do capitalismo
Os países ricos já sofrem com os efeitos da crise imobiliária americana e podem amargar um impacto ainda mais drástico
se a maior economia do mundo entrar em recessão. Quem
pode salvar a situação? Justamente o grupo de países que
no passado era o problema e hoje é parte da solução. São os
emergentes, nações que venceram o atraso econômico graças
às reformas liberais a que se impuseram e agora lideram o
crescimento mundial. Essa liga dos super-heróis do capitalismo
tem poderes, mas também fraquezas que podem ser fatais.
Giuliano Guandalini
Ilustrações Sam Hart/cores Artur Fujita |
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Uma conjunção rara de fatores climáticos produziu, em outubro de 1991, uma portentosa tempestade vinda do Atlântico Norte dos Estados Unidos. Houve mortes e um estrago estimado em 200 milhões de dólares. Dada a combinação única de fatores, atribuiu-se ao evento o nome de "tempestade perfeita", título de um livro e um filme sobre o episódio. Desde então, a expressão integra o inglês coloquial para definir qualquer evento desastroso resultado de uma série de fatores agindo de forma simultânea. Na semana passada, o economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), Simon Johnson, recorreu a ela para dar dramaticidade a seu prognóstico sombrio sobre a economia mundial. Disse Johnson: "Lidamos com o potencial de uma colisão entre uma crise financeira do século XXI e um choque do petróleo ao estilo do ocorrido na década de 70. Seria como se uma tempestade perfeita atingisse o mundo". As economias modernas gastam apenas metade do petróleo de que precisavam há quarenta anos para cada dólar (deflacionado) de riqueza que produzem hoje. Mas ainda assim, a 100 dólares o barril e sem perspectiva de queda drástica, o petróleo é um fator a ser considerado na formação da "tempestade perfeita" temida por Johnson.
O outro, a crise americana, é um perigo claro e presente. Princesa do capitalismo global, a economia americana está namorando com o abismo. O mercado imobiliário entrou em colapso, as instituições financeiras amargaram fortes perdas e é elevada a probabilidade de os americanos viverem, em 2008, a primeira recessão desde 2001. Somem-se a isso a letargia da Europa e o marasmo japonês e um cenário catastrófico para a economia mundial começa a tomar forma no horizonte.
Conjunções como essas têm força para arrastar o mundo para uma forte recessão. Já se viu esse filme no passado. Mas, felizmente, há algo de novo e muito positivo no ar. É a liga dos novos super-heróis do capitalismo – os grandes países emergentes, recém-emersos de décadas de isolamento e irracionalidade econômica, famintos por recuperar o tempo, a produtividade e o desenvolvimento perdidos. Integram essa liga Brasil, Rússia, Índia e China (Bric), nações que já lideram o crescimento mundial e dão ao capitalismo um impulso inédito. "Esses quatro países são hoje, inquestionavelmente, a força mais dinâmica da economia global. Graças à emergência deles, o crescimento potencial do planeta é bem superior ao de duas décadas atrás", afirmou a VEJA o professor da Universidade Harvard Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do FMI. Qual é a fonte desses superpoderes? Uma fase inédita de prosperidade, decorrente da abertura ao comércio mundial, do incentivo à iniciativa privada e da conseqüente inserção de 3 bilhões de novos consumidores no mercado mundial. Esse processo foi descrito magistralmente por Lawrence Summers, ex-secretário americano do Tesouro, como a maior revolução econômica dos últimos 1 000 anos, ao lado do Renascimento e da Revolução Industrial. Exagero? Talvez não. A Revolução Industrial do século XVIII despejou seus efeitos positivos sobre apenas um terço da população mundial. A revolução a que se refere Summers brindou todo o planeta e agora está ajudando a produzir um inédito reequilíbrio internacional de forças – e, pela primeira vez, a balança pender para o lado dos que sempre foram os fracos da equação econômica mundial. Na década passada, os hoje emergentes se envolveram em crises seguidas e estiveram sempre no epicentro do problema. Agora, eles são parte da solução.
Essa revolução não é fruto do acaso ou do determinismo. Essas nações venceram resistências internas para abandonar modelos econômicos retrógrados e isolacionistas. Decidiram ingressar no comércio global e seguiram um disciplinado e duro roteiro de reformas liberalizantes. De aplicados aprendizes de modelos vitoriosos, eles agora podem até posar de mestres. Há vinte anos, China e Índia, as duas nações mais populosas do globo, eram países rurais e atrasados, dominados pela pobreza extrema. Sob a liderança capitalista de Deng Xiaoping, os chineses se livraram do marxismo tosco legado por Mao Tsé-tung. Hoje, dois terços da economia chinesa estão nas mãos do setor privado, e as bolsas de valores do país são as mais frenéticas do mundo. A Índia pulou do caos para a era da comunicação avançada em poucas décadas. Sua sociedade, anteriormente engessada em castas, ganhou mobilidade. A classe média progride aceleradamente e a pobreza, ainda que gigantesca, tem caído – menos de 20% dos habitantes vivem na miséria, contra mais de 50% há três décadas.
"A pobreza não tem nada de socialismo. Ser rico é glorioso", afirmou Deng certa vez. Sábias palavras. A Rússia também deixou de viver sob o jugo comunista da União Soviética, que colapsou em 1991, abraçou o capitalismo e avança rapidamente impulsionada pela riqueza de suas reservas de gás e petróleo. Já o Brasil não chegou a se alinhar completamente ao modelo marxista-leninista, mas perseguiu no passado um modelo de desenvolvimento baseado no investimento estatal que entrou estrepitosamente em fracasso depois da redemocratização, em 1985. O país passou por seis planos econômicos e decretou a moratória da dívida externa. Mas, a partir do Plano Real, em 1994, reencontrou o crescimento, depois de ter debelado a inflação e exterminado a dívida externa. Pela primeira vez em duas décadas, o PIB (produto interno bruto) brasileiro voltará a se expandir em ritmo superior ao da média mundial. Exemplos abundam de como esses países se salvaram ao superar a "síndrome de coitados" – a idéia anacrônica de que seu subdesenvolvimento se devia à exploração das nações mais ricas.
O pensador inglês Paul Johnson defendeu com brilho a tese de que, se os estados não atrapalharem com tiranias, injustiças e impostos sufocantes, a tendência ao progresso das pessoas é inevitável. Os surtos de avanço material e social no passado das nações européias, do Japão e, claro, dos Estados Unidos só se deram quando aquelas condições foram conquistadas. Os países emergentes que agora formam a liga de salvação do capitalismo, depois de muito bater cabeça, acabaram por adotar aqueles mesmos princípios fundamentais que foram a base do desenvolvimento econômico do Ocidente nos séculos XIX e XX. É só céu de brigadeiro para eles de agora em diante? Certamente, não. Os Brics ainda apresentam algumas fragilidades estruturais que, se não forem atacadas, podem, no longo prazo, solapar todo o tremendo avanço institucional das duas últimas décadas. A China, por exemplo, terá de deparar com a distensão de seu totalitarismo político. A Índia ainda resiste em se abrir plenamente aos investimentos privados e possui uma infra-estrutura precária. Na Rússia, o dirigismo estatal exerce uma mão pesada sobre a economia, afugentando capitais. O Brasil, por sua vez, mantém um viés anticapitalista meio jeca que obriga os governos a procrastinar há anos as reformas essenciais. Algumas vezes, apesar de todas as evidências de que se fizeram as coisas certas, as forças políticas voltam a flertar com um capitalismo de estado atrasado e ineficaz. Afirma Rogoff: "O Brasil tem potencial para crescer tanto quanto a China e a Índia. Para acelerar esse processo, é preciso reduzir a participação do governo na produção e transferir poderes ao setor privado, que é muito eficiente no país. A função do governo, basicamente, é melhorar a qualidade de serviços para a população. O estado está crescendo muito no Brasil, em contraste com outros países emergentes".
Ainda assim, esse grupo de países já produz efeitos monumentais e indeléveis na economia global. Por uma dessas ironias da história, quem descreveu com clareza essa revolução foi o filósofo Karl Marx. No Manifesto Comunista, panfleto escrito a quatro mãos com Friedrich Engels em 1848, Marx relata como os empresários capitalistas, na procura por novas fronteiras onde possam expandir seus lucros, avançam por todo o globo. "Os burgueses (ou seja, capitalistas), por meio do avanço rápido de todos os instrumentos de produção e pela facilidade dos meios de comunicação, arrastam todas as nações, até mesmo as mais bárbaras, para a civilização." É isso mesmo. Da barbárie para a civilização.
Com reportagem de Julia Duailibi e Cíntia Borsato
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