Entrevista:O Estado inteligente

sábado, dezembro 01, 2007

André Petry

Vala negra, mãe gentil

"O Brasil levará 265 anos para universalizar
o saneamento básico. O que é um país que
consome quase três séculos para dar
esgoto a todos?"

No dia em que saiu a notícia de que o Brasil ingressara no pelotão dos países desenvolvidos e, de acordo com o presidente Lula, virara um país "chique", saiu também a notícia de que todos os brasileiros terão esgoto só daqui a 115 anos.

A história informa que o primeiro contrato para construir rede de esgoto na cidade do Rio de Janeiro é de 1857. O governante era dom Pedro II. Só havia esgoto em Londres e Hamburgo. O Rio seria a terceira cidade do mundo a ter rede de esgoto. "Chique." Depois de 150 anos, nem o Rio tem 100% de esgoto. O bairro que quase chega lá é Copacabana, com 99%, seguido pela Ilha de Paquetá, com 98%.

Contando-se os anos a partir do primeiro contrato feito no Rio até a cobertura total, em 2122, o Brasil terá levado 265 anos para universalizar o saneamento básico. O que é um país que consome quase três séculos para dar esgoto a todos?

O Brasil levará 115 anos fazendo rede de esgoto porque não se importa com isso. Na semana passada, deu-se mais atenção, para elogiar ou criticar, à promoção do país ao clube dos desenvolvidos do que à notícia do esgoto. É por isso que o Brasil vive encantadoramente bem sob o paradoxo dos excrementos, conforme mostra o estudo da Fundação Getulio Vargas em parceria com a ONG Trata Brasil:

• Levando-se em conta a cor da pele, quem tem a pior cobertura de esgoto são os pardos. Só 37% dispõem do serviço. Até os indígenas estão melhor: 44% têm esgoto.

• O Brasil não é ruim em serviços básicos. Tem uma larga rede de água, de luz e de coleta de lixo. Só é ruim em esgoto. É fácil entender por quê. As vítimas preferenciais da falta de esgoto são mulheres grávidas e crianças de 1 a 6 anos. Mulheres não comandam o voto em casa. Crianças não votam. Esgoto é obra que, correndo por baixo da terra, não se vê. Político não gosta de obra invisível que atende gente que não vota. A faixa etária mais atendida por esgoto no país é a que vai dos 50 aos 54 anos. Eleitores em plena forma. A menos atendida é a de zero a 4 anos. Eleitores longínquos.

• Pode-se alegar que, num país continental, com imensas áreas rurais, universalizar o esgoto é uma quimera. De fato, só 3% dos moradores de áreas rurais têm esgoto. Ocorre que, mesmo nas áreas metropolitanas, o acesso pára em 63%.

• Há cidades com mais de 100 000 habitantes em que o esgoto não chega nem a 3% dos moradores. Entre elas, Abaetetuba, agora elevada à condição de estrela nacional pelo estupro da adolescente presa com trinta homens. Em Abaetetuba, só 0,3% da população tem esgoto.

• São Paulo lidera o ranking nacional, o que não surpreende: 84% dos paulistas têm esgoto. E o velho Sul maravilha? É outro paradoxo. Em Santa Catarina, só 10% contam com esgoto. No Rio Grande do Sul, só 15%. Porto Alegre é a única região metropolitana em que a cobertura caiu em vez de aumentar: em 1992, era 20%. Em 2006, só 10%.

O pessoal de Saneamento Básico: o Filme bem que acertou ao localizar seu enredo do monstro da fossa na gaúcha Bento Gonçalves. Ali, só 46% têm esgoto. Na favela da Rocinha, 61%.

É dura a realidade dos filhos desta vala negra, mãe gentil.

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