Os governos serão julgados tanto pelo que colheram nos cinco anos de bonança anteriores à crise quanto, se não mais, pelas respostas que darão aos efeitos dela. Serão capazes de amortecer os seus impactos e fortalecer a capacidade de desenvolvimento dos respectivos países no futuro pós-crise? Nos próximos dois anos não estarão em julgamento apenas governos, mas também "modelos" de gestão do Estado e da economia. Se quando o vento sopra a favor todos os barcos avançam, é quando o vento vira que melhor se pode avaliar quem é quem.
Mais que a discussões abstratas sobre as virtudes ou os defeitos do neoliberalismo, do neodesenvolvimentismo ou outros neologismos genéricos, deveríamos estar atentos ao teste empírico a que estão submetidos os "modelos" específicos de gestão do Estado e da economia concretamente existentes na região. Sob esta ótica, vale a pena distinguir: de um lado, os que demonstram condições para fazer frente aos efeitos imediatos da crise e manter ou mesmo ampliar os horizontes do desenvolvimento futuro; do outro, os que, presos a erros sucessivos de políticas ou à vocação anti-institucional de seus dirigentes, sacrificam o futuro em favor de ganhos econômicos de curto prazo e benefícios políticos exclusivos do líder, grupo e/ou partido no poder. Começo pela Venezuela chavista, passo à Argentina dos Kirchners (pós-Roberto Lavagna, ex-ministro da Fazenda) e ao Chile da Concertación (coalizão de centro-esquerda que se reveza no governo desde 1990), para concluir com o Brasil.
Qual a principal reação de Chávez em face da crise? Antecipando-se à piora da situação econômica e social, retoma a iniciativa - derrotada em referendo realizado em dezembro de 2007 - de emendar a Constituição venezuelana para estabelecer o direito à reeleição indefinida. Ele aposta que tem reservas internacionais suficientes para atravessar o período de vacas magras (preço do petróleo muito deprimido) e busca adquirir, o quanto antes, recursos políticos adicionais (o direito de se reeleger indefinidamente). Por quê? Para evitar que, em meio à crise, o regime bolivariano se esfacele pela pressão dos "de fora" (a oposição) e pela debandada dos "de dentro" (os aliados do regime).
Trata-se de um jogo de tudo ou nada. Se perder o referendo, como as pesquisas de opinião por ora indicam, Chávez torna-se um presidente precocemente fraco (seu mandato só termina em 2013). Como não tem vocação para o papel de "pato manco", cresce o risco de que endureça definitivamente o regime. Se ganhar, não hesitará em avançar no aprofundamento do "socialismo do século 21". Num ou noutro cenário, reduzem-se as chances de uma transição não-traumática para um regime pós-Chávez e com isso aumentam os obstáculos ao desenvolvimento futuro da Venezuela.
Em que pesem muitas diferenças, também na Argentina o futuro vem sendo sacrificado na resposta à crise, nas antevésperas de uma eleição parlamentar que, historicamente, costuma predizer os resultados eleitorais da eleição presidencial seguinte. Em sua ação mais ousada, a presidente Cristina Kirchner decidiu estatizar o controle sobre os recursos das contas de previdência, antes sob a gestão de entidades privadas. O efeito imediato da medida é aumentar os fundos à disposição do governo para financiar políticas de estímulo à economia. Aparentemente, um passo na direção correta. Seu efeito de longo prazo, porém, é golpear brutalmente a confiança que a sociedade argentina possa ter em seu governo. Não me refiro apenas à confiança no governo de Cristina, já abalada pela manipulação dos índices de inflação oficial, mas em qualquer governo no futuro previsível.
É flagrante o contraste com a reação do Chile à crise. Lá a resposta do governo seguiu o padrão de uma política há muito estabelecida, como que indiferente ao favoritismo do candidato da oposição, Sebastian Piñera, às eleições presidenciais de outubro. O país é o único da região que tem em vigência uma regra de superávit fiscal estrutural que o faz poupar nos períodos de abundância para poder gastar nos de escassez, sem criar desequilíbrios nas contas públicas. A observância dessa regra, implantada em 2001, permite agora ao Chile injetar recursos fiscais equivalentes a 4% do PIB (mal comparando, algo acima de R$ 100 bilhões, se fosse no Brasil) para estimular a demanda e atenuar os efeitos depressores da crise sobre o emprego e a renda.
De que lado o Brasil se situa nesse quem é quem da região? Mais próximo ao padrão do Chile, sem dúvida, embora tenhamos perdido a oportunidade, nos cinco anos de fartura, de construir os mecanismos fiscais para uma política contracíclica mais efetiva. O governo, porém, optou por manter um ritmo de crescimento excessivo do gasto em custeio. Na área fiscal, sobrou-nos o infundado Fundo Soberano. Hoje nos faz falta uma poupança fiscal genuína para impulsionar a demanda, em geral, e o investimento, em particular, numa economia em rápida desaceleração. Por aqui, no entanto, não se vê o atropelo das instituições políticas e econômicas no fragor da crise. Isso porque existe uma certa racionalidade instalada no Estado e no governo, porque o presidente Lula tem mostrado juízo e, principalmente, porque a sociedade brasileira amadureceu.
Todo o cuidado, porém, é pouco. A crise será prolongada, os instrumentos à disposição, que não são poucos, podem não surtir efeitos significativos no prazo desejável e haverá tentação política e muitos reclamos para encontrar atalhos. Afinal, 2010 está quase aí.
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