15.05.2004 | O presidente Jacques Chirac tem um problema com álcool. Num país onde o vinho é a bebida nacional, Chirac gosta mais de cerveja. A França é o país que mais consome vinho no mundo: são 75 litros por francês ao ano. Os maiores tomadores de cerveja são os checos (160 litros/habitante/ano), seguidos de perto pelos irlandeses (155 litros). A França vem em trigésimo-quinto lugar (39 litros) – e o Brasil em vigésimo-sétimo (50 litros).
O que talvez seja mais grave, Chirac prefere a cerveja belga à nacional. Ele está na contramão não só do gosto popular como do seu eleitorado específico: na França, a cerveja é tomada principalmente pelos jovens, e a maioria dos que votam em Chirac tem mais de 45 anos.
Não que o presidente não aprecie ou não tome vinho. Quando a rainha Elisabeth II, da Inglaterra, esteve em Paris no mês passado, Chirac ergueu um brinde a ela no jantar de gala com uma taça de um excelente vinho da Borgonha, um Chateau Mouton Rotcshild.
Em campanha eleitoral, ou em visita a feiras de agricultura e alimentação, Chirac toma um golinho de tudo o que os eleitores ou expositores lhe oferecem: conhaque, calvados, cidra, champanhe, armagnac, poire etc. Mas com amigos, em restaurantes e brasseries, o presidente sempre pede cerveja belga.
Os hábitos etílicos do presidente não configuram uma preocupação nacional. Mas sazonalmente aparecem referências na imprensa. E quando se fala com um francês sobre bebidas, é batata: vem a informação, seguida de um muxoxo ou de um sorriso maledicente, de que o presidente gosta de cerveja belga.
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O presidente Lula tem um problema com álcool?
Nas vezes que estive com ele, não notei problema algum. Uma vez, ele almoçou no restaurante que havia no andar de cima da redação de “Veja”. Tomou, como todos os outros que estavam à mesa, uns dois copos de vinho. Depois, ele e um assessor tomaram uma dose de licor Stregha.
Há quatro anos, durante um jantar num restaurante no Jabaquara que ele frequentava, onde havia um excelente camarão à provençal, Lula bebeu uma dose de uísque e, quando muito, dois copos de cerveja. Era uma conversa sem objetivo definido.
Na campanha para as prefeituras de 2000, acompanhei Lula durante uma semana para fazer uma reportagem. Fomos ao Rio Grande do Sul, ao Paraná e a Pernambuco. Ele bebia em alguns almoços e em outros, não. No jantar, bebia sempre. Tomava a bebida que lhe oferecessem. Se houvesse uísque, de uísque ia. Duas doses, no máximo. Aqui em Paris, no ano passado, num coquetel de fim de dia, assim como os cinco ex-primeiros socialistas que estavam na embaixada do Brasil, o presidente tomou vinho.
Já bebi com outros presidentes: Ernesto Geisel, José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso. Alguns beberam menos (Sarney), outros mais (Lula), mas todos cabem na categoria de bebedores sociais: aquele a quem o álcool não afeta o desempenho profissional e o equilíbrio emocional. Nunca o vi nenhum deles bêbado, ou um pouco alterado, ou eufórico, por ter bebido demais.
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Se nunca demonstrou ter problemas com bebida, Lula passou a beber mais, ou em excesso, ao se tornar presidente?
Dois conhecidos (gente de cinema) que participaram de projeções de filmes no Palácio do Alvorada me disseram que o presidente bebeu muito. Um deles contou: duas doses, grandes, de uísque, antes do filme. Durante a projeção, um garçon não deixou o copo do presidente esvaziar. No jantar, ele tomou vinho. Depois, fez um discurso que o meu interlocutor considerou desconexo. Ambos me disseram que o presidente falou palavrões à torto e à direito. E usou uma expressão bem grosseira – que não irei reproduzir por receio que o Planalto me obrigue a voltar ao Brasil).
Dois outros amigos, jornalistas, contaram que se bebia bastante nos churrascos e peladas de fim de semana na Granja do Torto. O que pode parecer uma grande revelação, mas alguém já foi a um churrasco com futebol onde não se bebesse tonéis de cerveja ou caipirinha?
Passei a acompanhar o noticiário político pela lente etílica. Repetidas vezes, notícias envolvendo o presidente relataram com detalhes, de passagem, como quem não quer nada, o que ele bebeu. Exemplo: o jantar com jornalistas na casa de uma colunista em Brasília.
Houve referências explícitas. O presidente da CUT disse que o presidente bebeu antes de tomar uma determinada medida. Uma colunista de economia repetiu o mesmo raciocínio, mas em relação a outra medida. Carlos Heitor Cony escreveu na “Folha” que o presidente é chegado a um “aperitivo”.
Começaram então as piadas. Em telefonemas e emails. E também de gente de passagem por Paris, inclusive funcionários do governo. Algumas delas caíram na internet. Aqui mesmo, no “Nominimo”, Tutty Vasquez disse que o novo avião presidencial vai se chamar “Air Force Fifty-One”. Segundo me contaram, um programa humorístico de televisão, chamado “Casseta e Planeta”, também fez graça com os supostos exageros etílicos do presidente.
Aí comecei esperar a reportagem. Era fatal que alguma publicação da grande imprensa se dispussesse a esmiuçar a relação de Lula com a bebida. Se políticos e jornalistas, se os poderosos, se o magma onde se fundem as fofocas brasileiras falava de Lula e bebida, a pauta estava dando sopa e alguém iria transformá-la em matéria. Ainda mais numa quadra em que a popularidade do governo estava em queda.
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Leon Trotsky escreveu na sua biografia de Stálin, que ficou inacabada porque Stálin mandou que lhe cravassem uma picareta de gelo na cabeça, que na Rússia a expressão que designa um alcólatra na última linha é “mais bêbado que um sapateiro georgiano”. E lembrou em seguida que Stálin era filho de um sapateiro georgiano. Acusar o adversário de bêbado é moeda corrente na luta política.
Não apenas porque o excesso de álcool altera a capacidade de discernimento. O alcolismo é problema de saúde pública na maioria dos países. (Nos países muçulmanos, Alá seja louvado, pelo menos esse problema não existe).
Em si, dependendo da personalidade do político, o consumo de álcool independe não só das idéias que ele defende como não tem ligação direta com a sua capacidade de elaboração e liderança. Hitler não bebia. Churchill bebia feito um gambá – uísque e champanhe – o que não o impediu de ser um democrata e liderar a resistência contra o fascismo.
O alcoolismo é um problema na Rússia há quinhentos anos, quando foi inventada a vodka. Trotsky, que não bebia, tinha idéias de como combater o alcolismo. Perdeu o poder antes de colocá-las em prática. Stálin, que bebia (sobretudo vinho georgiano, que é ruim paca), ordenou durante a Segunda Guerra Mundial que se desse uma dose de vodka todas às noites a cada soldado do Exército Vermelho.
Mikhail Gorbachev quis controlar a produção de vodka. Àquela altura, 40% da população masculina russa padecia de alguma forma de alcolismo.
(Essa é uma questão complicada: o que é o alcolismo? Tecnicamente, uma pessoa que bebe diariamente é alcólatra, pois não concebe a existência sem bebida. É um viciado, um dependente. Mas geralmente é considerado alcoólatra aquele cuja vida é atrapalhada pela bebida: ele perde o emprego, agride a mulher, precisa beber de manhã etc).
Boa parte da produção de vodka, durante os anos confusos da glasnost e da perestroika, caiu na ilegalidade. Ela passou a ser destilada em alambiques clandestinos, que produziam veneno, literalmente. Entre outros motivos, Gorbachev se tornou impopular, sobretudo nas camadas mais pobres, porque quis limitar o consumo de vodka.
Seu sucessor, Boris Ieltsin, fez campanha e foi eleito, também entre outros motivos, porque prometeu diminuir o preço da vodka. Ieltsin era (é ainda?) alcoólatra, em qualquer sentido que se dê à palavra. No congresso do Partido Comunista em que ele rompe com o stalinismo, a televisão mostrou, ele andava pelos corredores do plenário em ziguezague, bebadaço.
Vladimir Putin foi reeleito prometendo não aumentar o preço da vodka. Mas ele nunca bebe em público. Só vai de água mineral. E tem imagem de esportista, se vangloria de lutar bem judô. A imprensa russa diz que ele é mais popular entre as mulheres do que entre os homens. Justamente porque não bebe: o alcolismo, em qualquer país, é uma doença eminentemente masculina.
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Durante a campanha eleitoral, Lula declarou que gostava de tomar uma cachacinha. Na sua coluna em “Veja”, em setembro de 2002, Diogo Mainardi escreveu que gostaria de saber quantas cachaças Lula gostava de tomar por dia. Como eleitor, a informação lhe parecia pertinente: uma coisa é votar em quem toma uma cachaça de vez em quando; outra, votar em quem toma quatro por dia. Mainardi, se não me falha a memória, deu o exemplo de Jânio Quadros, um pau d’água que chegou à presidência sem que se questionasse a sua resistência ao álcool.
No mês passado, Mainardi voltou a associar Lula e bebida. Ele sugeriu que o presidente parasse de beber em público, para não parecer que esteja incitando o consumo de álcool.
A sugestão é sensata, em termos de saúde pública. No Brasil, o alcolismo está entre as dez maiores causas de internações clínicas. Ele é responsável também por 10% das faltas ao trabalho e 80% dos acidentes de trânsito. E também pela degradação, pela ruptura familiar, pela infelicidade e traumas de crianças: quem tem ou teve amigos alcólatras sabe do que estou falando.
Como o problema existe, é pertinente todo esforço para não banalizar o consumo de álcool. É só por esse motivo que na França é proibida a propaganda de álcool – assim como de cigarro. Inclusive cerveja, que só no Brasil não é considerada uma bebida alcólica.
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Para vexame da imprensa brasileira, a esperada reportagem sobre Lula e a bebida foi feita por Larry Rother Jr e acabou saindo no “New York Times”.
A reportagem é pertinente. Não conta nenhuma mentira. Fala das conversas sobre o assunto. Diz que quase ninguém quer se pronunciar em público sobre o tema. O correspondente tentou ouvir o porta-voz do presidente. Repetiu algumas piadas. Reproduziu algo do que havia sido publicado a respeito: frases fora de contexto de uma coluna de Diogo Mainardi, uma piada da coluna na internet de Claudio Humberto Rosa e Silva, um comentário de Ali Kamel n’“O Globo” – sendo que esse último defendia que havia preconceito contra Lula). O mais importante: Larry Rother reconheceu claramente que era impossível dizer se havia um problema do presidente com a bebida.
A reportagem do “New York Times” não é uma denúncia. Ela me pareceu uma típica matéria de correspondente estrangeiro, numa edição de domingo carregada de tortura no Iraque: é leve, trata de um tema pouco importante, busca retratar uma situação entre o exótico e o folclórico, traz uma foto engraçada com Lula rindo, de chapeuzinho vermelho, segurando uma caneca de cerveja acima da cabeça.
A matéria tem uma estupidez: o título. Ele diz que o jeito de Lula beber tornou-se “preocupação nacional”. O erro não foi de Larry Rother, que em nenhum momento usa a expressão “preocupação nacional”. Foi um erro de edição.
Certamente que a reportagem poderia ter sido melhor, mais completa. Qualquer publicação brasileira (exceto o “JB”), teria recursos para fazê-la. Não a fizeram porque não quiseram. Quem a fez foi Larry Rothman, do jeito dele. Um jeito isento e profissional, como disseram o diretor de redação do “Times” e o ombudsman do jornal.
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Aconteceu o que se sabe. Políticos da situação e da oposição enrolaram-se em estandartes auriverdes e saíram em praça pública, rufando tambores contra o ultraje à honra nacional. O imperialismo ianque foi fustigado. A notória associação do Departamento de Comércio americano com Larry Rother foi exposta. A sobejamente conhecida incapacidade da imprensa americana de produzir uma reportagem decente foi repisada. Veio a nu o sórdido complô entre o ex-porta-voz de Collor, Brizola e as multinacionais. A decadência inevitável do “New York Times” (vide Jayson Blair!) foi confirmada e reconfirmada. Um exaltado chegou a dizer que o jornal está ainda pior que o “JB”. A nota oficial do Palácio do Planalto usou o termo “amiúde”, esclareceu que os hábitos do presidente não diferem do dos seus compatriotas e nos informou, sisuda, que às vezes Lula trabalha “mais de doze horas” por dia.
O Brasil estava unido contra o nefando Rother, o seu jornal empulhador e o sinistro torturador George W. Bush. O Brasil defendia com gunhas e arras o seu presidente. O Brasil se insurgia contra os dragões da maldades. Emocionado, derramei algumas furtivas e patrióticas lágrimas no bar mais próximo, o Poliveau, entornando um copinho de poire – sim, confesso, eu era um admirador da Turma do Poire, liderada por Ulysses Guimarães, um bebe-quieto por excelência.
No dia seguinte, o presidente acordou invocado e expulsou o jornalista peçonhento. Tudo se transformou no seu contrário. Lula foi chamado de tacanho, turrão, beócio, primitivo, prepotente, arrogante, destemperado.
Passaram mais alguns dias e o presiente, magnânimo, voltou atrás na expulsão, apesar do jornalista não ter pedido desculpas. Chamaram a turma do deixa-disso. Acochambraram. Medraram. Deram um jeitinho. Acabou em pizza.
Para desespero de meus familiares, desde o início da “crise” passei a cantarolar os versos irmortais:
“Se você pensa que cachaça é água
Cachaça não é água não
Cachaça vem do alambique
E água vem do ribeirão”.
A marchinha não me sai da cabeça. É um inferno.
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Como fica a imagem brasileira no exterior?
Nenhum jornal francês repercutiu a reportagem do “Times”.
Eles deram notas curtas sobre a expulsão do correspondente americano, comum resumo sumário da matéria de Larry Roth.
Para se ter um exemplo do senso de proporção: o “Monde deu dez linhas sobre Lula, “Times” & bebida. E deu na íntegra, em uma página inteira, o relatório da Cruz Vermelha sobre as tortura dos militares americanos no Iraque. Engraçados os franceses, não? Eles se interessam por assuntos absolutamente marginais. Não captaram o que havia por trás da matéria do “Times”.
No caminho do restaurante, para jantar com um amigo francês, Alain, ele me perguntou: Que história é essa do “Monde” de hoje que o presidente do teu país bebe? Chegamos ao restaurante, as crianças nos distraíram, o assunto mudou, falamos do Iraque, de anti-semitismo na Alsácia, de “Cidade de Deus”, dos filhos, das perspectivas de Chirac para 2007, das Olimpíadas. E por aí foi. Esquecemos de Lula.
Ninguém está preocupado na França com o Brasil, com o seu presidente, beba ele ou não. Houve um período, entre a eleição e, digamos, um ano depois da posse de Lula, quando se acreditava que o PT fosse oferecer uma alternativa à esquerda, que o Brasil foi levado a sério. Esse período acabou. Ninguém quer mais saber de nós.
Nem nós, brasileiros. É infindável a nossa capacidade para nos envolvermos em discussões estéreis. Vocês passaram um mês debatendo aí se aquele sambista bêbado deveria ter deixado de fazer propaganda da cerveja A para fazer da B. Depois vocês passaram mais um mês falando de bingo. E agora derrubaram florestas e secaram rios de tinta para atacar o americano, defender o presidente, e depois defender o americano e atacar o presidente. Como se isso tivesse alguma importância. Como se isso fosse resolver algum problema nacional. Nenhum brasileiro melhorou ou piorou de vida com a reportagem de Larry Rother e a gritaria que se seguiu a ela. O Brasil continuou na mesma. O Brasil não sai da mesma. Essa é a sua tragédia.