Crítica da crise
Na semana passada, o crítico franco-americano Jacques Barzun completou cem anos e muitos textos foram escritos sobre seu trabalho mais conhecido, Da Alvorada à Decadência (editora Campus), em que a alvorada é o Renascimento do século 15 e a decadência começa na segunda metade do século 20 - algo como ''''de Leonardo a Picasso''''. Apesar de todo o brilho de Barzun, e da obrigatoriedade de reconhecer que a cultura européia viveu um ciclo único nesse arco de tempo, acho nociva essa opinião radical de que os pensadores e artistas já não ambicionam - porque não podem, mais do que não querem - tal escala de grandeza. Afinal, há aí uma contradição: é como se tudo isso que foi inventado e realizado até há pouco só pudesse ter o efeito de diluir nossos talentos.
Também na semana passada, comentei que, em meio a essa relativa mediocridade cultural, há algumas áreas como o cinema e a arquitetura que trazem ousadias, que surpreendem nossa percepção. Acho que há dois motivos para isso: a tecnologia e a internacionalização. De Frank Gehry a Renzo Piano, os arquitetos de hoje podem imaginar e usar formas e materiais que antes não podiam; e são convidados a fazer suas obras nos cenários mais variados. Quanto ao cinema, a tecnologia digital também permite experimentos como os de David Lynch e Michael Gondry, e a produção dividida em vários países tem sido cada vez mais freqüente. Outro sinal de vitalidade atual, repito, são os intérpretes - não só músicos que relêem grandes obras, mas também atores e cantores que, em alguns casos, nada deixam a dever a suas referências. E o que dizer da ciência, em que há tantas novidades como a biogenética?
Além disso, não se vive apenas de obras-primas que durarão 500 anos. Há muitos criadores interessantes em atividade, dos quais talvez um dia se diga que pertencem ao tal ''''cânone''''. Listei muitos desses nomes no ano passado, quando esta coluna completou dez anos. Para ficar num só exemplo, quantos dos que lamentam pelo ''''fim da música erudita'''' - de Bach a Stravinsky, diria Barzun - se dão ao trabalho de ouvir Arvo P?rt ou John Adams? Eles podem não ter a mesma estatura dos citados, mas fazem algo que fala à sensibilidade contemporânea com intensidade e integridade. Não vamos muito longe subestimando a minoria que se salva e nos salva, por mais que hoje os responsáveis pela produção cultural ajam somente segundo critérios populistas ou marqueteiros. A crise não pode ser desculpa para a mesmice.
CADERNOS DO CINEMA (1)
Fiquei sabendo que o capitão Nascimento não seria o protagonista de Tropa de Elite até que uma pesquisa apontou que na primeira versão o filme decolava aos 40 minutos quando Wagner Moura surgia na tela. Submeter uma obra de arte à opinião alheia e mudá-la em função dela soa estranho, mas é cada vez mais comum nas artes de grande escala. No caso, o filme ganhou uma força que não teria se narrado por Matias, o policial negro do Bope. Ao mesmo tempo, porém, ficou preso ao ponto de vista de Nascimento, em detrimento dos demais; daí o tratamento de herói dispensado a ele por muitos espectadores.
Em tempo: quem disse que o filme usou a pirataria como estratégia - ou que não seria afetado por ela - quebrou a cara. O filme não vai nem chegar perto de bilheterias como Carandiru e Cidade de Deus, como seria razoável supor. Os DVDs piratas - muitos dos quais sem o final verdadeiro e com a fotografia prejudicada - assaltaram alguns milhões de espectadores do filme.
CADERNOS DO CINEMA (2)
Gostei de O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, de Andrew Dominik, por algumas atuações, inclusive a de Brad Pitt, pela fotografia e pela idéia embutida na história. Mas o filme se arrasta, pomposamente, com exceção do trecho final (com participação divertida de Nick Cave ao violão), e há um excesso de maneirismos, como se tivesse muito mais a dizer do que de fato diz. O que diz me fez lembrar muito Quem Matou o Facínora, de John Ford, mas sem a linguagem enxuta do mestre. Brad Pitt é Jesse James e Casey Affleck é Bob Ford, seu admirador fanático, que coleciona suas histórias e imita seus trejeitos. O comentário é sobre a fama, sobre como a lenda pesa sobre o homem à maneira de um fantasma, do qual só tem um modo de escapar naquelas circunstâncias, um modo que paradoxalmente o torna ainda mais lendário. O filme não precisava pesar da mesma forma.
DE LA MUSIQUE (1)
A orquestra mais falada da América Latina não é brasileira; é a venezuelana Orquestra da Juventude Simón Bolívar, sobretudo por causa de seu maestro, Gustavo Dudamel, uma das maiores apostas do mundo erudito no momento. Aposta? Dudamel já é resultado, como se vê no CD da Quinta Sinfonia de Mahler que acaba de ser lançado pela Deutsche Grammophon e está sendo ainda mais aclamado que suas sinfonias de Beethoven. Há um grande frescor em sua interpretação, audível especialmente no adagietto e no rondó final, em que a instrumentação intrincada de Mahler é acentuada com toda a sutileza necessária.
DE LA MUSIQUE (2)
Seu Jorge é cada vez mais o herdeiro de Jorge Ben e, em seu novo CD, América Brasil, que já tem um hit (Trabalhador) nessa lamentável novela da Globo, Duas Caras, investe no ''''samba rock'''' até no título de uma das faixas, a oitava. Seu Jorge tem pegada e algumas letras agradam pelos achados bem ao estilo pop ingênuo de seu xará (''''Ela vem com essa/ E eu nem a conheço pessoalmente/ Só no chat/ Só na net/ Só na mente''''), mas o disco é bem inferior a Cru, que tinha mais surpresas harmônicas e variedade de gêneros.
RODAPÉ (1)
Como era fácil prever, a biografia de Tim Maia é uma diversão. Na verdade, trata-se mais de um livro de memórias de Tim por Nelson Motta (editora Objetiva) do que uma biografia exaustivamente pesquisada ou inovadora. Muitas das histórias já são conhecidas, como a modalidade de ''''triatlo'''' que ele praticava (maconha, cocaína e uísque) e as frases certeiras (''''Com os acordes que o Tom Jobim põe numa canção, eu faço umas 50''''), e o relato deixa a dever no detalhamento das influências musicais de Tim (o coquetel de black music, bossa nova e balada). Mas li o livro na ida e volta da ponte aérea e, apesar de todos os causos, também senti certa tristeza ao rever o preço que Tim pagou por seus excessos, paranóias e ciúmes.
Ele e Jorge Ben são os pais do pop brasileiro, e acho fundamental que os compositores de hoje leiam suas advertências sobre a importância de não se limitar ao rítmico. Nem tudo vale.
RODAPÉ (2)
Por falar em Renascimento, quem se interessa não pode deixar passar Piero della Francesca, o livro clássico de Roberto Longhi (Cosac Naify), e O Modelo Italiano, do historiador Fernand Braudel (Companhia das Letras). A intenção de Longhi, o maior crítico de arte italiano do século 20 ao lado de Giulio Carlo Argan, era rebater as acusações de críticos como Bernard Berenson de que a pintura de Piero era fria ou cerebral, observando a espontaneidade de suas minúcias. Braudel tenta entender o período de 1450 a 1650, quando do Renascimento nasceu o Barroco, e atribui essa fertilidade - de Donatello a Caravaggio, passando por Michelangelo, Bernini, Ticiano e tantos mais - ao brotar do capitalismo, à ascensão da ciência e à disputa entre cidades naquela confluência de culturas. Os marxistas não gostam de ser lembrados disso, mas humanismo e burguesia são dois fenômenos diretamente associados.
POR QUE NÃO ME UFANO
A Venezuela pegou de surpresa até as pesquisas de boca-de-urna e rejeitou ampliar os poderes de Hugo Chávez. Num primeiro momento, o caudilho aceitou, provocando tristes comentários de articulistas e missivistas anticapitalistas de que, se fosse um ditador, não aceitaria... Mas bastaram 24 horas para que ele qualificasse o resultado da oposição como ''''una vitória de mierda'''', com sua proverbial gentileza. Como diria Lula, é um democrata!