PRIMEIRA LEITURA |
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A cada vez que leio uma crônica dessas lacrimejantes, em que o analista ou a analista especula sobre a crise da esperança que se seguiria à derrocada do PT; ou, então, em que se lamentam os desvios do partido, que seria bom na origem e só proporia coisas decentes e razoáveis, toma conta de mim uma espécie de melancolia. É como se eu pressentisse que o país não tem lá muita saída mesmo. Estamos condenados a certo estado de coisas. Explico-me. Se alguns analistas fossem para um divã político, quem sabe arrastando consigo dirigentes petistas para uma terapia de grupo, a verdade talvez lhes fosse revelada — ou, mais apropriadamente, como acontece na psicanálise quando séria, eles próprios seriam levados a descortiná-la. Estão todos eles ansiosos, doidos mesmo, para que um tucano ou um pefelista chegue ao poder. Mas o melhor é que seja um tucano — sempre mais odiado pelos petistas, como se percebe no barulhento silêncio de Marilena Chaui. Querem todos eles voltar à sua antiga profissão: o exercício da crítica irresponsável, da esperança sem fundamento, das promessas sem fundo, do discurso moralista descolado dos limites da realidade. Sim, era uma profissão e um conforto. Eram os escravos triunfantes a exercer o poderosíssimo papel da vítima. Ou, com mais gosto ainda, eram as vítimas vicárias identificando-se com a causa do oprimido, o que lhes permitia, ademais, exercer assim uma espécie de doação em favor do outro. Todo mundo quer ser reconhecido como uma pessoa boa e generosa, ainda que não seja. Os maiores psicopatas do mundo se consideram mártires de uma causa. A crítica de esquerda que se quer moderada e propositiva não vê a hora de ter no poder um Serra, um FHC, um Alckmin. Ainda que sejam tão distintos entre si — e parte da tragédia do pensamento brasileiro está em não reconhecer essas diferenças —, qualquer um deles voltaria a ser objeto de uma desconstrução desses analistas, que retomariam o discurso preguiçoso da modernização conservadora. Ninguém agüenta mais se sentir ilegítimo para atacar o poder, uma vez que foram, todos eles, coadjuvantes da ficção que conduziu Lula ao poder. Vejam que estranho: a democracia brasileira teria de voltar a ter, diante dos olhos da esquerda, certa aparência de ilegitimidade (para ela, claro) para que ela própria se sentisse, então, (re)legitimada. Essa gente só consegue se entender com uma função social se for desconstruindo, como diz, o poder. Marilena é a prova mais triste, bisonha e patética disso que estou dizendo. Esses caras passaram 23 anos sonhando com o poder. Quando o conquistam, sustentados em 53 milhões de votos, com uma oposição cordata como eles nunca foram, rigorosamente não sabem o que fazer. E não sabem não porque estejam apalermados pela incompetência apenas. Viviam o delírio de que a sociedade e o Estado tinham de ser substituídos pelo partido, de sorte que as demandas resolvidas entre eles implicariam soluções também para o país. Daí a determinação de aparelhar até carrinho de Chicabom. Tendo dado tudo errado, os escravos estão aflitos para reentronizar aqueles que consideram os seus senhores. Não tinham projeto de governo, mas apenas alguns ressentimentos à mão. Sua chegada ao poder, diga-se, é a prova evidente de que sempre estiveram errados. Olhem que tragédia moral: só conseguem atingir o seu objetivo negando-se. Eles são, em suma, uma equação impossível. Por isso Marilena mergulha fundo na loucura e culpa os tucanos. Porque ela só sabe ser vítima; ela só sabe existir como função ou derivação do "outro" que ela combate. Por isso ela se nega o exercício nem tanto de uma autocrítica, que talvez nem fosse necessária, mas da crítica. Ora, só reconhece um erro quem se sente autônomo e, pois, inquire sobre as próprias responsabilidades em qualquer processo. Marilena, não. Se lhe derem autonomia de vôo, voltará às caravelas para buscar a gênese do desastre. Ela existe como contestação em si. De quê? De qualquer coisa. De tudo o que está aí. Sua experiência, aliás, como secretária de Cultura de Luíza Erundina já deixara isso muito claro. Ela não tem propostas, ela tem uma retórica, no pior sentido que essa palavra pode assumir. A retórica pode ser um discurso decoroso sobre determinada prática social, defendendo um ponto de vista, um propósito, uma tese. Pode ser apenas uma fala oca, exercida às cegas, denunciando as trapaças do poder. De qual poder? O do adversário. Os escravos estão assanhados de novo. Reivindicam a devolução do seu direito de se sentir discriminados e fora do jogo. Querem criar de novo um bantustão nesta sociedade nojenta, capitalista e excludente, onde poderão exercer à vontade as suas utopias, em sentido absolutamente literal. Querem voltar a criticar o poder do ponto de vista de quem está cercado, sonhando com amanhãs que cantam. O poder os leva à falência moral. Por isso ou silenciam ou atacam os outros, mas jamais reconhecem a si mesmos como realidade autônoma e, pois, também criticável. Torço para que alcancem seu intento. Não vejo a hora de a esquerda voltar a denunciar o capitalismo em vez de tê-la no poder a acrescentar ao modelo crimes que ele não conhecia. |
Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, agosto 30, 2005
Os escravos morais estão inquietos Por Reinaldo Azevedo
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