Merval Pereira
Sem hegemonia
O presidente Lula tem sido muito criticado pelo fato de ter perdoado a dívida do Gabão, uma ditadura africana que visitou recentemente, e pelos financiamentos prometidos para obras viárias em diversos países vizinhos. Além do bilhão de dólares já anunciado para reativar o intercâmbio comercial com a Argentina, agora em momento delicado com as barreiras alfandegárias que estão sendo levantadas contra nossas exportações, o presidente Lula assinou convênios, no valor de outros tantos bilhões, tanto com o Peru quanto com a Colômbia para financiamentos de estradas e outros meios de integração regional.
O projeto brasileiro é ambicioso, e tem como objetivo criar, com a união do Mercosul e o Pacto Andino (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia), um pólo econômico que se contraponha aos blocos já existentes na Comunidade Européia, nos EUA com a Nafta e o grupo de países asiáticos. O presidente Lula, esta semana, disse que sonha com “a nação sul-americana”, numa reafirmação da política de união dos países da região, e não apenas comercial.
O especialista em política internacional Francisco Carlos Teixeira, da UFRJ, diz que é preciso “construir instituições comunitárias dignas, como tribunal arbitral para dirimir essas disputas eternas com a Argentina”, até chegar ao Parlamento e até mesmo à moeda única do Mercosul. Para ele, o Mercosul, do ponto de vista econômico, “seria até lesivo ao Brasil. Mas ele é um grande projeto político. Está ligado a essa projeção do Brasil como potência regional”.
O cientista político Clóvis Brigagão, diretor-adjunto do Centro de Estudos das Américas da Faculdade Cândido Mendes, diz que o Brasil “sempre teve dificuldade de assumir essa liderança e pagar a conta. Para ser líder, para ter parceiros ampliados, tem que pagar a conta”, ressalta ele, para quem os financiamentos fazem parte da “real politik”.
Bem-humorado, lembra da época do presidente Eurico Gaspar Dutra, quando os EUA mandaram iôiôs ao Brasil “e virou uma febre”. Agora o Brasil está dando computadores, kits-educação para países africanos. “Nós já perdoamos dívida da Polônia, por que não perdoar a do Gabão, diante dos interesses econômicos envolvidos?”, pergunta Brigagão, se referindo ao petróleo do Gabão.
Ele diz que nunca acreditou “nesse negócio de terceiromundismo”, embora sempre tenha sido “a favor de termos uma autonomia, de buscar a independência”. Brigagão acha que estão sendo construídas alternativas à hegemonia unilateral dos EUA “sem arrogância, sem pretensão de confrontação, mas também sem subserviência”. Liderança é hegemonia, lembra ele, para ressaltar: “Não é preciso que a hegemonia seja agressiva, como a de Bush”.
Clóvis Brigagão se preocupa com o déficit de civis treinados para participar em forças internacionais de cooperação, como a que o Brasil chefia no Haiti. Ele diz que a participação de brasileiros nos organismos internacionais é inferior à de países como o México e a Argentina, num momento em que o Brasil surge com destaque no cenário internacional.
O professor Francisco Carlos Teixeira, defendendo a aproximação com a África, lembra que “se estivéssemos crescendo a 5%, que deve ser a meta, teríamos um déficit de energia enorme, precisaríamos importar petróleo. Ficar na mão do mundo árabe- islâmico, além dos tumultos e da distância, é terrível. Aqui em frente, de Cabinda até a Nigéria, há o melhor petróleo possível, e temos condições de fornecer a eles o que eles precisam: técnicos, vacinas, assistência médica”.
Para ele, “é extremamente sábio, em termos de longo prazo, construir parcerias produtivas e não exploratórias com a África negra”. Segundo ele, perdemos nossa posição para a França, que “acabou ficando até com campos de petróleo que antes haviam sido apontados para a Petrobras”, na gestão de Fernando Henrique. Teixeira lembra que os EUA estão construindo uma superbase naval em Porto Príncipe, capital do Haiti, onde o Brasil chefia uma Força Internacional de Paz da ONU desde junho e onde haverá o jogo da seleção brasileira.
“Os americanos estão tentando se instalar também no Gabão e com grande interesse em Cabinda, além da Nigéria onde já estão instalados, tendo a África Negra como alternativa ao mundo islâmico”, ressalta Carlos Teixeira. Tanto ele como Brigagão concordam que a atuação do Brasil como líder regional não deve ter o caráter hegemônico, e está sendo esperada pelos vizinhos.
“A interferência do Brasil na negociação da dívida da Argentina com o FMI, a intermediação do Brasil na Venezuela foram movimentos políticos importantes e bem-vindos”, ressalta Teixeira. Talvez nem tão bem-vindos para os EUA, que enxergam traços de uma tentativa de montar uma política externa brasileira de contraposição à hegemonia americana. Não é essa motivação, garante Francisco Carlos Teixeira, embora o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães seja tido por antiamericano. E no governo petista, há correntes que realmente sentem nostalgia de uma guerra ideológica contra os EUA.
Como lá também estão alojados próximos à Casa Branca falcões que ainda não se convenceram de que o governo Lula não tem nada a ver com o de Fidel ou o de Chávez, a quem agora o PT deu apoio formal, evidentemente sinalizando uma posição do governo Lula, que oficialmente é neutro, o potencial de conflito é enorme.
Quanto às obras de infra-estrutura financiadas pelo BNDES, Carlos Teixeira lembra que “grande parte das construtoras são brasileiras”. Segundo ele, as obras na Venezuela aumentam nossa capacidade de exportação: “A grande saída é o Caribe e a carretera Pan-Americana que abre o Pacífico para nossas exportações”. Brigagão chega a dizer que a Venezuela é mais estratégica para o Brasil do que a Argentina, inclusive por causa do petróleo. “Nós precisamos de uma Venezuela rica e estável politicamente”, concorda Francisco Carlos Teixeira.
Publicadoem: Sun, Aug 15 2004 12:57 PM
Entrevista:O Estado inteligente
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