A ambigüidade moral da Guerra Civil Americana – e de
qualquer guerra – na ficção histórica de Doctorow
Miguel Sanches Neto
Fotos Hulton Archive/Getty Images e Elisabetta Villa/Getty Images |
E.L. Doctorow (no detalhe) e Sherman com seus oficiais: contra a escravidão, pelo saque |
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Sob o comando do austero general William Tecumseh Sherman (1820-1891), o exército ianque empreendeu uma longa travessia de Atlanta, na Geórgia, até Savannah, já na região litorânea, e depois rumo à Carolina do Sul e do Norte, estados confederados. Sherman conhecia bem a motivação central de seus soldados: a pilhagem. Cidades e fazendas foram destruídas para enfraquecer os sulistas, mas também para dividir o butim. Uma das passagens mais terríveis da Guerra Civil Americana – que opôs o norte do país ao sul escravista, entre 1861 e 1865 –, a campanha arrasadora do general da União é o tema de um romance histórico exemplar: A Marcha (tradução de Roberto Muggiati; Record; 416 páginas; 39 reais). Conhecido sobretudo por outra ficção histórica, Ragtime, que se passa nas primeiras décadas do século XX, E.L. Doctorow, de 76 anos, construiu um admirável painel dos dramas humanos precipitados pela guerra. Seu romance examina os personagens – reais ou fictícios – que vivem nas zonas morais ambíguas próprias do conflito.
Sherman é uma dessas figuras contraditórias. Embora seja movido pelo desejo de acabar com a escravidão, ele mesmo é um racista. Os escravos libertos acompanham seu exército como um peso morto, pois o general não admite negros na frente de batalha. Outra personagem, a sulista Emily Thompson, perde o pai e a propriedade na guerra, mas acaba se juntando ao inimigo ianque, como enfermeira, depois que se apaixona por Wedre Sartorius, médico da União. Josiah Culp e o negro Calvin vagam pela região do conflito no exercício de uma nova técnica: a fotografia, pela primeira vez utilizada extensamente para registrar uma guerra.
Nenhum personagem é mais emblemático do que Pearl Wilkins. Filha de uma escrava com o patrão, ela tem a pele branca. Vivendo entre duas raças, dois mundos, Pearl acompanha o exército em busca da liberdade. Travestida de menino do tambor, é adotada por um tenente e depois por um general Sherman atormentado pela perda do filho. Mas logo Pearl retoma sua identidade de mulher negra, unindo-se a um soldado irlandês que teve uma infância pobre nas ruas de Nova York – união que parece ser um esperançoso recado de Doctorow aos Estados Unidos de hoje: a miscigenação como resposta ao racismo. A Marcha, aliás, traz suas alusões subterrâneas ao atual conflito do Iraque. Para Doctorow, o romance histórico funciona como uma metáfora do tempo presente. A Marcha leva o leitor à conclusão de que não existe passado – é sempre agora.