24/4/2004
"Eu supunha que minha única contribuição para
o mundo do crime fosse entregar meu relógio e
minha carteira à bandidagem. Mas não. Minha
culpa é me eximir de meus deveres sociais. Os
narcotraficantes atiram em mim porque não dou
aulas de balé ou teatro na favela"
Acabo de matar de fome uma criancinha no interior do Acre. Não, não foi a primeira. Matei muitas outras no passado. E, confesso, continuarei a matar. Enquanto elas morrem, passeio de bicicleta com meu filho pela orla de Ipanema, indiferente a tudo. Como é que ainda não fui preso? Como é que ainda não fui linchado? Bem que eu mereceria.
Quem me acusou de matar criancinhas no interior do Acre foi a Fundação Getúlio Vargas. De acordo com seu mais recente Mapa da Fome, um terço da população brasileira vive num estado de miséria absoluta. Pelos cálculos da FGV, erradicar toda essa miséria é muito mais simples e barato do que parece. Basta que cada endinheirado como eu entregue a um miserável a quantia de 14 reais. Isso significa que aquela criancinha no interior do Acre só morreu de fome porque cometi a mesquinharia suprema de negar-lhe uns trocados. Juro que não foi de propósito. Estou disposto a dar bem mais que 14 reais para expiar meus crimes sociais. A FGV só precisa explicar a quem devo dá-los. Ao mendigo no farol? Ao ministro Patrus Ananias? À Pastoral da Terra? Outra pergunta: posso descontar os 14 reais do imposto de renda? Porque eu sempre pensei, erroneamente, que os impostos servissem para isso: impedir que as criancinhas morressem de fome no interior do Acre. Aguardo esclarecimentos urgentes da FGV.
Além de matar criancinhas de fome, eu também sou culpado por boa parte dos assassinatos no Rio de Janeiro. É o que afirmam todas as pessoas de bem da cidade. Elas apontam o dedo para mim e me acusam de ser cúmplice do narcotráfico, com o argumento de que a responsabilidade pela violência não é só dos bandidos, mas da sociedade como um todo. Até hoje eu supunha que minha única contribuição para o mundo do crime fosse entregar meu relógio e minha carteira à bandidagem. Mas não. Para influentes figuras da sociedade carioca, como Arnaldo Jabor e Gisela Amaral, todos nós temos uma parcela de culpa. Inclusive eu. Minha culpa é me eximir de meus deveres sociais. Os narcotraficantes atiram em mim porque não dou aulas de balé ou teatro na favela.
O movimento Viva Rio dá aulas de balé e teatro na favela. Na última quarta-feira, promoveu também o Dia do Carinho, em que centenas de voluntários subiram o morro da Rocinha para distribuir rosas a seus moradores. Não teria sido melhor a polícia subir o morro com algemas? Os moradores da Rocinha teriam agradecido. O logotipo do Dia do Carinho mostrava um negrinho sorridente com um gorro de assaltante na cabeça. A mensagem dos organizadores do evento era clara: se subirmos o morro com rosas, vocês param de descê-lo com suas metralhadoras? Não vejo nada de errado em tentar melhorar a vida dos favelados. Pelo contrário. Mas sempre achei que era um erro atribuir a essas associações beneméritas um papel na luta contra a criminalidade. Imagino que os traficantes do Comando Vermelho tenham todos os discos do AfroReggae. Imagino também que suas filhas aprendam balé nos cursos oferecidos pelo Viva Rio. Como não quero que Arnaldo Jabor e Gisela Amaral me acusem de pactuar com a bandidagem, porém, telefonei ao Viva Rio e me cadastrei para o Dia do Carinho, oferecendo-me para levar uma rosa a um morador da Rocinha. Ainda bem que não me ligaram de volta.
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