Em boníssima, perfeita e providencial hora surge a história publicada pela Isto É, segundo a qual a mistura de ambição, ignorância, má-fé, açodamento e leviandade levou jornalistas e políticos de destaque nacional a um conluio que resultou na publicação de uma informação falsa que, 11 anos atrás, contribuiu decisivamente para a cassação do mandato do deputado Ibsen Pinheiro.
Além do prejuízo à reputação, à carreira e ao futuro do parlamentar, o embuste feriu o essencial compromisso com os fatos, implícito na relação entre imprensa e sociedade, cujo sustentáculo é a liberdade de expressão, ora em estado de questionamento explícito.
Em resumo, a ópera é a seguinte: o jornalista Luís Costa Pinto resolveu confessar que à época da CPI do Orçamento recebeu uma informação a respeito da movimentação financeira de Ibsen, publicou sem conferir e, depois de avisado do equívoco, cedeu à orientação de sua chefia para ''arrumar alguém'' da CPI que confirmasse o falso como verdadeiro. Encontrou um parlamentar disposto ao papel de ventríloquo de aspas e ficou assim tudo resolvido para desinformação do leitor e infortúnio do injustiçado.
Dias depois, a CPI corrigiu burocraticamente os valores - de US$ 1 milhão para US$ 1 mil -, não deu destaque ao fato, Ibsen Pinheiro foi de público execrado e lá se vão 11 anos do mais absoluto silêncio de todas as partes a respeito do episódio.
Surge agora a versão real e num momento especialmente feliz: quando o governo, de um lado, defende o controle da atividade jornalística e, de outro, acusa a imprensa e a oposição de promoverem uma ''onda de denuncismo'' contra esse mesmo governo.
Como pano de fundo, ainda temos a CPI do Banestado que reuniu um monumental banco de dados a respeito de centenas de pessoas, a partir da quebra indiscriminada de sigilos fiscais e bancários pedida pelo relator, José Mentor, um petista de relações estreitas com o ministro da Casa Civil, José Dirceu.
O mesmo José Dirceu que à época da CPI do Orçamento era deputado e, junto com o também então deputado e hoje senador Aloizio Mercadante, valia-se dos serviços do funcionário da Caixa Econômica Federal, Waldomiro Diniz.
O mesmo Waldomiro Diniz que, segundo o jornalista Costa Pinto, o procurou em 1993 para oferecer boletos bancários pertencentes a Ibsen Pinheiro como suposta comprovação de que o deputado teria movimentado US$ 1 milhão em suas contas.
''Pegamos o Ibsen'', disse ele, de acordo com Costa Pinto, ao apresentar os documentos - adulterados, viu-se depois - que tinha como tarefa fornecer à CPI, para uso externo dos parlamentares amigos.
Temos, pois, nessa confissão do jornalista, todos os elementos dos debates ora em cartaz.
Começando pela manipulação e uso ilegal de documentos de comissões parlamentares de inquérito: se, como acusa o governo, hoje são instrumentos utilizados pela oposição, o foram em larga e péssima medida usados pelo PT na leviana aliança que de quando em vez une políticos interessados em fazer da impressa canal de transmissão de seus interesses e jornalistas em busca de um sucesso tão rápido quanto inconsistente e socialmente nefasto.
Justiça se faça, tal prática não é nem foi prerrogativa exclusiva do PT. A indústria dos grampos, dos dossiês, da agressão aos direitos e garantias individuais tem criação e sustentação coletiva e suprapartidária.
O PT entra com destaque aqui porque age agora como se jamais tivesse tido participação nessa escola da ética do escândalo e do jornalismo de delegacia de polícia, que abre mão do dever de distinguir dados falsos de informações verdadeiras e se deixa usar pelo primeiro construtor de dossiês que lhe aparece à frente.
Propõe controle de informação, bem como ataca o Ministério Público, com conhecimento de causa, porque teme ser vítima do uso das mesmas armas de que se valeu contra os adversários.
Parte do pressuposto da má-fé, tenta imprimir a quaisquer acusações o vezo da engendração ardilosa e desmoralizá-las pela inoculação, no imaginário popular, do conceito geral de ''denuncismo''.
Denúncias há responsáveis e irresponsáveis, assim como existem as respondíveis e as irrespondíveis. Da mesma forma, entre procuradores, jornalistas e políticos transitam desviantes.
Nem de longe, por isso, corrigem-se situações pela via da restrição à liberdade, à investigação, à fiscalização, ao cotejo de dados, à exposição de contradições, à cobrança de explicações.
O episódio relatado pela Isto É mostra que a verdade tem várias formas de aparecer, ainda que demore e cause irrecuperáveis prejuízos. A única maneira de mantê-la eternamente desconhecida, porém, é a obstrução dos canais de informação à sociedade.
Nenhum conselho controlador teria o poder de evitar casos como esse. Mas a imprensa livre tem pelo menos como, através do constrangimento da exposição pública, contribuir para que se mantenham no terreno das exceções.
Entrevista:O Estado inteligente
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sábado, agosto 14, 2004
DORA KRAMER 14.8.2004 Cadáveres insepultos
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