O discurso e a inércia
Há algo no ar além dos aviões de carreira atrasados. Talvez porque exposto a tantos descalabros éticos, especialmente depois que os supostos paladinos dela tomaram o poder, o Brasil parece viver agora nova fase de auto-afirmação hiperbólica, de patriotismo cego, na gangorra sentimental que caracteriza os países que demoram tanto a resolver seus problemas básicos. Percebo isso na tentativa curiosa de converter dom Pedro II num herói fundador, como se o Brasil não tivesse visto o bonde da Revolução Industrial literalmente passar ao largo durante aqueles 40 anos. Ou nos especiais sobre os 200 anos da partida da corte de dom João VI, lance peculiar no xadrez europeu que realmente mudou a sorte do Brasil, mas não apenas para o bem. Ou mesmo no desespero de encontrar ídolos esportivos confiáveis, de olho na Copa de 2014.
Melhor exemplo não pode haver do que os relatos a respeito do novo relatório da ONU sobre o IDH mundial. Como existe a nota de corte simbólica do índice 0,800 na escala de 0 a 1, acima do qual está o grupo considerado de ''''alto desenvolvimento humano'''', muita gente comemorou como se o Brasil agora tivesse entrado numa elite do planeta. Bem, o Brasil é o 70º do ranking, o quinto da América Latina, perdeu uma posição e alcançou o índice ao lado de potências como Albânia e Macedônia... Está longe do patamar que possa ser verdadeiramente descrito como ''''alto desenvolvimento'''', como se vê por seus avanços lentíssimos em áreas fundamentais como saneamento e educação. (Mario Vargas Llosa disse que a civilização começou com o esgoto. Mas ele concordaria que também começou quando todo mundo aprendeu a ler e contar.)
O governo logo tratou de valorizar a inclusão nesse clube nada distinto, como era de esperar. O pior é que muita gente bem informada acreditou. Não se deu conta de que o normal é melhorar: praticamente todos os países melhoram, exceto os que estão afundados em guerras civis ou genocidas. A questão a observar é a velocidade dessa mudança, e a do Brasil é baixa demais, principalmente em relação a seu tamanho e potencial. Em 1975, estava com 0,650; em 2005, com 0,800. Mas não adianta pensar que, por essa curva, chegará a 0,950 - o índice dos EUA, 12º colocado - em 2035. O índice é relativo, a tendência natural é desacelerar quando mais se aproxima do topo e houve muita mudança estrutural na economia mundial dos anos 70 para cá. É realmente lamentável que se veja aí um convite à inércia, como se estivéssemos ''''quase lá'''', prestes a ser um país rico e justo.
Além disso, muitos dados não batem. Muitas instituições sérias afirmam, por exemplo, que a rede de esgoto não chega a 75% da população, mas apenas a metade dela. Não, não vou cometer a vulgaridade de citar o caso da menina presa em cela de homens no Pará, um retrato da barbárie institucionalizada que vigora no sistema prisional brasileiro. Mas veja outro dado importante, divulgado pela PriceWaterHouse na mesma semana sobre a dificuldade de pagar tributos nos países do mundo inteiro: o Brasil é o 174º onde mais tempo se leva para transferir recursos para a máquina pública. Mesmo que se critique a metodologia, o fato é que o Brasil está muito abaixo dos piores, como Turquia.
O que isso tem a ver com desenvolvimento humano? Tudo. A carga tributária e a burocracia oficial impedem que o Estado cumpra suas atribuições sociais e infra-estruturais. Ao asfixiar o ambiente produtivo sem contrapartida alguma, ele não só atravanca o crescimento do PIB, mas também a distribuição de rendas e direitos, mesmo que faça tanta propaganda do Bolsa Família. Não espanta, assim, que o Brasil esteja próximo do Azerbaijão no exame Pisa de qualidade de ensino. Tampouco espanta que, nesta onda do ''''tudo está bem, apesar dos pesares'''', típica da complacência nacional, o ano esteja chegando ao fim sem o governo ter feito nada. O Congresso ficou parado no caso Renan e na prorrogação da CPMF; qualquer reforma - como a tributária e a política - é factóide; e o PAC segue empacado, tal como o Avança Brasil do antecessor tucano. O Brasil muda, mas muitas coisas continuam iguais. Como nos tempos do segundo reinado, o ufanismo fala mais alto que a ação.
RODAPÉ (1)
Outra figura histórica brasileira que está na moda é Gilberto Freyre, agora tema de uma exposição no Museu da Língua Portuguesa e de uma ''''biografia cultural'''' por Enrique Rodríguez Larreta e Guillermo Giucci (editora Civilização Brasileira). No livro fica clara a importância de seus estudos nos EUA, não só por conhecer a antropologia do alemão Franz Boas, mas também por testemunhar a discriminação racial do período, que o levaria por contraste ao elogio da miscigenação brasileira.
Os autores dizem que Freyre teve experiências com rapazes em Berlim, mas isso não tem muita conseqüência em sua obra. As memórias que realmente definiram sua teoria são outras: ''''(O menino da casa-grande) recebeu também nos afagos da mucama a revelação de uma bondade porventura maior que a dos brancos; de uma ternura como não a conhecem igual os europeus; o contágio de um misticismo quente, voluptuoso, de que se tem enriquecido a sensibilidade, a imaginação, a religiosidade dos brasileiros'''' (pág. 355 de Casa Grande & Senzala).
RODAPÉ (2)
O título do livro de Elizabeth Lorenzotti sobre o lendário Suplemento Literário do Estado, Que Falta Ele Faz! (Imprensa Oficial), se apropria de uma exclamação que já se tornou rotineira 50 anos depois. O caderno tinha os melhores críticos paulistas da época, como Décio de Almeida Prado, Antonio Candido e Paulo Emílio Salles Gomes. O jornalismo mudou, mas a crítica e a cultura mudaram mais ainda. Esses eram autores que escreviam sem ''''transigir com o leitor médio'''', mas também sem a linguagem hermética que professores cada vez mais assumiriam. Isso é o que faz mais falta.
Há iniciativas, mas o saldo é amplamente devedor. Enquanto revistas que vão razoavelmente bem como a Piauí, ao contrário de seu modelo, a New Yorker, não querem saber de crítica cultural, outras dedicadas a essa inglória tarefa estão prestes a fechar, como a Entrelivros.
Agora eis que surge a versão brasileira da revista Granta, que já foi mais importante, mas ainda faz bom trabalho de revelação de autores de ficção e não-ficção. O primeiro número traz histórias de escritores americanos jovens - alguns conhecidos por aqui, como Safran Foer e Nicole Krauss; outros que merecem ser, como Gary Shteyngart e John Wray. A revista , ato corajoso da editora Objetiva/Alfaguara , será semestral e a partir do próximo número terá cerca de 40% das páginas ocupadas por autores brasileiros. Boa sorte.
DE LA MUSIQUE
Dois CDs de alto nível que trouxe na bagagem confirmam a idéia de que, além de ousadias na arquitetura e no cinema, talvez o melhor da cultura atual esteja nos intérpretes. Vadim Repin, que acaba de gravar pela Deutsche Grammophon o Concerto de Violino e, com Martha Argerich, a sonata Kreutzer de Beethoven, sob regência de Riccardo Muti com a Filarmônica de Viena, pode não ser original, mas seu som é puro e preciso como o de um David Oistrakh.
Já Evgeny Kissin, na gravação pela EMI do Concerto para Piano nº 24 de Mozart e do Concerto para Piano em Si Menor de Schumann, é um pianista de primeira, que especialmente com Schumann valoriza texturas, contrastes românticos, que lhe valeram comparação com Murray Perahia. Tradições vivem de revisões.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
Hoje é dia de plebiscito na Venezuela e, por vias eleitorais, pode ser que ocorra um atentado à democracia. Só mesmo Lula, que nem sabe a diferença entre presidencialismo e parlamentarismo, pode achar que um governante ter a aprovação da maioria é o mesmo que ser uma democracia em seu sentido exato. Chávez é o velho caudilho latino-americano, o militar personalista que se mete onde não é chamado - como quando usou o pior dos adjetivos para a democracia espanhola, ''''fascista'''', e levou o troco verbal do rei Juan Carlos - e só quer saber de se perpetuar no poder.
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Muito se fala da Cidade Limpa do prefeito Gilberto Kassab, e de fato a iniciativa foi boa, apesar de necessitar acertos , e teve adesão que está fazendo diferença. Mas acho que a manutenção de São Paulo deixa a desejar. Ruas e tubulações sujas, asfalto mal recapeado, iluminação deficiente, semáforos pifados, monumentos pichados - o que vemos não faz jus ao nome.
E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br