentou nos redutos tucanos típicos: no Sudeste, nas famílias com renda acima de 10 salários mínimos e na população com mais tempo de escola. Eis que, numa bem-vinda reviravolta, o autêntico FHC tornou a emergir, com o seu patrimônio intelectual inalterado, expresso, com a velha elegância, em apropriadas reflexões sobre os temas que lhe tocaram abordar na sabatina promovida na quinta-feira pela Folha de S.Paulo. Dado o retrospecto, não espanta que o que em primeiro lugar chamou a atenção dos que o ouviam tenha sido o tom ponderado, muitas vezes elogioso, de suas referências a Lula.
“O mais perigoso em um país é (um governante) que não tenha amarras”, elaborou em dado momento. “Lula mudou muito, mudou sempre e vai mudando, mas ele muda e se amarra, muda e se amarra.” O diagnóstico é irrefutável, assim como a crítica de que “Lula não exerce a sua força popular em termos de organização de um programa que permita ao País vê-lo e apoiá-lo”. Isso, no entanto, não foi o mais significativo nem o mais importante. Uma das características da troca de papéis entre tucanos e petistas consiste, como se sabe, na relutância dos dois lados a reconhecer em público o dado central da era Lula - os muitos pontos em comum entre as suas políticas e as do seu antecessor. O novo presidente não denunciava a “herança maldita” que teria recebido? E não é igualmente verdade que o PSDB ainda não conseguiu vencer o desafio de fazer oposição a um governo que deu seqüência ao seu?
Contam-se nos dedos, porém, as figuras de destaque em ambas as trincheiras que, desde a primeira hora, advogavam o entendimento em vez da conflagração com a outra parte. O então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, era a principal delas. Mas é da natureza da luta política, determinada pelos ciclos eleitorais, o exagero das diferenças e a escamoteação das semelhanças. Daí virem a calhar as palavras com que, na sabatina, Fernando Henrique restaurou o respeito aos fatos. “A gente tem de olhar as coisas num ângulo um pouco menos estigmatizado”, afirmou. “As coisas não são feitas por alguém, é uma história”, argumentou, mencionando o Bolsa-Família, um programa “iniciado no nosso governo (que) eu acho muito bom”. E para não deixar dúvidas: “Ninguém tem o copyright do que fez (…). Apropriação é um processo natural da política. É uma discussão que interessa à vaidade das pessoas” - um problema irremovível porque a vaidade é um componente da vida política.
Não por acaso muitas das farpas trocadas entre o atual e o ex-presidente são atribuídas a fatores de ordem temperamental, sob a influência dos egos respeitáveis de um e de outro. Um motivo adicional, portanto, para saudar as situações em que a inteligência se impõe às servidões da subjetividade no exercício da política. Como nessa passagem de Fernando Henrique: “Se olhar as histórias das democracias mais maduras hoje, elas também passaram por períodos difíceis e foram se aperfeiçoando. Não dá para resolver tudo em uma só pessoa.”
Entrevista:O Estado inteligente
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sábado, dezembro 08, 2007
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