11 de maio de 2003
Condenado à morte por fanáticos
muçulmanos em 1989, o escritor
diz que já não teme seus inimigos,
mas acha que a religião é um
veneno para o mundo
Carlos Graieb
O escritor anglo-indiano Salman Rushdie ganhou notoriedade em 1989, quando o regime muçulmano fundamentalista do Irã decretou contra ele uma fatwa, ou sentença de morte. Rushdie foi acusado de blasfemar contra o islamismo no romance Os Versos Satânicos, que acabava de publicar. A década seguinte foi de horror para o romancista, que viveu escondido, sob proteção da polícia britânica. Ao mesmo tempo, ele se tornou uma figura política, assumindo o papel de porta-voz em todo tipo de campanha pelas liberdades civis. E também conseguiu publicar obras de ficção que consolidaram sua reputação como um autor de grande inventividade. Em 1998, depois de muita pressão internacional, o Irã finalmente retirou a condenação contra ele. Apesar de ainda sofrer ameaças, Rushdie diz que hoje procura viver normalmente. Nesta semana, a convite da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, ele desembarca em sua primeira visita ao Brasil. Virá em companhia da namorada, Padma Lakshmi, atriz de ascendência indiana à qual ele dedicou seu mais recente romance, Fúria. Rushdie, de 55 anos, vive hoje em Nova York, de onde falou a VEJA.
Veja – Em 14 de fevereiro, a Guarda Revolucionária do Irã revalidou a sentença de morte contra o senhor, por causa do livro Os Versos Satânicos. Como isso o afeta?
Rushdie – Muito pouco. O governo iraniano retirou oficialmente a condenação contra mim em 1998, mas desde então sempre aparece alguém, uma figura menor do regime, para renovar as ameaças. Esses gestos não têm nenhuma repercussão séria. Eu consegui atravessar o túnel do medo e hoje levo uma vida normal. Tenho endereço certo, tomo o metrô, vou ao mercado, viajo de avião como qualquer pessoa. Já não ando com guarda-costas e não vou me intimidar.
Veja – Quais as cicatrizes que o senhor carrega?
Rushdie – Os nove anos de medo formaram um grande buraco em minha vida. Eles me privaram de uma infinidade de prazeres e alegrias. Eu tinha um filho pequeno, e não pude ser um bom pai para ele. Não podíamos fazer coisas simples como brincar num parque. Também perdi muito trabalho. A sentença de morte me custou um livro, que não foi escrito. Tive de gastar tempo demais em campanhas políticas contra a intolerância e não pude me dedicar ao trabalho literário. É muito bom já não precisar fazer isso.
Veja – Certa vez o senhor disse que o "caso Rushdie" ainda seria visto como um absurdo mesmo no mundo muçulmano. Esse dia está próximo?
Rushdie – Não sei se está próximo, mas quero crer que ele virá. Digo que é possível porque sou de origem muçulmana e lembro do ambiente em que cresci na Índia. A sociedade muçulmana de Bombaim era aberta, tolerante e nada tinha de paranóica. O radicalismo infeccioso, de origem religiosa, é um fato recente. Não sou especialista em Oriente Médio, mas tenho falado com muitos amigos que conhecem a região e eles também lamentam a maneira como a cultura do Islã mudou. Em cidades como Beirute e Damasco a transformação foi drástica. Eram lugares maravilhosos, cosmopolitas, cheios de vida artística. Mesmo Bagdá e Teerã eram grandes cidades. Tudo isso está na memória de pessoas da minha geração. É triste que essas cidades tenham regredido tanto em poucas décadas. Mas não há por que imaginar que essa mudança seja irreversível. Hoje, muitos muçulmanos lêem meus livros, entendem o que digo, acham absurdo o que aconteceu comigo e lamentam que essa história tenha posto sua cultura, desnecessariamente, sob luz desfavorável.
Veja – Por que o senhor afirmou num artigo recente que "a religião é um veneno em nosso sangue"?
Rushdie – O hábito de invocar a autoridade divina para legitimar preconceitos, perseguições e atrocidades é muito antigo, mas ressurgiu com força nos últimos tempos. A meu ver, é o problema central do mundo contemporâneo – e não está de maneira nenhuma restrito ao universo islâmico. O artigo a que você se refere, por exemplo, trata da crueldade da maioria hindu contra os muçulmanos na região indiana do Punjab. Mesmo num país democrático como os Estados Unidos, a religião voltou a interferir na vida pública, e esse é um fato que eu, que pertenço a uma geração de mentalidade extremamente dessacralizada, só posso lamentar. Nos anos 60, quem usava linguagem religiosa em público, num contexto político, era olhado com estranheza. A religião havia se retirado para o campo privado. Nos últimos tempos, contudo, o pêndulo oscilou para o outro lado.
Veja – Existe algum espaço para a religião na esfera política?
Rushdie – Não creio que deva existir. Estaremos muito melhor com os princípios de separação entre Estado e Igreja estabelecidos pela Revolução Francesa. Se as pessoas querem acreditar em Deus, se derivam prazer, conforto ou apoio moral dessa crença, não sou eu quem vai criticá-las. Mas as coisas tendem a se complicar quando a religião se confunde com o poder e interfere nos processos de decisão política. Pois a linguagem da religião é uma linguagem de absolutos que, mais cedo ou mais tarde, levam à estigmatização de um grupo. Como o grupo dos ateus, por exemplo. Na última eleição presidencial americana, um grande jornal realizou uma pesquisa perguntando em quais candidatos das chamadas minorias os eleitores aceitariam votar. As pessoas, em geral, disseram que não se oporiam a candidatos negros, a mulheres ou a homossexuais. Quando perguntaram se votariam num ateu, contudo, a situação mudou: mais de 50% disseram que não. Você é inelegível se duvidar da existência de Deus.
Veja – O senhor já escreveu que blasfêmias são importantes, pois é graças a elas que o mundo avança.
Rushdie – É a mais pura verdade se você considerar que Sócrates, o próprio Jesus e Galileu foram considerados blasfemos. No Iluminismo, blasfemar tornou-se uma tática deliberada dos filósofos e escritores. Voltaire, Rousseau e Diderot acreditavam que o grande inimigo da liberdade intelectual não era o Estado, mas a Igreja. Blasfemar com alegria era seu meio de dizer que não aceitavam mais os limites que a religião impunha ao pensamento. Devemos a eles muito de nosso conceito de liberdade de expressão. Se Deus existe, creio que ele não se importa nem um pouco com as pessoas que não acreditam nele. Bem menos, em todo caso, do que aqueles que se arrogam o direito de falar em seu nome e que usam palavras como "blasfêmia" e "heresia" para lutar contra todo tipo de novidade ou desejo de mudança.
Veja – O senhor foi contra ou a favor da guerra no Iraque?
Rushdie – Tive sentimentos ambivalentes. Fui a favor da guerra por acreditar que a derrubada de um tirano como Saddam Hussein era um objetivo desejável. Isso me causou problemas com alguns amigos de esquerda. Mas eu acho que esses amigos se enredaram em posições insustentáveis nos últimos anos. Em nome do "objetivo maior" de criticar os Estados Unidos e sua política de poder, eles têm chegado ao ponto de defender o Talibã ou Saddam. Quando não defendem, fazem vistas grossas às suas barbaridades. Ora, a denúncia da tirania sempre foi um tema importante do pensamento de esquerda. É inadmissível que um homem que brutalizou seu povo por quase três décadas se transforme em santo apenas porque são os americanos que guerreiam para depô-lo. O que me deixou insatisfeito foi a pouca discussão do rumo a ser tomado no pós-guerra. Como reconstruir a sociedade iraquiana, como ajudá-la a compor um governo, quanto tempo manter os soldados americanos no país? Nada disso foi discutido abertamente antes da guerra, e vemos as conseqüências. Há o perigo do separatismo curdo, o perigo de o fundamentalismo xiita subir ao poder, toda uma gama de problemas difíceis. Tudo no Iraque é precário e perigoso.
Veja – O senhor saiu da Inglaterra para morar nos Estados Unidos. Foi uma boa troca?
Rushdie – Qualquer um que chegue aos Estados Unidos e seja originário de um país do Terceiro Mundo, como eu, terá uma vivência dupla do país. É impossível não se maravilhar com a energia dos americanos, e morar em Nova York é extremamente prazeroso. Por outro lado, trazemos conosco o conhecimento – e às vezes a memória – de que os Estados Unidos são uma superpotência nem sempre benévola. Ao descrever o país em Fúria, tentei fazer jus a essas ambigüidades. Concentrei no protagonista do romance, o professor Solanka, todas as críticas aos Estados Unidos. Ele é muito rabugento em relação ao país – muito mais que eu, na verdade. Mas, ao redor de Solanka, coloquei as coisas boas da vida americana.
Veja – Para que servem os romances?
Rushdie – Eu acho que o valor do romance está em sua flexibilidade infinita, que o torna um instrumento único para espelhar o mundo e registrar a realidade. Olhe em retrospecto e você perceberá que os grandes romances o informam mais profundamente sobre um determinado período histórico do que qualquer outro tipo de documento. Até mesmo os historiadores reconhecem isso. Outra coisa importante sobre os romances é que eles manifestam visões únicas e pessoais do mundo. Poucas formas de arte são tão individuais, tão pouco dependentes da colaboração externa. Acho essa característica incrivelmente valiosa. Uma biblioteca de romances é um repositório de vozes individuais que sobrevivem no tempo – quanto mais vozes desse tipo puderem ser ouvidas, melhor para a sociedade. Finalmente, romances são importantes porque, se não existissem, eu não teria um emprego e morreria de fome.
Veja – O Chão que Ela Pisa, seu penúltimo romance, tem como protagonistas ídolos do rock. Por que a música pop é um assunto tão importante no romance contemporâneo inglês e americano?
Rushdie – Em primeiro lugar, porque o romance não é uma forma de arte elitista. Para um autor de romances, a distinção entre alta cultura e baixa cultura não é apenas desnecessária, ela é prejudicial. Você precisa estar aberto a tudo, criar personagens que pensem como as pessoas pensam, que se interessem por aquilo que interessa às pessoas. Se só puser referências da alta cultura num romance, você escreverá para poucos, a partir de uma torre de marfim. Quanto à música pop em particular, tenho afinidade natural com esse universo. Ela explodiu enquanto eu crescia, e acho que foi o primeiro fenômeno global de nossa época, a primeira coisa que se espalhou pelo mundo tocando igualmente chineses, europeus ou americanos. E lembre-se de que naquele tempo a mídia não era o que é hoje. No país de minha infância, as rádios eram todas estatais e não tocavam música do Ocidente. Mesmo assim, nós conhecíamos as bandas de rock mais importantes. Em O Chão que Ela Pisa, queria aproximar três mundos diferentes: Índia, Inglaterra e Estados Unidos. Logo descobri que a única coisa que tornaria isso possível era a música pop.
Veja – Bono Vox, do grupo U2, inspirou-se nesse livro para compor uma canção de mesmo nome. Há planos para novas colaborações?
Rushdie – Não temos plano nenhum. E a colaboração anterior ocorreu muito naturalmente. Sou amigo de muitos roqueiros. Eu me encontro com o pessoal do U2 há pelo menos dez anos. Quando fui condenado pelo regime iraniano, eles me deram muito apoio. Ao concluir O Chão que Ela Pisa, mandei uma cópia a Bono. Ele gostou do livro e, lá no meio, encontrou alguns versos que o inspiraram a compor uma canção. Foi tudo assim, por acaso, e por isso mais divertido.
Veja – O senhor é um polemista calejado. Qual a importância da polêmica para a cultura?
Rushdie – Gostaria de fazer uma distinção entre meu trabalho como romancista e como ensaísta. Nunca fiz um romance para provocar polêmica – muito menos Os Versos Satânicos. Não acho que esse seja um papel da ficção. Feita essa ressalva, sempre me interessei em participar das discussões públicas. O exemplo vem de minha infância na Índia. Naquela época, o grande poeta urdu Faiz Ahmed Faiz era amigo de minha família. O artista introspectivo e o homem público conviviam perfeitamente nele. Ele fez poesia maravilhosa, mas também escreveu com paixão sobre os problemas políticos do dia-a-dia. Mas é preciso saber dosar as coisas. No momento estou um pouco enjoado de política. Escrevi uma coluna para o New York Times por quatro anos e agora gostaria de ficar recolhido ao meu canto.
Veja – No começo de sua carreira, o senhor foi descrito como "escritor pós-colonial". Aceita esse rótulo?
Rushdie – O rótulo foi criado na academia para descrever um grupo de autores que chegaram à Inglaterra vindos de antigas colônias britânicas. Não é desprovido de sentido. Eu, por exemplo, nasci em um país que acabava de tornar-se independente e, nos meus primeiros escritos, esse dado foi importante. Hoje, no entanto, o legado colonial já está muito diluído. Mesmo nas antigas colônias o foco da discussão mudou: se você quiser chegar a algum lugar, não adianta mais discutir a relação da Índia com sua antiga metrópole. O problema não é lidar com um passado complicado, mas com um presente complicado. Os problemas que enfrentamos são de nossa própria conta, não podemos tratá-los eternamente como heranças. Aliás, se existe algo de que posso me orgulhar na Índia é o fato de que o debate político por lá se sofisticou e já não se ouve muito a antiga cantilena de que tudo é culpa dos americanos, dos russos ou de um outro povo estrangeiro qualquer. Essa retórica foi deixada de lado. Eu escrevi várias vezes que a única maneira de livrar-se de uma mentalidade colonial é assumir a responsabilidade pela sociedade em que você vive. Enquanto você continuar a fazer papel de oprimido, continuará preso a essa mentalidade.