Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 22, 2004

Agosto 22, 2004

Agosto 22, 2004
Antônio Ermírio de Moraes Atenas e os jovens

Atenas e os jovens
Antônio Ermírio de Moraes*
Empresário
Tenho visto muitos comentários a respeito da pequena safra de medalhas conquistadas até o momento pelos atletas brasileiros que compareceram a Atenas. Penso que, além de injustas, tais críticas não levam em conta a importância do esporte para a formação dos jovens.
É claro que o esporte, sozinho, não pode garantir uma boa educação e um bom desempenho das pessoas no trabalho e muito menos a solução dos megaproblemas sociais que pairam sobre nossa sociedade. Mas, quando praticado pelos jovens, o esporte alavanca o desenvolvimento pessoal e a sua integração na comunidade onde vivem. A atividade esportiva reforça o sentido da vida, desenvolve a ética de conduta e a própria disciplina de vida. O seu impacto, portanto, vai muito além da transformação física que proporciona às pessoas, chegando a ser um dos fatores mais importantes para a alimentação da sua auto-estima.
Por isso, vejo a maciça participação brasileira na Olimpíada da Grécia com muitos bons olhos e como um efeito de demonstração de grande importância para a juventude em geral.
Tenho certeza de que muitos jovens se animarão a praticar vários esportes, até então desconhecidos, mas que foram agora ressaltados na sua beleza pelas provas em Atenas.
O Brasil é conhecido mundialmente como o país do futebol. Mas o mundo está vendo que nossos jovens também se aplicam em várias outras modalidades esportivas, mesmo quando não trazem medalhas. Trata-se de uma juventude sadia - quem pratica esporte tem pouco tempo para o ócio, a bebida ou as drogas - e que busca no esporte uma forma eficiente de combater o sedentarismo do trabalho moderno e a influência nefasta da alimentação desbalanceada que domina os dias de hoje - em especial, o fast food.
Tenho acompanhado as provas dos nossos compatriotas e dos estrangeiros. Sinto orgulho de ver tantos brasileiros disputando os mais altos postos do esporte mundial. Alegro-me igualmente de ver o congraçamento que existe entre os adversários. Admiro a forma como eles se abraçam depois de terminados os jogos e na hora em que recebem os prêmios.
É claro, o ouro é o ouro. Mas os detentores do bronze e da prata são igualmente respeitados pelos ganhadores do ouro, pois todos sabem o esforço e a disciplina que são necessários para se chegar àquele nível.
Lamento apenas a inflação dos chamados auxiliares da nossa delegação. Vejo que países mais ricos do que o Brasil foram muito comedidos ao enviar apenas os técnicos que são absolutamente necessários. Essa é a mania que ainda ronda a vida esportiva do Brasil: os cartolas são mais numerosos do que os atletas.
Penso que isso também faz parte do aprendizado. Este momento é mais para cumprimentar e homenagear nossos jovens do que para avançar na crítica. A participação de tantos brasileiros em tantos esportes tem de servir de exemplo para as nossas escolas e clubes no sentido de apoiar e ampliar as oportunidades para crianças e adolescentes praticarem esporte com a maior atenção possível. Isto será importante para o amadurecimento da nossa infante cidadania.
*Antônio Ermírio de Moraes escreve para o JB aos domingos
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 8:16 PM
A situação ainda não é tão positiva : economista americano Werner Baer

A situação ainda não é tão positiva
O economista americano Werner Baer escolheu, por acaso, o Brasil como alvo de estudos nos anos 60. Nunca mais parou. PhD por Harvard, professor da Universidade de Illinois, passou os dois últimos meses no Ibmec Educacional colhendo dados sobre os primeiros anos do governo Lula para o capítulo que vai integrar a terceira edição de seu livro “A economia brasileira”. Em uma hora de entrevista, usou nove vezes as palavras dilema e desafio. Afirma que o Brasil continua vulnerável. Mesmo assim, se diz otimista. Flávia Oliveira
No livro “A economia brasileira” o senhor faz uma análise muito dura sobre a crise de 2002. Chega a afirmar que o Brasil seria forçado a renegociar as dívidas interna e externa, diante do tamanho do endividamento em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) e das incertezas sobre o novo governo. A que fatores o senhor atribui esse erro de avaliação?
WERNER BAER:Apesar do superávit comercial ter crescido muito, o Brasil ainda não está numa situação muito positiva. As taxas de juros lá fora estão aumentando. Por isso, não vai ser tão fácil diminuir o peso do serviço da dívida externa. Nos próximos três anos, o país terá que refinanciar 60% de sua dívida externa. Vai precisar, na média, de US$ 40 bilhões anuais para amortizações e serviço da dívida. O superávit comercial de US$ 21 bilhões não é suficiente e a entrada de investimento direto caiu. A situação nos próximos anos não será tão fácil como muitos acreditam.
O senhor ainda vê muita vulnerabilidade externa?
BAER: A vulnerabilidade não desapareceu, mesmo se o superávit comercial se mantiver na faixa de US$ 21 bilhões. E é difícil que ele continue a longo prazo, porque não há garantia de que a taxa de crescimento das exportações vá continuar. Se aumentarem os juros nos Estados Unidos, o crescimento lá vai diminuir e, com ele, o aumento das exportações do Brasil. O crescimento da China também está diminuindo. Por fim, nos últimos anos, o Brasil teve importações relativamente baixas. Mas se o país vai aumentar seu crescimento, haverá aumento de importações. Com isso, o superávit comercial não irá se manter no nível de agora. A possibilidade de um superávit menor com aumento do custo da dívida externa poderia frustrar os resultados otimistas que todos estão esperando.
Como o senhor avalia este ano e meio do governo Lula?
BAER: O Lula começou como a grande esperança da esquerda de uma grande reforma social no Brasil e com o medo do setor privado, especialmente internacional. A postura superortodoxa do governo provocou uma grande decepção na extrema esquerda e uma surpresa muito positiva nos mercados internacionais. O governo conquistou respeito internacional. Mas parece-me que o caminho do governo Lula é primeiro a ortodoxia, depois as reformas sociais para melhorar a distribuição de renda. A pergunta é se esta seqüência é possível. A boa vontade existe e o Bolsa Família é uma grande idéia. O problema é implementar. A burocracia sabe como fazer, há recursos para isso?
O governo vive um dilema?
BAER:Sim, existe um dilema. E há outro: uma margem de manobra muito pequena para gastos. Por outro lado, é muito interessante a sutileza do governo Lula. O presidente foi desde a juventude um líder sindical e teve de sobreviver negociando. Como presidente, Lula não assumiu uma posição de superioridade em relação ao Congresso. Tem um sucesso político que impressiona. Mas também tem problemas.
Quais são?
BAER:Um deles é o da reforma agrária. No PT, há muitos simpatizantes do MST, mas qual vai ser a posição do governo se as invasões continuarem? Se ficar do lado do MST, a reputação mundial do Brasil vai ser de não reconhecer a propriedade privada. E se a propriedade privada não é sagrada, a impressão será de que investir no Brasil é perigoso. Mas, apesar dos dilemas, tenho esperança de que Lula terá sucesso.
O país tem debatido a necessidade de renovar o acordo com o Fundo Monetário. O senhor acha que o Brasil pode abrir mão do FMI em 2005?
BAER: Gostaria que o Brasil não precisasse do FMI, mas o país ainda depende da ajuda dos grandes centros financeiros, que ainda olham o FMI para medir a confiabilidade do governo.
O Brasil e o mundo hoje se mostram muito impressionados com o desenvolvimento chinês. A China é mesmo um modelo a ser seguido?
BAER:A razão de a China ser tão popular é o crescimento, baseado parcialmente num capitalismo restrito ao Sul, baseado em salário de miséria. A China não é um modelo, é uma oportunidade para ganhar dinheiro rapidamente. Todas as companhias multinacionais de Japão, Taiwan, Europa e Estados Unidos estão indo para lá esperando ganhar dinheiro. Até agora, muitas não ganharam nada. O mundo capitalista de Estados Unidos, Japão e Europa vai ver mais cedo ou mais tarde que tem de ser muito cuidadoso ao colaborar com os chineses.
Como o senhor avalia o futuro das relações comerciais entre Brasil e Estados Unidos, as negociações sobre a Alca?
BAER:Seria interessante se o Brasil virasse um bloco para negociar com os Estados Unidos e a União Européia de maneira mais igual. Infelizmente, isso até agora não aconteceu por duas razões. Primeiro, os EUA são muito hábeis. Recentemente, Brasil e Índia lideraram um bloco e os EUA fizeram ofertas muito vantajosas ao México, ao Chile. Com isso, eles logo conseguem neutralizar o processo. O segundo problema é que o Mercosul não está funcionando muito bem. Os quatro países não têm coordenação da política econômica. O ideal seria uma moeda única, como o euro, mas isso implica um banco central internacional do Mercosul. Mas nem o Brasil nem a Argentina nem o Paraguai nem o Uruguai estão prontos para diminuir a soberania econômica. A mesma coisa com as políticas fiscal e cambial. Toda essa rivalidade está enfraquecendo o Mercosul, e com o isso será muito difícil para o Brasil liderar uma aliança capaz de negociar com os EUA e a União Européia de maneira mais igual.
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 6:48 PM
Augusto Nunes 22 08 204 O domador do tempo e dos ventos

Generalizações sempre incorrem no pecado do exagero, e freqüentemente conduzem a enganos grosseiros. Assim ocorre com estereótipos tão difundidos no Brasil. O político mineiro é discreto, manhoso, reservado, retraído, certo? Errado. A descrição talvez possa ser aplicada a alguém como Tancredo Neves. Mas como estendê-la a um Juscelino Kubitschek, também mineiro e tão loquaz, risonho, exuberante?
Tais adjetivos habitualmente revestem o estereótipo do político gaúcho. Parecem pertinentes na montagem do perfil de muitas figuras dos pampas – gente como Oswaldo Aranha, ou Flores da Cunha. Mas soam absurdos se utilizados para descrever o gaúcho Getúlio Vargas. Filho de São Borja, o maior político brasileiro não se enquadra nesse estereótipo. Não se enquadra em nenhum.
Singularidade à prova de clonagem, seria uma síntese de frutos do imaginário nacional. Foi o mais gaúcho dos mineiros. E o mais mineiro dos gaúchos.
Ministro do governo Washington Luiz, foi exemplarmente cauteloso. Derrotado na disputa pela Presidência, emergiu o lutador da fronteira.
Nos anos 20, aquele filho de terras conflagradas havia costurado, com habilidade e paciência tipicamente mineiras, uma inverossímil aliança entre “maragatos” e “chimangos”. Mas o conciliador vocacional convivia com o homem amadurecido num cenário beligerante, no Rio Grande das guerras civis. Em 1930, soube esperar a hora, e assumiu a chefia da revolução pronto para audácias gauchescas. Era o Getúlio fardado, sobre botas militares que o levariam ao poder.
Soube trocar de roupagem a tempo. Sempre soube o momento de mudar o figurino. Porque o destino lhe concedera a graça de adivinhar a direção e a força dos ventos. Como nenhum outro brasileiro, ele aprendeu a jogar com o tempo, e se antecipava a mudanças apenas esboçadas em horizontes invisíveis a outros. As coisas pareciam acontecer quando lhe convinham. Getúlio já estava à sua espera.
Assim seria também em agosto de 1954, embora o desfecho da tragédia aparentemente afirme o contrário. Trata-se de um paradoxo aparente. Getúlio não imaginou que ocorreria o atentado de 5 de agosto. É improvável que tenha adivinhado a extensão e a profundidade dos ódios acumulados contra um homem que sabia sorrir, que até gargalhava. Mas decerto não o surpreenderam o som da fúria, a proliferação das carrancas, a debandada de antigos aliados.
Ele tentou antecipar a movimentação política em torno da escolha do sucessor, mas a eleição ainda estava distante. Desta vez, o tempo não lhe serviu de trunfo. Então, decidiu inverter a direção dos ventos e retomar o controle do tempo. Como um mineiro desafeito a confidentes, decidiu sozinho como seria o ato derradeiro. Com a audácia do guerreiro gaúcho, engatilhou o revólver. E adiou por dez anos a festa dos golpistas.
A decisão é dos leitores
Um leitor selecionou títulos publicados nos últimos meses por jornais do Rio que, a seu juízo (e por falta de), considera merecedores do Yolhesman Crisbelles. A coluna, democraticamente, pinçou de todas as publicações alguns atentados à sensatez e decidiu entregar aos leitores a escolha do campeão da semana. Seguem-se os candidatos à taça:
JORNAL DO BRASIL - Depois de algum tempo, a água corrente foi instalada no cemitério, para a satisfação dos habitantes” Ela contraiu a doença na época que ainda estava viva”
O GLOBO - Apesar da meteorologia estar em greve, o tempo esfriou intensamente” - Os nossos leitores nos desculparão por esse erro indesculpável”
EXTRA - Os sete artistas compõem um trio de talento” - Parece que ela foi morta pelo seu assassino” - O acidente foi no triste e célebre Retângulo das Bermudas”
O DIA - A vítima foi estrangulada a golpes de facão” - O tribunal, após breve deliberação, foi condenado a um mês de prisão” - O velho reformado, antes de apertar o pescoço da mulher até a morte, se suicidou”
Com um beijo e uma lágrima
Na primeira metade dos anos 80, corriam soltas as articulações que resultariam na vitória de Tancredo Neves num colégio eleitoral desenhado para eleger algum favorito do governo militar. Um dos endereços mais freqüentados pelos arquitetos da grande frente oposicionista era o apartamento 101 do bloco D da SQN. (Em Brasília, naturalmente. Só na cidade inventada por Oscar Niemeyer existem endereços assim.) Ali morava o deputado federal Thales Ramalho.
Pernambucano de fala mansa, aparência suave de tio que protege mesmo sobrinhos destrambelhados, Thales ficava em casa a maior parte do tempo. Com os movimentos afetados por problemas de saúde e pelas seqüelas de um grave acidente automobilístico, passou a sair menos ainda. Raramente ia aos outros. Os outros é que iam a Thales. Entre eles se incluía Tancredo Neves. Pouco inclinado a revelações, Tancredo fez de Thales um dos seus cofres de segredos.
Na edição de 18 de agosto, com o brilho de sempre, o grande Villas-Bôas Corrêa desenhou o perfil de Thales Ramalho, morto em Recife, dias antes, aos 81 anos. “Discreto, quase em sigilo, o ex-deputado retirou-se da vida como viveu”, escreveu Villas-Bôas.
A imprensa virtualmente ignorou a partida do esplêndido político. Thales levou para o túmulo fascinantes episódios da saga brasileira. Outros ficaram nos cadernos.
Os cadernos de Thales foram (e são) objeto do desejo de qualquer jornalista interessado nos bastidores da política nacional. Ali, em anotações manuscritas, o parlamentar pernambucano registrava conversas, resumia retratos, fazia observações sempre argutas, arriscava prognósticos que hoje lembram profecias. E resumia histórias que testemunhara ou vivera como integrante do elenco principal. Ouvi algumas.
Ele gostava de contar as protagonizadas por Tancredo. “Aprendi muita coisa com ele”, repetia. “Foi um sábio.” Um dos episódios preferidos remontava à noite em que Tancredo visitou-o para conversar a dois e encontrou a casa cheia. Era a terceira tentativa frustrada. Tancredo chamou-o de lado e sussurrou:
- Pare de receber tanta gente, Thales.
- O problema é que eles telefonam e dizem que estão vindo me visitar – ponderou. - Diga que você faz questão de homenageá-los indo à casa de cada um. Beba o uísque deles, coma a comida deles e escolha a hora de ir embora. Isso é que é bom.
- Mas estou quase paralítico – lembrou Thales, então prisioneiro de uma cadeira de rodas.
- Melhor ainda – decidiu Tancredo. – Eles vão ficar ainda mais comovidos.
Na quarta tentativa, os dois conversaram a sós. Thales se livrara dos candidatos a visitante com a desculpa de que saíra. Mas adorou a lição.
Cabôco Perguntadô
Primeiro, o Cabôco Perguntadô espantou-se com a explicação de Lula para a viagem ao Gabão. “Fui lá aprender como um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição.” O Cabôco já queria saber se Lula anda pensando em virar ditador quando o chanceler Celso Amorim fez a ressalva esperta: fora apenas “um chiste”. Já intrigado com outra trapalhada de Lula também apresentada como “chiste” – chamar de “covardes” os profissionais contrários à criação do Conselho Federal de Jornalismo –, o Cabôco anda cutucando amigos com a pergunta: por que não aproveitar o embalo e instituir também um Conselho Nacional de Presidência? As atribuições da novidade seriam “orientar, disciplinar o exercício do cargo de chefe do governo federal”.
Gordos e malucos
Ao chamar Luiz Paulo Conde de “baleia encalhada”, Cesar Maia só não viajou na maionese porque pobres são magros, ricos obesos vão começar o regime amanhã e o resto acha o prefeito gordo também.
augusto@jb.com.br
[22/AGO/2004]
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 6:42 PM
Merval Pereira 22 08 2004 O ICMS da discórdia

Merval Pereira
O governo do Estado do Rio vai insistir na cobrança, aprovada pela Assembléia Legislativa no ano passado, da taxa em 18% de ICMS na extração do petróleo no estado. Apesar de sancionada pela governadora, ela não entrou em vigor, e está sendo contestada como inconstitucional pelo procurador-geral da República no Supremo Tribunal Federal. A despolitização da questão, que no ano passado foi exacerbada pela governadora dentro da disputa pela instalação de uma refinaria na Petrobras, pode favorecer a aprovação da medida.
A governadora começou sua luta pela mudança da legislação do ICMS sob a premissa de que o Rio era injustiçado, pois apenas o petróleo e a energia elétrica são tributados no local de consumo, o que prejudicaria o estado, responsável por 80% da produção nacional.
Antes da Constituinte de 88, o imposto era federal e nenhum estado ganhava nada sobre petróleo, energia elétrica e telecomunicações. O que os legisladores fizeram foi tirar o imposto da União e dar para os estados e municípios. Como a maioria dos estados importa petróleo, não houve condições políticas de colocar o ICMS cobrado na origem para todos os produtos.
O relator da Constituinte foi o então deputado federal Nelson Jobim, hoje presidente do STF, que conta que houve consenso no sentido de que o ICMS deveria ser cobrado na origem, mas surgiram ressalvas quanto a dois assuntos — energia elétrica, produzida por recursos hídricos, e petróleo.
O argumento encontrado para justificar não cobrar ICMS na origem desses dois produtos foi, segundo declarações de Jobim, que toda a produção de petróleo realizada no Rio de Janeiro, ou toda a produção de energia elétrica no Paraná ou Pará, era decorrente de investimentos da União, porque o monopólio era da União. “Toda arrecadação do país contribuiu para aquela produção”, salientava Jobim.
E é exatamente nesse ponto que se baseia a defesa do Estado do Rio. O pleito está sendo defendido no Supremo dentro de uma nova interpretação jurídica, que afirma que a partir da emenda constitucional de 95, que passou a permitir a contratação da pesquisa e da lavra do petróleo junto a terceiros, transferindo-lhes a propriedade do produto da lavra, deixou de existir o monopólio da União sobre o petróleo, o que justificava a não cobrança do ICMS.
Na defesa, é citado o contrato de concessão assinado entre a Agência Nacional de Petróleo (ANP) e a Petrobras, em 1998, que define o momento da transferência de propriedade: “Ao concessionário somente caberá a propriedade do petróleo e gás natural que venham a ser efetivamente produzidos e por ele recebidos no ponto de medição”. É a partir daí, do “ponto de medição” nas plataformas, que o estado quer cobrar o ICMS das empresas exploradoras de petróleo.
Uma outra questão que surgiu na ocasião em que o decreto foi sancionado pela governadora Rosinha foi a alegação de que essa tributação poderia simplesmente parar a maior indústria do estado, o setor de petróleo e combustíveis, responsável por cerca de 25% da arrecadação de impostos (a maior parte proveniente da Petrobras), e prejudicar o recolhimento dos royalties, que gera cerca de R$ 2 bilhões anualmente.
Os produtores de petróleo alegam que a taxa de retorno do investimento é de 3% a 4%, e o novo imposto de 18% tornaria deficitária a operação no estado. Tanto o procurador-geral da República como o Instituto Brasileiro de Petróleo, que participa da ação de inconstitucionalidade no Supremo, alegam que a cobrança do ICMS provocaria prejuízo à economia e danos à indústria, onerando o preço da produção de petróleo.
Em sua defesa, o governo do Rio afirma que está prevista na legislação a situação em que, à saída tributada de um produto -— no caso o petróleo -— sucede-se outra não tributada, a alíquota continuaria zerada, portanto, na transferência desse petróleo para outros estados — , seguida de uma terceira operação novamente tributada. Desse modo, a cobrança do ICMS na fase de extração do petróleo em nada oneraria seu custo de exploração ou o preço final do produto, pois seria descontada na primeira etapa não isenta de tributos.
A cobrança seria “um mero instrumento de alocação dos recursos arrecadados entre os diversos entes arrecadadores, em consonância com os princípios que regulam o pacto federativo”. Em outras palavras, o ICMS cobrado pelo Rio será perdido por outro estado — a maior parte do petróleo extraído no Rio vai para São Paulo — mas não acrescentado ao preço final do produto.
Com relação aos royalties do petróleo, que geram R$ 2 bilhões anuais, o que consta é que eles foram definidos pela Constituição de 88 para compensar a não cobrança de ICMS na origem, ou seja, na extração do petróleo. Caso a cobrança do ICMS prevalecesse na origem também para o petróleo, o Estado do Rio não poderia receber os royalties, pois estaria recebendo duas vezes pelo mesmo produto.
O governo do estado, na mesma defesa da constitucionalidade da cobrança do ICMS, tem argumentação jurídica que contesta essa tese. Alegam seus advogados que os royalties foram instituídos já na Lei 2004 de 1953, que criou a Petrobras. Segundo eles, os royalties foram criados para compensação financeira “das deseconomias incorridas pelas atividades ligadas à exploração petrolífera, em especial às relacionadas com a preservação do meio ambiente”. Isto é, pelas despesas que a extração do petróleo obriga o estado a realizar.
Porém, mesmo que a legislação dos royalties fosse alterada devido à cobrança do ICMS, contas do governo demonstram que o estado continuaria ganhando mais apenas com a arrecadação do novo imposto.
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 4:28 PM
Miriam Leitão 22 08 2004 Preso no gargalo

O debate era sobre logística, em São Paulo, sexta-feira, às quatro horas, e o aeroporto do Rio amanheceu fechado. Se fosse necessário mais um caso para mostrar o caos logístico do Brasil, bastava pegar a ponte aérea, ir ao debate e voltar ao Rio no mesmo dia. O absoluto caos que dominou os dois aeroportos nesta sexta-feira foi tão eloqüente quanto o debate em que, por duas horas, se falou no colapso que se aproxima. No Rio, é a terceira vez numa semana que o aeroporto fecha durante toda a manhã, produzindo uma seqüência de eventos que, em cadeia, foi emperrando todo o trânsito de passageiros pelo Brasil. Conexões perdidas, reuniões canceladas, desinformação, tudo tumultuou a vida das milhares de pessoas que circulavam na sexta-feira pela rota mais movimentada do país. Não se pode proibir o nevoeiro de cobrir o Pão de Açúcar pela terceira vez numa semana. Mas seria prudente, pela repetição do fenômeno, pensar-se, por exemplo, em ter um Plano B, pelo aeroporto do Galeão. O nó formado no Rio de manhã foi em ondas interrompendo e complicando o transporte aéreo de passageiros no país inteiro. No vôo de volta, às dez da noite, no sentido Congonhas-Santos Dumont, o piloto pedia desculpas pelo atraso culpando ainda o nevoeiro do Rio, pela manhã.
No debate, durante duas horas e meia, representantes dos vários segmentos da sociedade e empresários reclamaram de tudo: falta de navios, contêineres, espaço nos portos, investimentos em ferrovias, regras para investimento, rodovias em boas condições.
A Receita Federal foi a campeã das críticas. O que se pede da Receita é que, ao menos, esteja disponível em horário compatível com o mundo just in time . O expediente dos fiscais do órgão segue o horário normal de funcionário público e, no fim de semana, fecham-se as portas. O que os exportadores, administradores de terminais, empresas de transporte gostariam é que tudo funcionasse no Brasil como na maioria dos países: 24 horas por dia, sete dias na semana. Valdir Santos, presidente do Sindicato dos Despachantes Aduaneiros de São Paulo, disse que, se os funcionários da Receita estivessem lá a postos nas segundas-feiras, às 11 da manhã, ele já seria um despachante feliz.
A crônica falta de contêineres também poderia ser amenizada se a Receita liberasse as cargas apreendidas, “em perdimento”, como eles dizem, e que são mantidas em contêineres ocupando espaço no porto.
— Hoje eu procuro um contêiner, vivo ou morto, e não encontro um sequer disponível no Brasil. E sei que existem inúmeros deles com carga apreendida — disse Roberto Prudente, diretor da Associação Brasileira de Empresas de Transporte Internacional.
Sérgio Salomão, da Associação Brasileira dos Terminais de Contêineres, disse que já foram apresentadas à Receita idéias para a estocagem dos produtos apreendidos.
O crescimento da China é que está fazendo tudo desaparecer: do navio ao contêiner. Pedro Henrique Garcia de Jesus, presidente do Centro Nacional de Navegação Transatlântica, entidade que representa os armadores, acredita que a escassez de navios vai durar mais dois anos. Ele defende a retomada da construção naval no Brasil afirmando que, para não repetir erros do passado, em que o Estado sempre pagava a conta de estaleiros falidos, o setor propõe ao governo a criação de um fundo garantidor, o qual depende apenas de decisões burocráticas.
Sérgio Bacci, secretário de Fomento para Ações de Transportes no Ministério, respondeu às críticas lembrando que o atual governo encontrou o setor de transporte em situação lamentável, por falta de quadros, recursos e informações. Disse que tudo está sendo remontado e que, para tratar do tema, formou-se uma Câmara Setorial na Casa Civil. Da platéia, alguém quis saber por que o PT não se preparou antes, sabendo que ocuparia o poder. E também perguntaram o que fizeram os grupos internos do partido que cuidavam do planejamento para enfrentar os problemas ao assumirem o governo. Até agora, não se conseguiu fazer uma licitação de concessão de um quilômetro sequer de rodovia.
Na espera interminável, os passageiros se acotovelavam na apertada sala de embarque do Rio, afogando-se no mar de desinformação que se espalhou. Tudo o que os atendentes das companhias aéreas disseram durante horas foi a frase: “Não há previsão.” Os passageiros descobriram que o importante não era a falta de lugar para sentar, era a falta de lugar para ficar em pé, que fosse. O melhor ponto era ficar em pé perto do portão ouvindo as histórias contadas pelos passageiros. Um deles chegou às nove para pegar o vôo das dez e meia da manhã para São Paulo, onde faria uma conexão. Foi convencido pelos atendentes que o vôo não sairia tão cedo do Rio e que deveria mudar para outro vôo. Enquanto ele foi trocar o bilhete, o vôo dele saiu e ele passou a tarde à espera.
No caminho da volta, mais irracionalidade. O novo aeroporto de Congonhas é amplo, agradável, com cara de novo. De velha mesmo só a gestão desordenada das empresas que atuam em viagens aéreas no Brasil. Os passageiros aguardavam num terminal registrado no cartão de embarque até que, de repente, uma voz avisava que o avião sairia em outro portão. Passageiros se cruzavam nos novos corredores em correria desabalada parecendo mais esportistas em prova de atletismo. As companhias aéreas não informavam sobre vôos, atrasos e portões. A confusão, às nove e meia da noite, no aeroporto de Congonhas, era tal que o serviço de voz fez um aviso insólito:
— Senhores passageiros, o vôo está atrasado porque a aeronave está em órbita.
A logística — seja a de passageiros ou de cargas — tem ineficiências ainda hoje que conspiram contra qualquer cenário de retomada do desenvolvimento sustentado no Brasil.
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 4:27 PM
LUÍS NASSIF 22 08 2004 A última noite de Vargas

Durante anos de convivência, o embaixador Walther Moreira Salles tinha uma preocupação especial com sua biografia. Queria deixar registradas as impressões sobre os principais homens públicos com os quais conviveu. Eram aulas sucessivas sobre o país, da parte de quem, dos anos 30 aos 90, testemunhara todos os episódios da história com olhos contemporâneos. Indagado sobre qual o maior brasileiro que conhecera, nem vacilava: Getúlio Vargas. O pensamento começa a voar. Dr. Walther parece se esquecer da minha presença ali. Agora, está com San Thiago Dantas em um carro, ouvindo a rádio Globo, quando a programação é interrompida pela "notícia extraordinária": Vargas havia se suicidado. Imediatamente San Thiago ordenou ao chofer que rumasse para o Palácio do Catete. Eram 20h30 quando ambos entraram no Palácio. A essa altura as rádios informavam que "O Globo" e a "Tribuna da Imprensa" estavam cercados por populares enfurecidos. San Thiago rumou para o "O Globo", cercado por uma multidão que uivava de dor e ódio. Walther subiu para o último andar do Palácio. Não chegou a entrar no quarto onde Vargas se suicidara. O Palácio era grande e nele contrastavam fortemente uma confusão de pessoas correndo de um lado para o outro e a sensação de vazio, de solidão. Mais tarde, começaram a chegar pessoas. Juscelino foi o único governador a se apresentar, com Amaral Peixoto, casado com Alzira, a filha predileta de Vargas. Walther deixou o Palácio por algumas horas, foi à sua casa e retornou logo depois. Cumprimentou Alzira e Amaral, não conseguiu ver dona Darcy e permaneceu no velório até a hora da partida, dividindo um banquinho no primeiro andar, com Oswaldo Aranha, em longas reflexões sobre o processo de isolamento de Vargas. As suspeitas de conspiração internacional vazavam por todos os poros da República e impregnavam as paredes do Palácio. Aranha reiterava acusações sobre a queda nos preços do café, atribuindo-a a pressões externas. Conhecedor do mercado, Walther não via fundamento em suas acusações. O Brasil havia montado uma manobra especulativa que logrou elevar os preços do café a 86 centavos, mas não conseguiu sustentá-los. A operação foi estimulada pelo governo e financiada pelo Banco do Brasil. A Bolsa de Nova York abriu investigações sobre as operações brasileiras, que ajudaram a precipitar a queda das cotações. Aranha acreditava em conspiração internacional e em disco voador. Às vezes o cansava com aquela conversa. Em certo momento, Walther nem mais o ouvia. Seu pensamento, agora, estava no Palácio Rio Negro, em Petrópolis, onde, no último verão antes da tragédia, teve o último encontro com Vargas. O mais polido dos homens que conhecera conservava ainda seu senso de humor e a risada inigualável. Mas demonstrava certa melancolia e solidão. Alguns meses antes, quando Walther lhe pediu que o dispensasse das funções de embaixador, Vargas comentou a respeito de um deputado governista, que o acusara de ser "mais um embaixador americano em Washington". Walther não quis saber quem era. "Embaixador, o senhor não pergunta quem é o deputado?", estranhou Vargas. "Eu já sei, porque tivemos incidente semelhante no Itamaraty." Era Euvaldo Lodi, presidente da Confederação Nacional da Indústria. "Mas o senhor sabe qual foi minha resposta?" "Não." " Eu disse a ele que tinha a Câmara para denunciar, não a mim." E soltou uma gargalhada, jogando a cabeça para trás. Depois, convidou Walther para jantar. O embaixador disse que era uma grande honra, mas pedia que telefonasse para uma casa para a qual tinha um compromisso agendado. Vargas interrompeu: "Então meu convite não é mais válido. O senhor é moço, precisa se divertir no convívio de gente agradável." "Mas gostaria de jantar consigo." "Não mais." Desceram no elevador, saíram pelo Salão de Despachos, Na alameda, entre o Palácio de Rezende, Vargas pôs o chapéu e cruzou os braços atrás das costas: "Boa noite." E atravessou sozinho para seu jantar solitário.

Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 4:25 PM
MAÍLSON DA NÓBREGA Primitivismo e irresponsabilidade no Orçamento

MAÍLSON DA NÓBREGA O ESTADO DE S.PAULO Domingo, 22 de agosto de 2004
Primitivismo e irresponsabilidade no Orçamento
A Comissão de Seguridade Social da Câmara aprovou proposta de autoria do deputado Roberto Gouveia (PT-SP) de vincular 10% das receitas correntes da União para a saúde. Seduzidos por objetivos nobres, a definitiva aprovação do projeto criará novas dificuldades à gestão orçamentária e ao crescimento do País.
Os políticos brasileiros, com honrosas exceções, nunca levaram a sério o Orçamento. São herdeiros da cultura que dava aos reis ibéricos a capacidade de fazer o que quisessem em questões fiscais, restando ao Parlamento criar brechas para atender seus próprios interesses. Na Inglaterra, ao contrário, o Parlamento nasceu para limitar o poder de gastos dos monarcas. A tradição passou às nações que eram suas colônias.
Nos EUA, o Congresso costuma negar pedidos de aumentos de gastos do presidente. No Brasil, ao contrário, é o Executivo quem tem de barrar o Legislativo, pois se depender deste as finanças estarão sempre em frangalhos. O Executivo tem seus erros, mas perde de lavada nesse campeonato. Veja-se o festival das emendas anuais ao Orçamento. Apesar das restrições inscritas na Constituição, o relator sempre dá um jeitinho de inflar as receitas e acomodar pretensões paroquiais.
A primeira reação contra esse comportamento veio em 1926. Emenda constitucional determinou que o Orçamento trataria apenas da receita e da despesa, uma norma acaciana que ainda sobrevive no Artigo 165 da atual Constituição: "A lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa". O alvo eram as "caudas orçamentárias", que compreendiam novas despesas e o diabo a quatro, como nomes de ruas a promoção de servidores. Rui Barbosa falava em "orçamentos rabilongos".
Nos anos 1950, surgiu uma nova praga, a vinculação de receitas. A primeira se destinou à educação e deu a deixa para outras ervas daninhas, que morreram com o antídoto da Constituição de 1967. Ficou proibida a vinculação de impostos a órgão, fundo ou despesa, norma que resistiu 16 anos até receber o primeiro furo com a emenda que destinou 13% dos impostos para a mesma educação. A Constituição de 1988 ampliou o percentual para 18% (25% nos Estados e municípios).
A regra virou uma tábua de pirulitos. Além da educação, há vinculações também para a saúde e a prestação de garantias. O relator do projeto de reforma tributária propõe novos furos, até para a Receita Federal.
O apelo da vinculação é enorme. Diz-se que ela protegerá a área social de cortes para atender o FMI e pagar juros aos banqueiros. Fala-se que ela obrigará o governo a olhar pelos pobres. A conquista do apoio popular fica fácil. Na verdade, a vinculação não tem impedido o pagamento dos juros nem o cumprimento de metas fiscais. Apenas enrijece o Orçamento.
Diferentemente do que se apregoa, os juros são devidos aos milhões de brasileiros que investem suas poupanças no mercado e nos fundos de pensão.
Não pagar seria romper contratos e gerar grave crise de confiança.
Renegociações e calotes na dívida pública aconteceram no Brasil e alhures, em circunstâncias distintas da atual e com enormes efeitos negativos. O cumprimento de metas fiscais, como finalmente o PT aprendeu, não visa a satisfazer o FMI, mas a evitar que a relação entre a dívida pública e o PIB adquira uma trajetória explosiva e desastrosa.
A experiência mostra que a vinculação de receita a despesa cria uma cultura de acomodação e provoca desperdícios. Não precisando provar a prioridade de seu caso, as áreas e as organizações beneficiárias não têm incentivos à busca da eficiência na gestão dos gastos nem da eficácia na sua destinação.
Ao engessar o Orçamento, as vinculações dificultam a condução de políticas públicas e o crescimento. As gerações de hoje decidem pelas de amanhã.
Atualmente, mais de 90% das receitas da União têm destinação obrigatória, mas se incluirmos nesse conceito os gastos minimamente necessários em defesa, segurança, infra-estrutura, custeio administrativo e apoio às exportações, à agricultura, às artes e às ciências, a soma já passa de 100%.
Uma tragédia.
Existem inúmeras formas de priorizar a educação, a saúde e outras áreas, como fazem os países sérios. A técnica da vinculação é a mais grosseira e primitiva e por isso não faz parte do cardápio desses países.
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 4:22 PM
Dirceu viveu com nome falso até ser anistiado

Dirceu viveu com nome falso até ser anistiado
DA REDAÇÃO FOLHA DE S.PAULO
Banido do Brasil em 6 de setembro de 1969, o atual ministro José Dirceu (Casa Civil) voltou do exílio duas vezes. O retorno oficial ocorreu em dezembro de 1979, após a aprovação da anistia. Mais tarde, ele revelou que havia vivido clandestinamente em Cruzeiro do Oeste (PR) de 1975 a 1979, graças a uma operação plástica que lhe deixou o nariz adunco e os olhos puxados, disfarçado sob a identidade falsa de Carlos Henrique Gouveia de Melo. Apresentou-se como um economista, filho de judeus, que tinha vindo do interior de São Paulo por ter brigado com a família. Apelidado de "Pedro Caroço", ele fez amigos e se casou com Clara Becker, dona de uma confecção de roupas, com quem teve um filho, José Carlos. Revelou-se um bom administrador e ampliou os negócios. No dia 29 de agosto de 1979, um dia depois de ter sido sancionada a Lei da Anistia, Carlos Henrique chamou sua mulher, que cuidava do filho recém-nascido, e lhe mostrou um jornal que trazia uma foto dos militantes de esquerda trocados pelo embaixador americano seqüestrado Charles Elbrick em 1969. Apontou para um jovem magro e falou: "Está vendo esse aí? Esse aí sou eu". "Foi um susto para todo o mundo quando "Carlos" contou quem ele era", disse Clara. Dias depois, ele deixou a mulher e o filho e voltou a Cuba, onde fez uma segunda operação plástica para desfazer a anterior e desceu no aeroporto de Viracopos com outros anistiados, como se não tivesse voltado para o Brasil desde 1969. "Tive de acompanhar tudo pela TV", revelou Clara em 2003.

Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 1:04 PM
JANIO DE FREITAS 22 08 2004 A denúncia do denuncismo

Bem que o seu presidente o alertou, leitor distraído, contra o denuncismo praticado pela imprensa brasileira - ou, mais precisamente, pelos jornalistas sem vínculo com o poder. Sempre desejosa de aprimorar-se, nos últimos dias a imprensa levou o seu mau hábito ao paroxismo: voltou o denuncismo contra si. E por iniciativa de um jornalista, que denunciou a trapaça jornalística, de sua co-autoria, que transformou em US$ 1 milhão o US$ 1 mil movimentado pelo então deputado Ibsen Pinheiro. E com esse escândalo motivou a cassação injusta do deputado. Mas a atual denúncia do denuncismo passado, cá entre nós, não é denúncia e tem tudo de farsa. A verdade, comprovável por documentos oficiais, é que Ibsen Pinheiro não foi cassado por ter a CPI do Orçamento (mais tarde "CPI dos Anões") considerado inaceitável a "transferência de US$ 1 milhão de uma conta bancária de Ibsen Pinheiro de uma agência da Caixa Econômica para uma agência do Banrisul". O valor, no caso, poderia ser qualquer um, e o problema seria o mesmo. Porque não se tratou de movimentação para uma agência qualquer, como faz crer o denuncismo atual do denuncismo passado. A CPI constatou que Ibsen Pinheiro transferiu seu dinheiro para o Uruguai, salvando-o do seqüestro das contas e da poupança nas vésperas do seqüestrador Plano Collor. Ibsen Pinheiro era então o prestigiado líder do PMDB na Câmara e foi quem quebrou a demorada resistência peemedebista para aprovar o seqüestro do dinheiro privado, causa de desgraças inumeráveis, pessoais e empresariais. Em seu depoimento na CPI, Ibsen Pinheiro atribuiu a transferência a um pagamento que, porém, recusou-se a dizer de que ou a quem. E deu como destino a cidade brasileira de Santana do Livramento. Não por acaso, cidade geminada à uruguaia Rivera, na qual a CPI constatou localizar-se a agência destinatária da transferência feita pelo líder do PMDB. Dinheiro e bens produziram respostas de Ibsen Pinheiro, na CPI, que mais o arruinaram do que esclareceram. O depósito feito em sua conta pelo também deputado Genebaldo Correa, um dos "anões" de maior atividade malandra, continuou inexplicado. Ibsen Pinheiro acabou apelando para uma tal caminhonete que teria vendido a Genebaldo, mas comprado de Genebaldo, que comprou de Ibsen e depois vendeu a Ibsen, enfim, uma caminhonete que se mudou muito sem deixar pista alguma de sua inconstância. Contribuiu também, para a cassação de Ibsen Pinheiro, um problema institucional que ele não transpôs: o presidente da CPI, Jarbas Passarinho, recebeu documentos do Senado comprovando que a primeira CPI do Orçamento, requerida em 1990, acabou arquivada em 92 porque o então presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, não cumpriu formalidades dele esperadas. Ao depor, acusou pelo arquivamento o senador Mauro Benevides, seu colega no PMDB. Logo a CPI concluía que Benevides cumprira seu papel e que Ibsen, portanto, bloqueara a CPI em causa própria. Ibsen Pinheiro, deve-se reconhecer, foi até mais cauteloso do que isso: como presidente da Câmara, tratou de demitir o funcionário que fez a primeira denúncia da corrupção dos "anões do Orçamento", mais tarde repetida, afinal levando em 93 à CPI, pelo também funcionário José Carlos dos Santos, aquele acusado de matar a mulher. A CPI teve mais à disposição de suas conclusões sobre Ibsen Pinheiro, como um episódio que não apareceria no exame de movimentação bancária: a compra de um imóvel com dinheiro levado em mala. Informação espontânea do ex-dono do imóvel, que descreveu os pormenores do negócio e do espanto ao ver o sóbrio deputado com a evidência da origem inconfessável do dinheiro. Antes dessa narrativa, Ibsen Pinheiro deixara sem resposta, em seu depoimento na CPI, as perguntas sobre a procedência dos recursos para a compra do imóvel. Nelson Jobim, que já era como deputado o Nelson Jobim de hoje no Supremo Tribunal Federal, articulou-se com o deputado Abi-Ackel para compelir os líderes do PFL, PMDB, PPR e PSDB na Câmara a mobilizarem-se em conjunto para evitar a prorrogação da CPI do Orçamento, o que sustaria várias investigações. Seu êxito foi apenas relativo. A CPI esteve sempre sob fortes pressões assim, partidas até dentro dela. No final, conveniências políticas e interesses pessoais salvaram da cassação vários parlamentares, mas os cassados não o foram sem provas seguras e abundantes. E foi por decisão do plenário, e não da CPI, que se deram as cassações. Ibsen Pinheiro foi cassado pelo conjunto de sua obra, e não, como pretende a "corajosa" autodenúncia de uma leviandade jornalística, pela hipotética movimentação de US$ 1 milhão ou de US$ 1 mil. O que seria impossível porque, entre outros motivos, a CPI ajustou prontamente os valores corretos, fossem em dólares ou em novos cruzados, das contas de Ibsen Pinheiro - agora em campanha para retomar, a partir do Rio Grande do Sul, a carreira política. Na qual seus deméritos identificados pela CPI não negam os muitos méritos que teve como deputado federal. Todos os fatos e dados deste artigo estão documentados, foram publicados à época e jamais contestados. Nem mesmo pelo atual denuncismo contra o denuncismo da imprensa, que preferiu ou precisou não os lembrar.
Resposta Desfez-se a expectativa, aqui anotada, sobre o voto do recém-empossado ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau, quanto ao desconto de previdência nas aposentadorias do funcionalismo. Como advogado e jurista, Eros Grau foi autor de recente parecer contrário à taxação previdenciária dos inativos, por considerá-la inconstitucional. Como recém-nomeado por Lula para o STF, aí votou pela cobrança. Eros Grau cobrou, a uma associação de professores, R$ 35 mil pelo parecer. Pelo seu voto governista, como ministro estará recebendo, neste mês, a metade do seu preço de parecerista. Eros Grau ficou, de fato, muito mais barato. Finda uma, surgiu outra expectativa, sem promessa de solução próxima. O político-juiz Nelson Jobim votou, claro, com o governo, sob o poderoso argumento de que derrubar a nova taxação dos inativos causaria "extraordinário rombo" nas contas governamentais. Causar, não causaria, porque o rombo já existe. E agora se trata de saber o seguinte: ministro do Supremo lida com contabilidade ou com Direito, Constituição, direitos e Justiça?

Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 1:01 PM
Gabeira revê 79 e ataca "sonho burguês" do PT

Gabeira revê 79 e ataca "sonho burguês" do PT
Ex-guerrilheiro e precursor da "política do corpo" , deputado diz que narcisismo já teve papel progressista e sustenta que Lula e o PT agem como "emergentes" do poder
PLÍNIO FRAGA DA SUCURSAL DO RIO
No verão de 1979, Fernando Paulo Nagle Gabeira -terrorista para o regime militar que o exilou por nove anos- chegou às areias de Ipanema com idéias escaldantes e uma tanga mínima. Havia desistido de incursões revolucionárias como o seqüestro do embaixador americano dez anos antes -que o levou à cadeia e depois ao exílio- para defender uma tal "política do corpo", que pressuponha do defensor "o desemperrar da cintura de macho latino", como se dizia à época. Naquele mesmo ano, lançou "O que É Isso, Companheiro", livro em que descrevia a perplexidade da esquerda ortodoxa com comportamentos heterodoxos para aqueles tempos. Em 1980, anunciou o "crepúsculo do macho", engajou-se na defesa dos direitos de minorias e estimulou a renovação da agenda política nacional. Vinte e cinco anos depois, o deputado federal Fernando Gabeira, 63, diz que o exílio o enriqueceu filosoficamente. "Jamais vou pedir um tostão à ditadura militar, mas também não dou para eles um tostão. Estamos quites." Vive hoje a "angústia do tempo futuro". Está sem partido. Saiu do PT por discordar dos rumos do governo Lula e amadurece a idéia de deixar a política ao final de seu mandato, em 2006. Chama os petistas de "deslumbrados, emergentes, aburguesados, impostores históricos". Na eleição deste ano, Gabeira apóia César Maia (PFL) à reeleição à Prefeitura do Rio. Descobriram, deslumbrados, que o mais importante é ficar no governo e secundário o que será do país. A presidência para Lula é uma ascensão material
Folha - A Anistia faz 25 anos, ao lado do início do que se batizou de "política do corpo". Como vê hoje uma e outra? Fernando Gabeira - No momento da Anistia, conjuntamente com a ruína das religiões, havia o debacle das grandes explicações políticas do mundo, sobretudo da grande religião laica que era o marxismo. E surgiam reivindicações e lutas que o marxismo, por suas características, não podia dar conta delas: liberdade do corpo, a questão das mulheres, do sexo, do racismo. Tudo isso ganhava força em razão de duas componentes novas: o indivíduo e o presente, o aqui-e-agora. Não havia mais o futuro que a religião dava -o reino dos céus. E muito menos o fim da exploração do homem pelo homem -o paraíso socialista. Vinte e cinco anos depois, percebeu-se que a própria idéia do desenvolvimento do corpo, de todas as aspirações individuais, passou a ser também um mito.
Folha - O sr. vê acúmulo de frustração no campo político? Gabeira - Lutamos para a ascensão de um governo de esquerda, sem perceber que o instrumento de mudança que era o Estado estava cada vez menos importante. É estreita a margem de manobra no mundo globalizado.
Folha - Lula e o PT decepcionam? Gabeira - Existe hoje a absolutização do desenvolvimento econômico e o fetiche matemático. Estamos crescendo 4%! Não se pode em razão do crescimento de 4% deixar de problematizá-lo. O que estamos vendo é a utilização disso como fetiche para evitar outros temas. Blindam o Henrique Meirelles, porque não podemos reter o crescimento econômico. O Delúbio Soares, ao sair do Palácio do Planalto, foi questionado porque havia ido até lá depois de tanta agitação na imprensa a respeito da imagem dele. E ele respondeu que o importante era o crescimento econômico. Qualquer questionamento ético é contra o crescimento econômico.
Folha - O que é o projeto petista? Gabeira - Existe uma vontade deles de se perpetuar no poder. Ficou muito claro que, ao chegarem ao governo, eles descobriram, deslumbrados, que o mais importante é ficar no governo e secundário o que será feito com o país. A sucessão de frases como as do José Dirceu - "a principal tarefa é a reeleição de Lula"- ou do próprio Lula -de querer saber como ficar 37 anos no governo- mostra isso. Eram pessoas que viviam como uma certa dificuldade e de repente encontram esse universo de ascensão material. A presidência para o Lula é uma ascensão material. Ele desfruta de recursos e possibilidades materiais muito maiores do que quando estava na oposição. Em primeiro lugar, eles vão tentar canalizar o que puderem de excedente para um trabalho social que mantenha as populações mais pobres na condição de clientes. Em segundo lugar, vão utilizar toda a força que têm -a sedução ou a ameaça- para garantir que a mídia os consagre. Na mídia, eles não dão tanta importância aos jornais. Dão à TV. Vão tentar essa manobra do pão e circo. Até que ponto vai dar certo, vai depender da capacidade deles.
Folha - O sr. viveu nove anos no exílio e nunca pleiteou indenização, como faculta a lei. Por quê? Gabeira - Considero que algumas pessoas, que foram injustiçadas, perseguidas, de fato mereciam aposentadoria especial e indenização. No meu caso, não perdi nada com esse processo. Fui para o exílio e voltei enriquecido. Jamais vou pedir um tostão à ditadura militar, mas também não dou para eles um tostão. Estamos quites. Há pessoas que efetivamente foram esmagadas que precisam dessa reparação. Mas ela deveria seguir critérios para não ser politicamente desvairada. Se você lutou por uma sociedade com menos diferenças é contraditório receber uma indenização de R$ 20 mil por mês como alguns tiveram. Indenização essa por ter lutado por uma sociedade de iguais! Choca-me o fato de o PT ter passado na frente sindicalistas que aguardavam indenização. Pessoas bem colocadas, que não tiveram um confronto tão grande com a ditadura. Deveriam estabelecer critérios mais rígidos. Os petistas do governo mostraram que eram apenas emergentes, que estavam apenas querendo chegar à burguesia. O sonho deles era esse.
Folha - Seu rompimento com o PT parece definitivo. Gabeira - Tenho a impressão de que não votarei nunca mais no PT. Não gosto de impostores.
Folha - Como se dizia nos anos 70, eles venceram? Gabeira - Não diria que eles venceram. Já não sei mais quem são eles e quem somos nós. Não tenho essa visão de que estamos em decadência, cada vez piores. Tenho a visão de que é preciso avançar. Não há mais no horizonte nenhuma transformação radical. O que há é a administração do real e um avanço estratégico da democracia. Eu, surpreendentemente, sempre me vejo na oposição.
Folha - "O Que É Isso, Companheiro" completa 25 anos também. Imaginava o bordão tão atual? Gabeira - "O que é isso, companheiro" expressa uma perplexidade com atitudes que você toma e que dificilmente são encaixadas no quadro de esquerda. No caso atual, "o que é isso, companheiro" vale porque não compreendemos se estamos dando um passo adiante. Não sinto que o Brasil tenha dado um passo adiante com a vitória de Lula. Em muitos campos, sinto até um retrocesso.

Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 12:59 PM
Rubens Ricupero 22 08 2004 O paradoxo da queda das exportações para os EUA

Por que o Brasil tem conseguido aumento acelerado das exportações para quase todos os mercados, exceto para o maior de todos, os EUA? Foi um documento do ministro Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento), divulgado em fins de junho, que me chamou a atenção para o fenômeno. Soube depois que, mais ou menos na mesma época, o ministro levantou o assunto com os americanos em Washington. Tentando entender o que está por trás da tendência, venho trocando idéias com colegas na capital americana e com Vivianne Ventura Dias, ex-diretora da Divisão de Comércio Internacional da Cepal, que me enviou interessante estudo de Fernando Pimentel Puga, na "Sinopse Econômica do BNDES", nº 137, julho de 2004. Vamos primeiro aos fatos, tais como resumidos nesse estudo. Em 2003, as exportações brasileiras cresceram 21%, com aumentos de 33% para a Ásia, 80% para a China, 29% para a Europa oriental e 50% para a África do Sul e outros mercados novos. Em contraste, para os Estados Unidos, as vendas só aumentaram 8,8%. Nos cinco primeiros meses deste ano, agravou-se a disparidade, já que as exportações em geral se aceleraram a 25%, enquanto para o mercado americano elas se arrastaram com um raquítico "crescimento" de 1,2%. Tanto Vivianne quanto os documentos consultados assinalam que a pauta exportadora para os EUA é altamente concentrada em oito setores, com poucas empresas, representando 61,3% do total: aviões da Embraer, combustíveis minerais, maquinária e peças, máquinas elétricas e peças, veículos e peças, calçados, ferro e aço, madeira e artigos de madeira. O levantamento feito pelo Ministério de Desenvolvimento indica quedas expressivas nas exportações da maioria desses produtos, nos primeiros meses do corrente ano: automóveis e caminhões (-61%), telefones celulares (-56%), petróleo bruto (-50%), celulose (-30%), lubrificantes (-22%), aeronaves (-8,8%). Toda vez que o intercâmbio bilateral registra variações dessa magnitude para baixo, o primeiro suspeito do crime é sempre a demanda: recessão no mercado importador ou medidas governamentais restritivas das importações. Não é esse, obviamente, o caso atual. Em 2003 e 2004, a economia americana vem crescendo bem, embora sinais recentes comecem a sugerir um início de desaceleração. Apesar do relativo enfraquecimento do dólar, o último déficit comercial dos EUA acusou um espantoso agravamento em um mês, de quase US$ 10 bilhões (de US$ 46 bilhões a mais de US$ 55,5 bilhões), do qual apenas um quarto atribuível ao aumento do petróleo. Em alguns poucos itens, é possível detectar o impacto de medidas restritivas, sobretudo em camarões, em que o simples anúncio da abertura de investigação antidumping fez as vendas mergulharem 47%. Um exemplo que se poderia chamar de crônico é o do suco de laranja. Aqui, a alta tarifa específica preexistente combinou-se com a redução de consumo por motivos dietéticos e o aumento de produção na Flórida (antes do furacão) para provocar contração de 55%. Eliminada a demanda, resta, como suspeita principal, a oferta, cuja culpabilidade já é fortemente sugerida pela elevada concentração da pauta exportadora. Conforme venho repetindo, oportuna e inoportunamente, a oferta brasileira é limitada em gênero, quantidade, qualidade e preço. Em gênero porque só dispomos de oferta abundante e em expansão no setor agropecuário, justamente aquele de menor peso no comércio com os EUA (8%), como realçado no exame de Fernando Puga. Nessa área, os americanos ou são nossos competidores (soja, frango) ou protegem a produção doméstica não-competitiva com tarifas e quotas (suco de laranja, açúcar, etanol, tabaco), subsídios (algodão) e barreiras fitossanitárias (carnes, frutas). Não é de admirar, assim, que a agricultura puxe as exportações brasileiras na Europa, na China, no mundo inteiro, menos nos EUA. Que a quantidade não é lá essas coisas, vê-se no exemplo dos celulares. A explicação principal para a queda das vendas de portáteis é o reaquecimento da demanda no Brasil e na Argentina. Trocando em miúdos, não temos produção suficiente para atender os três mercados ao mesmo tempo. Um fator subsidiário foi o câmbio, isto é, a valorização do real em relação ao dólar. De fato, a média cambial do primeiro quadrimestre de 2003 foi de R$ 3,398, passando a R$ 2,897 em 2004, o que abriu caminho para que a China ocupasse o lugar esvaziado pelo produto brasileiro, uma vez que os chineses, contrariamente a nós, continuam a não permitir a apreciação de sua moeda relativamente ao dólar. Suspeito que o mesmo fator e outros de custo estejam presentes na estagnação das vendas de calçados, que se mantêm há anos em torno de US$ 1 bilhão anuais, perdendo terreno de 8,1% (1995) para 6,2% (2003), num mercado dinâmico, para o qual as exportações chinesas saltaram de 45% para 63% no mesmo período. Quando se olha para os nossos dois principais mercados, nos cinco primeiros meses de 2003 e 2004, o que se enxerga é que o crescimento para a União Européia foi de 28,5%, contra apenas 1,2% para os EUA, o mercado americano encolhendo para o Brasil de 25,41% a 20,54%. A Europa é, para nós, um fraco consolo porque só nos compra, no essencial, produtos primários ou de baixo índice de elaboração, vulneráveis a barreiras sanitárias (soja na China, carne, por causa da aftosa) ou a violentas oscilações de preços, como ocorre, no momento, com a soja, cujas cotações desabam, ao mesmo tempo em que a praga da ferrugem asiática pressiona os custos. Em compensação, mais de 60% das exportações brasileiras aos EUA são de manufaturas de tecnologia alta ou média, maior valor agregado e preços estáveis. Devido à elevada propensão para importar e o grau de abertura (a tarifa média aplicada é de menos de 2%), o mercado americano funciona como uma espécie de barômetro para aferir a competitividade dos exportadores, exceto, é claro, nos produtos protegidos. As preferências tipo Nafta não tiveram incidência no caso, pois tanto nós como os mexicanos estamos perdendo a corrida contra a China e os asiáticos, que não gozam de nenhum tratamento favorável. É por isso que, passadas as eleições nos EUA, seria importante examinar de perto o intercâmbio bilateral para ver o que depende da demanda e pode ser melhorado por negociações que aproveitem o bom clima criado em Genebra pelo papel construtivo do Brasil, reconhecido de público por Washington. Quanto ao resto -e imagino que será, de longe, o principal-, isto é, as insuficiências de oferta, devem ser enfrentadas com políticas de competitividade, incluída taxa de câmbio estimuladora das exportações. O justificado orgulho com o êxito no setor agropecuário não nos deve iludir: quem não consegue exportar aos EUA produtos não-protegidos não é competitivo nos setores mais dinâmicos e de maior valor agregado do comércio, os únicos que, no longo prazo, permitem alcançar as economias avançadas e superar o subdesenvolvimento
Publicadoem: Sun, Aug 22 2004 12:58 PM


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