O GLOBO
Prosseguindo em seu processo de catarse, o presidente Lula declarou-se ontem em Quixadá, no interior do Ceará, "chateado, sofrendo muito", mas insistiu que até agora só existem "denúncias, insinuações e nenhuma prova que possa condenar uma pessoa". Essa frase, como sempre acontece quando fala de improviso, pode ter interpretações distintas, o que Lula provoca não por esperteza política ou sutileza verbal, mas porque já não consegue expressar seu pensamento com clareza, embora tenha uma empatia grande com o público menos esclarecido.
Não se sabe se o presidente está "chateado" pelos crimes cometidos por seus aliados, ou se está "sofrendo muito" vendo seus amigos sendo acusados sem nenhuma prova que possa condená-los. Ou ainda se está "chateado" e "sofrendo muito" porque não conseguem provas para condenar os que prevaricaram.
Como, em outro improviso, o presidente Lula se disse "traído", é de se supor que esteja convencido de que alguém muito próximo cometeu algum tipo de deslize. Quem ajudou a esclarecer a situação foi o ainda ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, ele que se viu envolvido em denúncias sobre saques na boca do caixa do Banco Rural e chegou a ameaçar pedir demissão do cargo, dizendo-se "enojado" com tudo o que está acontecendo.
Ciro defendeu arduamente seu ex- chefe de gabinete Márcio Lacerda, que estava na relação do lobista Marcos Valério como tendo recebido mais de R$ 600 mil. Esclarecido que esse dinheiro havia sido pago por serviços prestados pela empresa New Trade, de um cunhado de Ciro Gomes, na campanha presidencial de Lula no segundo turno, o problema passou a ser também do presidente da República, cuja campanha foi paga com dinheiro oriundo do caixa dois.
O fato é que Ciro parece continuar indignado, mas está firme no cargo, tendo sido guindado nos últimos dias a integrante do "gabinete de crise", e mantém o status de potencial candidato alternativo à Presidência da República, até com o apoio do próprio Lula. Mas, se já era difícil que o PT o aceitasse como o candidato oficial do governo caso Lula desista de tentar se reeleger, ontem ficou mais difícil ainda. A não ser que Lula deixe o PT depois dessa conturbada transição de comando, e decida terminar seu governo sem partido, apoiando pessoalmente o candidato do PSB.
Em discurso ao lado do presidente em Quixadá, o ministro Ciro Gomes não deixou dúvidas de que crimes foram cometidos: "É preciso punir quem traiu a confiança do presidente e se envolveu em escândalos de corrupção. Por mais amigo, por mais parceiro que seja", afirmou para os eleitores de seu estado, o Ceará.
E definiu claramente o ambiente em que se encontravam os "traidores": "Gente que tinha a confiança do presidente da República trocou as mãos pelos pés e fez uma coisa muito feia, muito suja", disse o Ministro da Integração Nacional, em linguagem simples para ser bem entendido por seu povo. E, de maneira sutil, não inteligível para o público local, mas certamente compreendido pelos "formadores de opinião", disse que terá que ser punido qualquer um, "por mais que tenha até serviços prestados ao Brasil".
Uma acusação direta a políticos como o ex-ministro José Dirceu ou o ex-presidente do PT José Genoino. Ao contrário do presidente, que, diferentemente do que fazia quando era o líder da oposição, hoje pede paciência e respeito aos ritos da Justiça, Ciro Gomes disse que a punição "infelizmente está demorando demais". Para mostrar que o governo está fazendo sua parte, o Ministro da Integração Nacional citou orgulhosamente que nada menos que 59 funcionários já foram afastados de suas funções por suspeita de envolvimento nos escândalos.
Ora, um governo que em três meses de crise política já afastou um número tão grande de assessores de diversos escalões, até mesmo ministros de Estado, é um governo em franca decomposição. Mas o presidente Lula parece não se dar conta do que está acontecendo à sua volta, e quando tenta demonstrar que sabe o tamanho do problema que tem pela frente, compara-se, mesmo pela negativa, a políticos que, diante de situações como a que passa, suicidaram-se (Getúlio Vargas); renunciaram (Jânio Quadros) ou foram depostos (João Goulart).
Esses paralelos, se são temas de análises de políticos e estudiosos, não deveriam estar na fala de um presidente da República no pleno domínio da situação. Dias antes, os outros dois presidentes do poderes da República — Nelson Jobim, do Supremo Tribunal Federal, e Renan Calheiros, do Congresso Nacional — haviam se reunido com o presidente e divulgado uma nota onde ressaltavam que o país vive em plenitude democrática, com todos os poderes funcionando normalmente. Não caberia, pois, referências a tentativas de golpe, nem a renúncias, muito menos a suicídio.
Mas como a política tem seus mistérios, o jornal argentino "La Nación" lembrou ontem — e o prefeito do Rio, Cesar Maia, postou em seu blog — que a frase de Lula é muito semelhante a uma outra do ex-presidente da Argentina Arturo Frondizi, em carta escrita ao presidente de seu partido. Escreveu Frondizi a Alfredo Garcia, pedindo que tornasse pública a carta caso o eliminassem fisicamente ou o prendessem: "Não me suicidarei, não renunciarei nem deixarei o país." Frondizi foi destituído dias depois de ter escrito a carta, em março de 1962.
Entrevista:O Estado inteligente
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