Trecho de Coelho se Cala, de John Updike AS MULHERES QUE ESCAPARAM Pierce Junction era uma cidadezinha isolada de New Hampshire, de certo modo enobrecida pela presença de uma pequena faculdade de ciências humanas; para sobreviver, nós nos apegávamos uns aos outros como cobras emboladas numa caverna no meio do deserto. Os anos 60 nos tinham ensinado o elevado valor moral do coito, e relutávamos em abandonar uma atividade ao mesmo tempo tão prazerosa e tão saudável. Mas o fato é que não se podia dormir com todo mundo: éramos burgueses, responsáveis, tínhamos empregos e filhos, e as obrigações demandavam energia e causavam desgaste. Ainda não havíamos aprendido a separar emoção de sexo. Olhando para trás, constato que, no total, nossas conquistas não chegavam ao que um universitário de hoje acumula em quatro anos. Havia mulheres com quem a gente não conseguia dormir, e elas, como se por pirraça, são as que se conservam mais vivas na lembrança; e permaneceram distintas talvez porque, dentro da escorregadia bola de cobras, os contatos fossem tão poucos. "Ora, Martin", murmurou para mim Audrey Lancaster num verão, ao final de um passeio num barco alugado em Portsmouth, para comemorar o aniversário de quarenta anos de alguém, "finalmente estou entendendo o que dizem sobre você." O "finalmente" era uma espécie de farpa, e o sujeito de "dizem" era aparentemente as mulheres em geral. Fiquei imaginando que tipo de conversa, mais genérica ou mais específica, teriam entre si as esposas e as mulheres divorciadas de nosso grupo. Quando Audrey fez o comentário, eu estava parado junto à amurada, sozinho por um momento, amolecido pelo Chablis da Califórnia que havia tomado, vendo no rio Piscataqua os reflexos trêmulos das luzes do porto no momento em que o barco manobrava para atracar e os alto-falantes tocavam Simon e Garfunkel na noite quente e aquosa. Minha mulher dançava devagar no tombadilho de proa com seu amante, Frank Greer. Audrey materializou-se a meu lado e minha mão pousou em sua cintura como se nós dois também fôssemos dançar. E lá ficou minha mão, e, como o formigamento suave proporcionado por um fio mal encapado, a realidade daquelas ancas começou a arder-me nos dedos e na palma. Audrey era uma mulher sólida, de rosto liso, tão míope que andava com os pés muito abertos, com um passo desafiador, como se temesse ser derrubada por alguma coisa que não estivesse vendo direito. Vivia perdendo as lentes de contato nos gramados ou nos cantos dos olhos. Casara-se cedo e era um pouco mais nova que o resto da turma. Não havia como não adorá-la, ao vê-la na quadra de tênis com a bermuda de jeans esfiapada, as pernas fortes e morenas, o sorriso largo e tenso, tentando acertar a bola e errando o alvo por completo. Tinha a cintura lisa e flexível por baixo da roupa de algodão, e, sim, Audrey estava certa: pela primeira vez em todos aqueles anos que nos conhecíamos eu a via como uma companheira em potencial, como uma peça do quebra-cabeça cósmico que talvez se encaixasse na minha. Porém eu também sentia que, no fundo, ela não gostava de mim, não o bastante para atravessar as barreiras perigosas do adultério, sofrer os espasmos da culpa, saltar por todos aqueles aros de fogo. Ela desconfiava de mim como quem desconfia de um concorrente. Nós dois éramos palhaços, sempre disputando o troféu O Mais Engraçado da Turma. Além disso, já tinha dono, aliás mais de um: não apenas era casada com um certo Spike e tinha os quatro filhos que eram de praxe na nossa geração, como também se metera numa série de flertes e namoricos, um deles com meu melhor amigo, Rodney Miller - até onde era possível uma pessoa ter amigos do mesmo sexo no nosso meio fanaticamente heterossexual. Audrey tinha um jeito delicioso de prolongar comentários venenosos; assim, me disse: "Você não acha que devia avisar à Jeanne e ao Frank que o barco está quase atracando? Eles podem ser presos pela polícia de Portsmouth por atentado público ao pudor". Retruquei: "Por que eu? Não sou o dono do barco". Jeanne era a minha mulher. Seu amor por Frank, dentro da lógica perversa da época, me aproximara dela: eu sentia pena de Jeanne por ter que passar a maior parte do tempo comigo e as crianças e não com a pessoa que amava. Era de origem francesa e católica, e havia algo de nobre naquele sofrimento, naquele sacrifício; o cilício invisível que ela sempre usava mantinha seu torso ereto, como o de uma bailarina, e tornava-a ainda mais bela para mim. Não gostei de ouvir Audrey zombando dela. Ou será que gostei? Talvez meus sentimentos fossem mais primitivos, mais tacanhos e possessivos do que eu imaginava na época. Apertei mais a cintura de Audrey, a ponto de quase machucá-la, depois a soltei e segui em direção a Jeanne e Frank, que, tendo a música parado, davam a impressão de haver acordado naquele instante, os rostos ainda inchados, surpresos. Frank Greer fora casado com uma mulher chamada Winifred até um tempo bem recente na nossa pequena história local. O divórcio, que havia dez anos espreitava nosso grupo à medida que nosso imenso contingente de filhos atravessava a escola primária em direção - esperávamos nós - à saúde mental, ainda era uma raridade e destacava-se como uma ferida ainda fresca no rosto de Frank, rubra como a bochecha que ele havia apertado contra a de minha mulher. Maureen Miller, num daqueles intervalos na cama quando a paixão já estava saciada porém ainda restavam uns constrangidos trinta minutos de tempo utilizável antes que eu tivesse coragem de bater em retirada, uma vez me contou que Winifred incomodava-se de constatar que, durante todos aqueles anos em que o caso de Frank com Jeanne era de domínio público, eu nunca havia tentado cantá-la. Winifred, a quem às vezes chamávamos Freddy, era uma mulher pequenina que parecia uma coruja, uma coruja branca e graciosa, com olhos negros e grandes, uma pele que jamais pegava sol, um penteado à Emily Dickinson no alto de um corpo gorducho que terminava em mãos e pés pequenos e bem-feitos. Se minha mulher andava ereta como uma bailarina, quem sabia dançar bem era a mulher de seu amante; dançava com um aconchego macio e um toque leve que tinham sobre mim um efeito erótico constrangedor. Sempre que eu a tinha nos braços, o resultado era uma ereção, motivo pelo qual a prudência me aconselhava a só dançar com ela no final da noite, quando ou eu ou ela, tentando convencer nossos cônjuges a desgrudar um do outro, já havíamos vestido o casaco. Fora isso, não me sentia atraído por Winifred. Tal como a mulher que inspirara seu penteado, ela nutria ambições literárias e cultivava um estilo dogmático, seco, propositadamente oblíquo. Quando falava, afetava uma firmeza ligeiramente excessiva. "Bem, não vou dizer não", respondeu ela de forma pouco graciosa certa vez, quando, já bem depois da meia-noite, Jeanne sugeriu que eu acompanhasse Winifred até sua casa, em meio à nevasca que começara a cair durante o jantar e ao período de inércia alcoólica que se seguiu. Os outros casais, e remanescentes de casais, já haviam todos ido embora até só restar Winifred; ela possuía a capacidade de ingerir, séria e impassível, um volume impressionante de álcool, cuja presença em seu organismo só era acusada pelas pálpebras um pouco caídas sobre os olhos negros brilhantes e pelo tom mais pedante que o habitual de sua voz melíflua. Isso foi antes de os Greer se divorciarem. Frank não estava naquela festa porque tinha partido numa misteriosa viagem a negócios. Já era a primeira etapa da separação, percebi depois. Jeanne, que sabia mais do que dava a entender, tratara a mulher solitária como se fosse sua irmã menor. À medida que os convidados iam embora, Jeanne insistia com Freddy para que ela nos contasse mais uma história sobre a oficina literária de que estava participando, como aluna especial, na faculda-de local, Bradbury. Bradbury fora antigamente um macambúzio seminário presbiteriano perdido em nossa pequena cidade, com uma capelinha provida de pilares, nos contrafortes das White Mountains, porém seus laços religiosos tinham se afrouxado havia muito tempo; nos anos 60 passara a aceitar alunos de ambos os sexos, com as mais desenfreadas conseqüências. "Uma garota", contou Winnifred, aceitando o que jurava ser seu último Kahlúa com conhaque, "leu uma história que estava na cara que era baseada numa separação dolorosa que ela tinha acabado de viver, e o professor fez uns comentários supersarcásticos, ele parece sádico, ou então foi uma tentativa de cantada." Seu rosto deixava claro que ela estava indignada e enfadada com aquela história toda. Imaginei que estivesse deslocando a raiva que tinha de Frank para o professor, um poeta nova-iorquino que certamente sentia saudades de Greenwich Village, onde a revolução sexual era polimorfa. Era um sujeito maçante, azedo, pernóstico - fora a impressão que me ficara após meus rápidos contatos com ele - e, além disso, tão pequeno que chegava a desconcertar. Aquelas histórias sobre a oficina literária eram fascinantes, a julgar pela animação de Jeanne, a qual insistia com a outra para que ela contasse mais. Havia em Pierce Junction uma regra segundo a qual a pessoa tinha que ser particularmente simpática com o cônjuge do amante - uma prática que não era de modo algum insincera, pois aquele segredo compartilhado gerava um sentimento tortuoso e culposo de gratidão para com o felizardo que convivia com a pessoa amada. Mas até mesmo Winnifred, em meio à névoa de Kahlúa, começou a ficar incomodada, levantou-se na sala fria (o termostato já havia se recolhido horas antes) e cobriu a cabeça com o xale, como se arrufasse a plumagem. Aceitou de testa franzida a sugestão de Jeanne, que insistia que eu a acompanhasse até sua casa. "Claro, não tenho condição de dirigir, mas foi tão divertido", disse ela a Jeanne, com um aperto de mão que minha mulher, de rosto vermelho, transformou num abraço feroz e, por tabela, um tanto frenético (assim me pareceu) de afeto. O carro de Winnifred estava colado à calçada por uma parede de neve levantada pelas jamantas de luz rodopiante do departamento de estradas, e ela morava a apenas três quarteirões de nós; era só subir uma ladeira coberta por dez centímetros de neve recém-caída. Winnifred precisou apoiar-se em meu braço, mas permanecemos imersos em nossos próprios pensamentos. A neve caía com um sussurro constante, e a presença nas ruas, àquela hora da madrugada, dos limpa-neves, roncando e raspando, criava um efeito de camaradagem - era como se houvesse uma festa maior sob aquele céu carregado, amarelo, que brilhava com a fosforescência estranha e secreta que têm as nevascas. As casas estavam escuras, e a luz da varanda da minha casa foi ficando menor, mais longe, no pé da ladeira. Quando chegamos à porta de sua casa, bem debaixo de um poste de iluminação, Winnifred virou-se para me encarar, como se, embora estivéssemos os dois encasacados, quisesse dançar; mas estava apenas oferecendo seu rosto pálido, oval, gelado e triste para que eu o beijasse. Flocos de neve prendiam-se nos cílios longos de seus olhos fechados e pontilhavam o arco de cabelo negro exposto pelo xale. Como sempre, fiquei excitado. Na casa atrás dela só havia crianças adormecidas. A fachada coberta de ripas precisava de uma pintura; seu estado de abandono traía o casamento em crise por trás dela. Em Pierce Junction havia todo um folclore em torno das casas dos outros casais - a fusão de gostos, o acúmulo de móveis, as fotos emolduradas do tempo do noivado e de férias anteriores ao casamento. Todos nós gostávamos de receber e visitar, mas preferíamos visitar, invadir, fuçar e bisbilhotar do modo mais irresponsável. Será que ela esperava que eu entrasse? A idéia não me parecia nem um pouco razoável - atrás de mim, ao pé da ladeira, Jeanne certamente estaria recolhendo os destroços da festa na sala e dirigindo um olhar de desânimo ao relógio da cozinha, com seu ponteiro de segundos vermelho sempre em disparada. Também meus cílios estavam pesados de gelo quando, na despedida, beijei nossa convidada, bem na boca mas de leve, de leve, com um toque sutil e alcoolizado de lamento cortês. De todos os beijos que dei e recebi em Pierce Junction, contando crianças, adultos e cachorros, esse beijo, casto e cristalino, permanece intato em minha memória. Quando voltei para casa, fiquei surpreso de encontrar Frank sentado na sala com uma cerveja na mão, o terno amassado, o rosto comprido vermelho, como se tivesse acabado de fazer um grande esforço. Jeanne, cansada demais para manifestar constrangimento, explicou: "O Frank acabou de voltar da viagem. O avião quase não pôde pousar em Manchester, e quando ele viu que a Freddy não estava em casa resolveu dar um pulinho aqui para pegá-la". "Subiu e desceu essa ladeira com essa neve toda?", espantei-me. Não me lembrava de ter visto nenhum carro passando. "Nosso carro tem tração nas quatro rodas", disse Frank, como se isso explicasse tudo. Às vezes Maureen era muito provocadora. Seu corpo era largo mas não profundo - tinha quadris grandes e seios pequenos -, e no verão inteiro ela ostentava em torno do pescoço uma extensão de pele queimada, sardenta, descascando, por passar horas no jardim com um blusão sem gola, sem chapéu. Era ruiva, e jamais abandonara a moda dos cabelos longos e escorridos da era hippie, quando os hippies já haviam se transformado em marginais ou malucos ou tinham voltado para a casa dos pais havia muito tempo. Depois que lhe contei esse episódio, deixando de lado apenas o estranho efeito fisiológico que ocorria em mim sempre que eu abraçava Winifred, Maureen riu e atirou a juba para trás, como se estivesse prestes a me devorar com seus dentões muito brancos. "A Jeanne é incrível", disse ela. "Imagine só, marcar encontro com o namorado à uma da manhã, crente que o marido ia estar transando com a mulher do cara! Pelo visto, a nevasca atrasou tudo - por isso ela ficou insistindo com a Freddy pra ela não ir embora." "Não acredito", eu disse, no tom mais indignado de que era capaz estando nu, recostado na cama, com um cigarro e um copo de vermute vermelho, "que a coisa seja assim, calculada friamente. Pra mim, ele apareceu lá em casa porque achou que a festa ainda não tinha terminado." "Mas ele viu que não tinha nenhum carro parado na frente!" "Ah", exclamei, com uma discreta sensação de triunfo, "mas o carro da Freddy estava lá, coberto de neve." "É como aquela história", disse Maureen. "'Se vós não tivésseis lavrado com a minha novilha' - como é mesmo o resto? - 'não teríeis descoberto o meu enigma'." Ela e Rodney haviam se conhecido num curso de verão sobre a Bíblia, e Rodney ainda conservava aquele jeito - cabelo penteado, ar juvenil - de futuro missionário. "Mas enfim", prosseguiu ela, alegre, sacudindo o colchão de tal modo que derramei um pouco de vermute nos pêlos do peito, onde - que droga! - Jeanne era bem capaz de sentir o cheiro, "eu entendo, você está se sentindo culpado em relação à Freddy, mas não entre nessa, não. Ela anda trepando com aquele poeta de Nova York, aquele sujeitinho horroroso, é o que todo mundo diz lá na faculdade." "Eu preferia que você não me contasse todas essas coisas. Eu gostaria de manter um pouco de inocência." "Ah, Martin, você bem que gosta, você adora saber de tudo", disse ela, esfregando o nariz no lugar onde caíra o vermute, com uma seriedade vigorosa, impessoal, leonina, que me assustou um bocado. Para me livrar dela, consegui encontrar suas orelhas no meio de todo aquele cabelo e, puxando-as, afastei sua cabeça do meu peito. O rosto dela nessa posição, o lábio superior levantado, os olhos semicerrados, lembrou-me Winifred erguendo o rosto para que eu a beijasse na neve, e evocou também uma máscara mortuária. Maureen não tinha um corpo de mulher que esconde os ossos, sua fome ávida e mortal. Rindo, mas com um olhar duro, vingativa, embora bem-humorada, prosseguiu: "O Rodney diz que você parece mulher, mete o nariz em tudo". Esse comentário me magoou e me excitou. Eu e Rodney éramos de uma discrição severa, só conversávamos sobre nossos esportes castos - golfe, pôquer, tênis, esqui. Nunca falamos de política, nem mesmo no auge da guerra do Vietnã, nem depois, durante toda a prolongada queda de Nixon. No entanto era excitante pensar em Maureen e Rodney conversando sobre mim na intimidade do leito nupcial. "Pareço mulher, é?", retruquei rosnando, obrigando-a a trocar de posição comigo e ficar por baixo naquela cama do quarto de hóspedes que eu conhecia tão bem, uma cama de mogno, de baldaquino, com um abacaxi removível no alto de cada coluna. Resistindo, Maureen soltava gritos alegres que ecoavam pelos cômodos da casa em estilo vitoriano, recobertos de carvalho, e - temia eu - chegavam à rua. Pierce Junction era uma cidade cheia de segredos que viviam vazando, como vaza serragem de uma viga carcomida pelo cupim. Havia uma série de furinhos microscópicos, com um lampejo de vida no fundo de cada um. Quando Jeanne ficou sabendo de meu caso com Maureen, reagiu com um acesso de fúria que me surpreendeu, pois havia anos que eu não dizia nada a respeito de seu relacionamento com Frank. Para demonstrar sua raiva, fez uma coisa imperdoável - foi até a casa dos Miller e contou tudo a Rodney. Maureen, com aquele seu lado religioso, trabalhava às quartas e sábados num abrigo metodista para crianças delinqüentes em Concord, e foi a eficiência da companhia telefônica, que registrava todas as ligações interurbanas, listando-as por cidade e por número, que revelou nosso segredo. Quando tento relembrar nossa paixão, o que me vem à mente não são imagens pornográficas do que fazíamos na cama, e sim um certo sabor neutro, a madeleine de um minuto particularmente vazio num dia à-toa, o anseio que, numa tarde morta e oca, despertava em mim um desejo insaciável pela voz dela - mais grave e rouca ao telefone, mais intensa e musical, do que quando estávamos juntos. Por um momento aquela voz afastava o medo intenso em que eu vivia naqueles anos; a voz e as súbitas inspirações de percepção cáustica por ela trazidas pintavam o mundo, que me parecia envolto num terror vago, com cores vivas e audazes. Ouvir Maureen rir aquele riso tranqüilizador, como se todos nós estivéssemos vivendo uma brincadeira deliciosa e precária, saciava uma sede que me pesava na garganta como um pedaço de ferro. Não estando Maureen presente, nem mesmo como uma voz ao telefone, o mundo ficava descentrado. Eu precisava falar com ela, e foi a conta telefônica que nos entregou. A fome não era só minha, e sim de todo o nosso círculo, atormentado pela ânsia de necessidades insatisfeitas: Jeanne e Frank, coitados, aproveitando-se daquela meia hora ridícula na nevasca. Para mim, Maureen era como uma fogueira num acampamento, cuja luz faz com que a escuridão exterior pareça absoluta e cujo calor se transforma em frio intenso assim que nos afastamos dela, mesmo que apenas alguns poucos passos. Jeanne levou horas para voltar da conversa com Rodney. Não imediatamente, e sim depois que a passagem de alguns dias nos havia reduzido a esqueletos exaustos de honestidade, ela confessou que, não estando Maureen em casa, acabou dormindo com Rodney, numa espécie de delírio de vingança, embora ele relutasse. "Uma das tristezas de Maureen", disse-lhe eu, "era ele ser sempre tão fiel, totalmente satisfeito com ela. Pelo menos era o que ela pensava." "Engraçado. Você lembra a época em que a Winifred e o Frank tinham acabado de se separar, e a Freddy estava louca para transar? Eu estava morrendo de medo que ela tentasse seduzir você naquela noite da nevasca. Pois bem, o Rodney foi o único homem daqui que não decepcionou a Freddy, que correspondeu à auto-imagem dela. Pelo visto, ela é muito ligada em sexo. O Rodney disse que ficou meio grilado de sentir que àquela altura dos acontecimentos - ih, eu falei igualzinho ao Nixon - ela trepava com qualquer um. Eu preferia não saber dessa história - nem mesmo o Frank está sabendo, eu detesto saber segredos que ele não sabe." "Mas que belos escrúpulos", eu disse. "Pode me gozar. Eu mereço, não é?" "Minha mártir. Minha Jeanne D'Arc", eu disse, mal conseguindo conter a vontade de levá-la para a cama para descobrir de que modo ela fora enriquecida por aqueles novos conhecimentos, por aquela corrupção recente. No entanto, acabamos nos divorciando, num processo arrastado e doloroso, tal como Maureen e Rodney. Mudei-me para Nashua, mas estava sempre voltando a Pierce Junction para visitar as crianças, tirar a temperatura de Jeanne e jogar com a turma de sempre. Uma noite, após uma rodada de pôquer, não querendo que eu voltasse a Nashua dirigindo depois de tomar muita cerveja, Rodney me convenceu a ir dormir em sua cabana dos tempos de solteiro, na serra; era pouco mais de um quilômetro de subida numa estrada de terra. Enquanto esperava minha vez de usar o banheiro, vi uma anotação largada na bagunça da mesa. A letra arredondada, aprumada, em que os "aa" eram como "oo", pareceu-me surpreendentemente familiar; Audrey Lancaster havia trabalhado como secretária de uma comissão de conservação da qual eu participara. Dizia a nota: Mais uma viagem perdida. Fui eu que entendi mal ou foi outra mancada do frei Laurêncio? Agora minha caminhonete está suja de terra e minhas pernas cheias de picadas de mosquito por conta da hora que passei na sua varanda. Um chato de um pássaro na mata estava tentando me dar um recado, só que eu não entendo linguagem de pássaro. Com o abraço de sempre. E então? Não havia assinatura. Uma página com pautas azuis, arrancada, certamente com raiva, de um caderno de espiral. Um furo no alto indicava o lugar em que fora perfurada pela tacha que a afixara à porta da cabana. Com uma espécie de pontada, senti-me muito próximo de Audrey, tal como na noite em que pus a mão em sua anca. Ela havia subido aquela estrada de terra no escuro, através da floresta, como um salmão nadando rio acima, à toa, e voltara humilhada. A alusão literária em seu bilhete tinha mais a ver com Winifred do que com ela. Quando Rodney saiu do banheiro, inocente, com um pijama de algodão de menino, o queixo sujo de pasta de dente, senti por ele um ódio que jamais havia sentido em todos aqueles anos que passei entrando em seu casarão, perto da faculdade, passando pelo cortador de grama e pelas latas de óleo na garagem, atravessando a cozinha onde ele devorava o café-da-manhã todos os dias, passando pela prateleira onde ficavam seus troféus de golfe, em direção à cama de mogno no quarto de hóspedes. Enquanto alguns, como eu, se debatiam nas fímbrias da vida, insaciáveis, tentando ver o que se passava lá dentro, ele se esparramava no centro dela, complacente, esperando que a vida viesse até ele - em ondas tão abundantes que, estava claro, ele nem conseguia dar conta do serviço. Em Nashua, enquanto os anos 70 morriam à míngua com a inflação e o mal-estar do governo Jimmy Carter, fui perdendo de vista as idas e vindas da vida em Pierce Junction. A possibilidade de que eu e Maureen viéssemos a viver juntos de modo respeitável fora rejeitada por ela desde o início. Era criança demais, despesa demais, águas passadas demais. "Você não entende, Marty?", disse-me ela. "A gente fez o que fez. Um ia ficar olhando pro outro e vendo sempre a prova do nosso pecado!" Fiquei chocado ao ouvir aquela última palavra, tão antiquada, que levantava a possibilidade de que ela - e Jeanne, e todas as mulheres - esse tempo todo estivesse sofrendo em nosso paraíso sexual, vivendo em tensão por estar se desviando da monogamia. Senti-me insultado. Assim, foi com uma certa satisfação vingativa, misturada com outros sentimentos, que fiquei sabendo de sua morte súbita, tarde da noite, na Route 202, num carro dirigido por - logo quem! - Spike Lancaster, um dono de restaurante balofo, que falava aos berros e bebia demais; suas deficiências óbvias haviam investido a imagem de Audrey, em nosso pequeno grupo, de uma aura de santidade. A única coisa que Spike e Audrey tinham em comum era a miopia. Maureen morreu, e ele, o motorista, emergiu do acidente com feridas superficiais e uma fama de garanhão que provavelmente não prejudicou seu restaurante de beira-estrada - que aliás se chamava Lucky Shamrock (Trevo da Sorte). Eu mal podia acreditar que, depois de nosso romance sublime, Maureen tivesse se envolvido com aquele brutamontes, aquele pateta. Bem feito, quebrou a espinha, aquele pescoço esguio circundado de pele queimada de sol no verão. Esses pensamentos maus, indignos, duraram apenas um instante, claro - um pequeno relâmpago de neurônios amorais antes de ter início a chuva suave da tristeza honesta. Porém a morte de Maureen e esse escândalo final, com marcas de pneu no asfalto e estilhaços de vidro de segurança, foram para mim o fim de Pierce Junction. Jeanne e Frank casaram-se, e eu também embarquei numa segunda vida, com uma segunda mulher e novos filhos. Meus filhos continuaram a crescer, fizeram faculdade, casaram-se e mudaram-se para outras cidades. Eu tinha cada vez menos motivos para voltar; quando o fazia, a geografia da cidade, que pouco mudara, parecia conter as mesmas correntes elétricas de sempre, só com fios diferentes. Os rostos, e os velhos furos de cupim, se ainda existiam, estavam invisíveis, atravessando vidas mais jovens. Quando pensava nos velhos tempos, que de algum modo haviam se tornado sagrados, era, como eu já disse, menos nas mulheres que me eram mais próximas do que nas que haviam permanecido a meia distância, relativamente virginais, que tinham sido atraídas pelo canto das sereias do desconhecido, levando-o consigo ao desaparecer de meu horizonte. Um shopping center havia brotado entre Nashua e Pierce Junction, no local onde antes havia uma fazenda cujos silos prateados eu ainda esperava ver, brilhando, naquela curva da estrada. Em vez disso, encontrei uma estrutura fragmentada e reluzente - lojas de grifes com vidraças pós-modernas e um amplo prado de asfalto coalhado de automóveis. Com a intenção de comprar um presente de aniversário para um neto numa dessas lojas de brinquedos cujo nome ostenta um estranho R ao contrário, eu caminhava por uma aléia insistentemente musical, sob uma arcada, ladeada por vitrines que, parodiando uma rua de comércio de cidade do interior de outrora, ostentavam marcas registradas, pontilhada por quiosques pouco freqüentados que ofereciam bijuterias, chás naturais exóticos, balas e biscoitos recobertos de iogurte em compartimentos de plástico leitoso. De repente vi, a meia distância, um passo inconfundível - pés bem abertos, jeito desconfiado, porém determinado e, para meus olhos, sedutoramente juvenil. Escapuli para dentro de uma loja da Gap e, oculto pelas prateleiras de jeans amaciados e suéteres de tons suaves, fiquei vendo passar Audrey, mais cheia, grisalha, porém ainda ágil. As lentes de contato que ela vivia perdendo tinham sido substituídas por óculos grossos, ostensivamente pesadões. Ela apertava a vista e sorria e falava animada, movimentando aquela boca flexível, murmurante, larga. Seu companheiro, com cabelos brancos curtos e macios, trajando calças e um colete forrado, por um momento pareceu-me totalmente desconhecido, um homenzinho baixo de cara amarrada. Mas então, com uma pontada de reconhecimento que disparou uma excitação senil por trás de minha braguilha e me fez dar um salto para trás, afastando-me da janela, eu vi; impossível não identificar o corpo de coruja, em forma de barril, os olhos negros sob sobrancelhas espessas, as mãos e os pés delicados. Winifred. Ela e Audrey caminhavam com a suave submissão mútua de um velho casal. Estavam de mãos dadas. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário