'Noblesse oblige' 2
Como outras senhoras da vizinhança, minha avó tinha os "seus pobres". Numa pesquisa que fiz num bairro paulistano que se definia como "pobre", eu ouvi que a pobreza era uma prova para a riqueza. Quem esquece o outro lado: a dimensão trivial que a legitima porque interliga, torna-se um prisioneiro da sua condição. Aí está a fonte da desigualdade que suprime a diversidade.
Naquele tempo, alguns pobres ganhavam um "prato de comida", certos de que o recebido deveria ser dado com consciência e as parcimônias da virtude burguesa. Os que não podiam sequer demandar ou exigir e, envergonhados, pediam um "de comer" recebiam a dádiva, pois seus doadores — quem sabe? — podiam virar pedintes. Os pobres comiam sentados, mas eu — um menino com a cabeça de velho; hoje eu sou um velho tentando não perder a cabeça de menino — via-os ajoelhados.
O noblesse oblige ocorre quando o poderoso se sente no dever de produzir o "dom" que fertiliza e traz ao palco da vida a sua totalidade — os seus extremos. A sociedade na qual ele nasceu em "berço de ouro" ao lado do sistema que, por isso mesmo, produziu os que nascem entre sangue, fezes e urina. Parece frescura, mas o noblesse oblige é cobrado justamente dos que, graças à sua inteligência, perseverança e à sua ambição honesta ou canalha, chegaram aos mais altos cargos da nação. A esse cacofônico "da nação" inconsciente e significativamente remetem as jaulas que, muitas vezes, destroem quem trai esses cargos.
Muitos milionários e famosos tendem — pensem em Howard Hughes ou Greta Garbo — a se fechar em copas e, no labirinto de suas personas, perdem contato com esses "outros". Com os admiradores que os tratam como deuses. E em deuses eles realmente se transformam porque suas vidas exemplificam as fissuras pelas quais conseguiram passar para chegar a esse reino dos bem-aventurados. Dos supostamente livres de problemas como grana, doença e sofrimento. Dos que demonstram que se pode sair da extrema pobreza para algo ainda maior do que a riqueza porque eles são o testemunho vivo de que a fortuna, a sorte e a ascensão social existem e têm legitimidade num mundo que diz que somos todos iguais em certas circunstâncias. Algo difícil de confiar para muita gente — inclusive para quem escreve estas linhas.
Suas biografias enfatizam o acaso e o senso de oportunidade. E, quando o nível da fama chega ao máximo, ele faz com que os seus admiradores chorem pelo milagre de os encontrarem em carne e osso — porque eles não acreditam que estão diante dos seus ídolos. Nesse ponto, os famosos viram divindades e são expulsos do mundo rotineiro. Não podem mais comprar um jornal ou assistir a um filme. O noblesse oblige próprio das divindades obriga ao sorriso e aos autógrafos, produz paciência ao assédio e — eis o paradoxo — faz com que os ídolos sintam saudade dos velhos tempos, quando eram humanos como nós, pois agora — devidamente enjaulados pela celebrização — eles fingem ser pessoas comuns para poder viver neste nosso mundo de carências e mediocridades do qual escaparam.
Diante dos fãs que fanaticamente os construíram, eles muitas vezes se autodevoram e se destroem nas fantasias do sexo, da comida, das drogas ou no "mero álcool", que não é assim tão trivial, como canta a famosa balada de Cole Porter "I get a kick out of you". Tal foi o caso trágico de Richard Burton, o galês filho de um mineiro que, no seu diário, se pensa com pesadas dúvidas se realmente era o maior, o mais rico e o melhor ator do mundo ou um recitador bobalhão e magistral de frases alheias, elevado ao cume por uma brutal ambição e por um casamento com uma outra celebridade. Ter demais é tão penoso quanto ter de menos, e o pior é que uma coisa sempre leva à outra.
Os poderosos recebem o direito de "governar", mas, em democracias, governar não é possuir e trapacear, mas administrar a chamada "coisa pública" com noblesse oblige. Com um máximo de honestidade e consciência de bem servir, e não de ser servido. Coisa difícil porque os "políticos" têm dois lados. À direita pertencem à cidade, ao Estado e, acima de tudo, ao país a quem devem a difícil e assassinada noblesse oblige; e, à esquerda, ligam-se aos seus redutos ideológicos e partidários. No caso brasileiro, ao seu desejo de fama e sobretudo de grana — de muita, muita grana porque o seu modelo de vida é absolutamente aristocrático e oposto a um austero e, estou convencido, a um impossível republicanismo.
Em meio a essas correntes antagônicas e dependendo de seus lacaios, eles podem passar de representantes dignos (filhos de Deus) a triviais e vergonhosos ladrões do povo ou f.d.p!. Como afirmava Herbert Block, um notável chargista americano — um Chico e Paulo Caruso deles —, repetindo o fundador da sociologia moderna, Émile Durkheim: "Aceitar a corrupção é uma forma de corrupção." Ou como proferia o mestre francês: quando um mal a ser evitado é procurado e vira um valor ou um ideal a ser seguido, como ocorre no Brasil hoje, dono de uma jamais vista ladroagem, então, amigos, não é mais a nobreza que obriga, é a corrupção. Ou estou enganado?
Roberto DaMatta é antropólogo