Sim, hoje é dia de eleição! Que sorte temos, os habitantes de cidades onde está havendo segundo turno. Podemos votar de novo, mais uma vez participar desse espetáculo nobre e enobrecedor, que nos enche de brio o peito já ufano. Somos livres, somos soberanos, somos quem verdadeiramente manda em nosso país, somos uma democracia exemplar - e como é lindo ver o povo neste dia engalanado, decidindo sobre o próprio destino. Dia da liberdade, dia da justiça, dia da verdade.
Não é nada disso, é claro, mas preferi começar assim porque vocês, caridosos leitores e eleitores, não têm nada a ver com meu mau humor (escrevo um pouco antes deste domingo, mas tenho certeza de que o mau humor persiste ou até piorou) e muito menos obrigação de aturá-lo. Esse começo - confesso agora, um pouco envergonhado - foi um esforço de fingimento e brincadeira que eu tencionava levar adiante, ao sentar-me diante deste teclado. Que diabo, não vamos ficar repetindo a inútil ladainha de sempre, vamos - desculpem - relaxar e gozar. É isso mesmo, não tem jeito, talvez as coisas melhorem quando os nossos netos começarem a ter netos, previsão que considero otimista não só para o Brasil como para esta espécie atrasada que é a humanidade, mas que, de qualquer forma, é uma esperança.
Certo, certo, mas, intrigantemente, minhas mãos não me obedecem e parece que ficam digitando as teclas que elas próprias escolhem, em vez das que o suposto dono delas preferiria, como talvez acontecesse num conto de Borges ou Poe. Experiência interessante, esta. Um pouco esquizofrênica, quiçá, mas até divertida. O dono das mãos pode fingir ou mesmo mentir explicitamente, mas as mãos se recusam a isso. Aceito opiniões psiquiátricas sobre este curioso fenômeno, embora rogue que sejam encaminhadas ao editor.
Os fatos desmentem que sejamos uma democracia representativa. Em rigor, não somos nem mesmo uma democracia. A soberania é nominalmente popular, mas sabemos que os chamados representantes não soem representar ninguém a não ser eles mesmos e os governantes não agem como servidores dos governados, mas como seus patrões, com a nossa aviltante concordância ou mesmo subserviência. Para isso, cobrem-se de privilégios, imunidades, salvaguardas, firulas jurídicas ou puro e simples banditismo. Mas fazem o que querem, não dão satisfação a ninguém e é raro o caso de político brasileiro que não morre com seus bens, no próprio nome ou no de manjados laranjas, consideravelmente aumentados.
Ninguém entre os poderosos é punido por coisa nenhuma, como também sabemos. Não quero nem imaginar o que me responderiam e há o risco de ser eu que acabe entrando em cana, se perguntar, por exemplo, que aconteceu ao dr. Palocci por (supostamente, apresso-me a acrescentar, a fim de evitar a dita cana) se ter valido do cargo para cometer uma gravíssima violação da lei, segundo foi acusado (supostamente, alegadamente, etc.). E esse exemplo é um entre, sei lá, dezenas, centenas ou, com certeza, milhares, se levarmos em conta o que de sujeira certamente ocorre sem que saibamos.
São Paulo, a maior cidade brasileira, uma das maiores cidades do mundo, de que tenho orgulho e de que todo brasileiro deveria ter orgulho, independentemente de bairrismos mesquinhos e bestas, ou preconceitos ainda piores, há muito vê a sua prefeitura abastardada por gente que não enxerga nela mais que um trampolim para posições de maior poder. Isso ofende, quer se tenha consciência ou não, São Paulo e os paulistas. E, porque não pode deixar de ser assim, ofende, também quer se tenha consciência ou não, a todos os brasileiros, porque São Paulo é patrimônio e galardão do nosso povo.
O Rio de Janeiro, emblema e amor nosso, a força cultural responsável por tanto da melhor identidade brasileira, hoje tem seu braço torcido, para votar em quem interessa ao poder. Que negócio é esse de insinuar ou ameaçar claramente que, se não dançar conforme a música do poder, o Rio de Janeiro vai se dar mal e ficar à míngua de recursos? O Rio de Janeiro não pode se dar mal porque não pode se dar mal e acabou-se. Seria uma indecência e uma aberração, se isso dependesse da vontade, da ambição ou do capricho de alguém. O Rio também é patrimônio e galardão do nosso povo e não é favor nenhum dar-lhe o que tem direito, nem apoiar decisivamente sua luta para vencer a violência, a insegurança e a corrupção que a assombram e ameaçam. É obrigação elementar e inescapável, inclusive moralmente.
E, em todo o país, golpes baixos para entortar de alguma forma a expressão da vontade dos eleitores, manobras torpes, enganação, chantagem, até assassinatos. Cada vez mais se torna patente que não basta votar, lavar as mãos e depois virar platéia, como é nosso costume. É preciso brigar, é preciso desafiar sadia e corajosamente o mau governante, é preciso que nos respeitemos o suficiente para nos fazermos respeitados, é preciso exigir, tomar satisfações, batalhar, ter vergonha na cara. Isto dizem estas duas mãos, porque, sim, o escritor pode mentir, mas as mãos do escritor não podem mentir.