Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, dezembro 11, 2007

Arnaldo Jabor - Tom Jobim dá saudade de nós mesmos

O filme ‘A casa do Tom’ é delicado álbum de família
Escrevo estas linhas como o Tom Jobim dedilhava o piano, enquanto conversava. Ele ia falando, falando, e os dedos não paravam, afagando as teclas, criando harmonias que pontuavam suas palavras, coisas soltas, Tom nunca tinha princípio e fim, não era conclusivo, era um Debussy de conceitos, que se espraiavam uns sobre os outros, como ondas de Ipanema. Escrevo assim porque vi o filme que a Aninha Jobim me mandou, “A casa do Tom”, que ela fez sobre sua vida com ele, editado pela Biscoito Fino. É um “fita” de família que virou documentário, lindo, e eu fiquei emocionado com esse milagre sempre renovado do cinema, em que as pessoas de repente ressuscitam na nossa frente e ficam ali, falando, como se nada tivesse acontecido. Isso me dói porque um dia serei também protagonista de um flashback de mim mesmo. Sempre me assusto se estou, por exemplo, num bar e, de repente, minha saudosa comadre Nara Leão começa a cantar, baixinho, ali a meu lado.

No filme dá para ver que Tom nunca foi nítido, era sempre cambiante, sempre entre o sim e o não, ele nunca estava inteiramente na poltrona, no jardim (só no piano, na concentração absoluta) — ele estava sempre em “outro lugar” também, de onde viera e para onde ia voltar. Uma vez, me falou de um misterioso “cubo de trevas”, onde ele se “internava” às vezes. Daí sua grande fascinação pelos urubus, que conhecia em detalhes, como irmãos, bichos de família. Eu entendo isso, pois na minha infância os urubus voavam também, altíssimos, e eu os olhava com saudade não sei de que, imaginando a terra vista de cima, voando com eles, na perna do vento, como me ensinou o Tom.

Um dia, estava conversando com ele sentado no piano, e ele me dedilhou uma música nova: era “Chansong”, a obra-prima com a letra anglo-francesa: “I’ve never been in Paris for the summer, I never drank a scotch with this bouquet (...) “let’s hi-jack a Concorde to the Bahamas, come on, my love, dress up, let’s go to the ballet...” Fui das primeiras pessoas a ouvir a música — tenho esse orgulho. Sempre que a ouço, vejo-me com ele, curvado, cantando com voz arfante, como num filme secreto.

O documentário me tocou, pois senti como o passado recente é remoto. Eu prefiro ver fotos amareladas, filmes precários, antigos, que nos dão a sensação de nebulosas vidas mortas.

O personagem do preto-e-branco, do trêmulo filme mudo, nos consola com sua vetustez. Suas mortes são mais suportáveis porque pensamos: “Ah... naquele tempo se morria; hoje não”. No filme moderno, o passado nos angustia mais porque vira um presente implacável, embora ausente, impalpável. Vemos a alegria de festas sem som, sorrisos mudos, a juventude perdida dos rostos, as gargalhadas que não ecoam em lugar algum, as mulheres tão moças e lindas (e não nos dávamos conta disso), e nós mesmos, nossa saúde, nossos humores, tudo visível. Também vemos os indícios de erros que nos estão levando ao fim, o corpo maltratado, a melancolia evitável, o riso amarelo, eu, você, nós todos no passado perdendo tempo, desvalorizando o que tínhamos. Mais dolorosa do que a tristeza de um passado é sua alegria. Outra coisa me doeu, pois percebi que não foi uma época que passou; foi um ritmo que mudou. Já sentira isso no filme do Miguel Faria Jr, “Vinicius”, quando escrevi: “O tempo era outro, e me refiro a tempo como ritmo, timing.

Movíamo-nos de outro modo, em paisagens claras, com perspectiva, distâncias nítidas, andávamos ‘pela praia até o Leblon’. O mundo estava em foco e não era esse sumidouro de hoje. Esses filmes mostram um passado que poderia ser nosso presente. Ipanema era uma ilha de felicidade num país injusto, mas foi um momento raro em que o desejo e o projeto se encontraram, numa harmonia entre a praia, o bar, as ruas com amendoeiras, a música e a literatura, antes da massificação”.

O tempo se acelerou brutalmente, boçalmente nos últimos dez anos. Como os filósofos vivem berrando, eu repito: não temos mais “tempo”, porque as coisas fetichizaram o tempo: a cada dia, os blackberries, os iPhones aumentam de potência, e o tempo vai se comprimindo. Até onde? Essa correria seria ótima se fôssemos chegar a alguma coisa, a uma estação Finlândia, a um terminal qualquer; mas aonde chegaremos? No início do século XX, louvamos a velocidade crescente, revolucionária, na arte moderna, a beleza do futuro.

Mas, agora, não temos condição de criticar e controlar mais porra nenhuma, nem pela ciência, poesia, paródia, nem por nada. As coisas estão in charge. Que diria Tom sobre isso? Bem, no filme, nas suas falas sobre a natureza, e em seus gestos já vemos sua tristeza, disfarçada de ceticismo sábio, vemos que ele já sabia que a barra ia pesar ali em Ipanema e em toda parte.

Talvez ele dissesse: “Você sabe, não é, Jabor?, você que é um árabe, um beduíno sem deserto, você sabe que a música existe no tempo. Dá até para acompanhar a aceleração, mas, depois de certo ponto, a música vai junto, a arte perde o fôlego... Nós estamos querendo acabar com o Tempo”. Isso me remete a um filme antigo, c ult , o “Planeta proibido”, onde todas as informações de um mundo morto estavam guardadas num imenso subterrâneo, uma gigantesca máquina, um super-Google. Toda a vida do planeta, tudo o que se descobriu e construiu estava ali, arquivado. Só não havia mais vida em volta — a raça tecnológica dos Krells tinha sido extinta. Mas Tom não ia prestar atenção nesse papocabeça. Ele diria: “Deixa pra lá... Olha, lá no alto, o urubu-caçador está dormindo na perna do vento...”

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