Artigo - Roberto DaMatta |
O Globo |
5/12/2007 |
O mundo social seria impossível sem licenças, pois a licença - como a desculpa e o jeitinho - é correção e permissão. É um modo de ajustar normas gerais a casos singulares. Numa guerra, os governantes se licenciam das leis comuns. Mata-se em nome da pátria. Trivialmente, a licença fala da possibilidade de passar por cima de uma norma ou um costume estabelecido. Ela implica um pedido, porque é um rompimento com algum procedimento que vale para todos. A questão é quando a licença vira um valor e passa a ser usada como regra, não como exceção. Num ônibus ou cinema, pedimos licença para transitar entre os outros que, tendo os mesmos direitos àqueles espaços, eventualmente atrapalham nossa passagem. A licença ou a "licencinha" são modos de lidar com situações administradas por uma norma geral que, por se aplicaram a todos, têm um certo automatismo. Como as pessoas não operam como máquinas, a licença e a desculpa são a ponte, reitero, entre a regra geral e suas margens ou exceções. Entre nós, as licenças são sempre faladas em voz baixa. A marca hierárquica de nosso sistema, que nos torna sensíveis a lidar com os outros, sobretudo quando não sabemos quem são e o que representam, talvez explique o tom sussurrado dos pedidos de licença nos espaços públicos. No pedido hesitante, vai o reconhecimento de que, apesar de não sabermos com quem estamos falando, temos consideração e reverência por todos que estão em nossa volta. Por isso, os pedidos de licença - os triviais "dssscença" inaudíveis e incompreensíveis para os estrangeiros - são obrigatórios nos espaços públicos. O pedido de licença abre espaço quando não cabe mais ninguém, de modo que a licença é uma figura sociológica próxima do "jeitinho". Em ambos os casos, o murmúrio da fala e o tom suplicante do olhar transformam o igual num superior. Quando tal reconhecimento não acontece e o apelo é automático e silencioso, como é norma em outros países, há uma visível e indesejável tensão. Não dirigir a palavra ao outro é um modo de negar-lhe a existência pessoal. No fundo, o que está em jogo é o reconhecimento dos outros no complicado (mas pouco falado) papel de co-cidadão em situações nas quais todos têm os mesmos direitos. Um elevador está lotado, mas você está convencido de que isso não se aplica ao seu caso. O pedido de licença é, pois, sussurrado como aval para a entrada do seu grupo. Há sempre lugar para licenciar um amigo ou, pelo contrário, para invocar uma regra geral que veda o espaço ao desconhecido. A lógica das chamadas "licenças poéticas", a liberdade que - diz o Aurélio - toma o poeta para algumas vezes transgredir as normas da poética ou da gramática, é idêntica a essas rotineiras licenças que o mau cronista e péssimo sociólogo exemplificou acima. Trata-se de uma desculpa ou exceção realizada em nome de alguma finalidade. Eu preciso descer ou subir, entrar ou sair, ultrapassar o carro da frente ou terminar o verso. Daí os meus "com licença" e as minhas buzinadas ou "buzinadinhas", os diminutivos que personalizam, sendo a forma ideal de romper a norma com o assentimento dos outros. Ou um modo de tornar o auso palatável. O problema, porém, é que existem áreas que não aceitam licenças ou desculpas. Sobretudo quando o sistema se torna mais complexo e não pode mais permitir as desculpas fundadas no descaso, na burrice, na roubalheira, na reles contradição política ou no tradicional atraso ideológico e exige funcionalidade, atribuição de responsabilidade e correção imediatas dos seus pontos vulneráveis e de suas ineficiências. Um avião não pode ser pilotado por um senador da República. Aqui, não cabe a licença mal-educada e autoritária do "Você sabe com quem está falando?". Do mesmo modo, o preço de um produto industrial, digamos, uma geladeira ou um automóvel, pode ser barganhado, mas as margens de manobra são extremamente reduzidas. O mesmo ocorre num empréstimo bancário. Nesses casos, lamentamos não poder oferecer ou receber as "licencinhas" poéticas e políticas que têm marcado o funcionamento do sistema dentro do nosso velho e bom estilo brasileiro do jeitinho. O que enlouquece é a clareza com que nos confrontamos com casos nos quais a licença política é usada para crimes, erros e malversações de todo o tipo e quilate. Há dinheiro em caixa e já surge a licença política para inchar a administração pública, usando o desgastado argumento do "Estado forte". Cai o estádio, e já temos a solução: vamos implodi-lo, na desculpa que deixa de fora os responsáveis. Para o caso da moça posta vilmente estuprada, vamos demolir a prisão e, com ela, criamos a desculpa de que o edifício é o culpado pela nossa incapacidade de honrar até mesmo os nossos prisioneiros. Ontem éramos contra certos impostos e cobranças, hoje somos por todos eles. Ontem, na oposição, eramos duríssimos hoje, como governo, odiamos as opiniões dissidentes, contraditórias e dissonantes. Ontem os erros eram imperdoáveis, hoje, temos licenças políticas para tudo. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, dezembro 05, 2007
Licenças políticas
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