"Quando alguém quer provar que o Brasil
tem saída, sempre menciona Machado de
Assis, como se um único escritor resgatasse
séculos de falta de talento. Ele virou um álibi
para o nosso fracasso"
Caetano Veloso me chamou de abacaxi com caroço. Foi numa entrevista coletiva para promover o lançamento de um DVD. Ele passou metade da entrevista falando mal de mim e de Paulo Francis. Como falar mal de nós não ajuda a vender DVD, acredito que tenha sido apenas uma maneira dissimulada de bajular o governo.
Para Caetano Veloso, represento a parte deteriorada da cultura brasileira. Um derrotista, um entreguista, um colaboracionista, pronto a acolher o usurpador estrangeiro. Junto com Paulo Francis, de quem sou um mero subproduto, formo o time dos traidores da pátria. Do lado oposto, defendendo o escrete canarinho, Caetano Veloso, imodestamente, escalou a si mesmo, em companhia de Machado de Assis, Glauber Rocha e Chico Buarque. Encontram-se aí, segundo ele, as duas correntes contrapostas do pensamento nacional: os americanófilos que condenam o Brasil a uma posição de eterno servilismo e os artistas que, com suas obras, colocam o país no centro do mundo.
Caetano Veloso está certo, claro. Meu maléfico plano é derrubar o presidente e transformar o Brasil num protetorado americano. Quanto mais dependente, melhor. Em minha empreitada, tiro de letra o próprio Caetano Veloso, Glauber Rocha e Chico Buarque. Difícil é enfrentar Machado de Assis. Quando alguém quer provar que o Brasil tem saída, sempre menciona seu nome. Como se um único escritor resgatasse cinco séculos de falta de talento. De geração em geração, Machado de Assis renova a crença em nossas capacidades, como se suas conquistas individuais, isoladas, pudessem indicar atributos coletivos. Ele virou um álibi para o nosso fracasso.
Eu nunca havia considerado Machado de Assis como um inimigo. Ingenuamente, aliás, eu supunha que ele estivesse do nosso lado, comandando o nosso time, na qualidade de o maior e o mais prestigioso abacaxi com caroço do Brasil. Basta ver a maneira impiedosa como ele retrata nossos compatriotas em seus últimos livros. Uma gente mesquinha, boçal, parasitária, que combina pieguice com selvageria. Ninguém trabalha, exceto os escravos, que só aparecem como moeda de troca. Os ideais que circulam nos meios intelectuais são um pastiche grotesco daquilo que os europeus enterraram no século anterior. Machado de Assis jamais demonstrou grande fé no futuro do Brasil. Na verdade, ele era de um ceticismo que beirava o reacionarismo. Desconfiou de todas as transformações ocorridas em sua época, como a abolição da escravatura e a proclamação da República. Nunca se deixou contaminar pelo otimismo panglossiano dos brasileiros, evitando aquela euforia irracional que, ao longo de nossa história, sempre resultou em alguma forma de abuso.
Como se sabe, existe outro Machado de Assis: o politiqueiro e conchavista da Academia Brasileira de Letras, entranhado fisiologicamente nas instituições do Estado, acovardado diante do poder político. Esse Machado de Assis brejeiro não me interessa. Caetano Veloso pode ficar com ele.
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