"Lula já foi elevado, aos olhos
dos brasileiros, a líder planetário.
O resultado dessa exaltação nacional
será o de sempre: o mundo irá adiante,
deixando-nos para trás. Quanto a essa
história de que somos únicos, só será útil
para quem quiser arrumar uma boquinha
com algum político muito vagabundo"
O aspecto mais extraordinário da correspondência entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade é o índice onomástico. Onde está Hitler? Onde está Stalin? Onde está Mao? Como se explica que dois de nossos mais ilustres escritores tenham trocado cartas de 1924 a 1945 sem jamais mencionar esses nomes? Como se explica que eles não tenham dedicado uma única linha à Longa Marcha? Ou à Guerra Civil Espanhola? Ou à ocupação da Polônia? Ou ao cerco de Stalingrado? Ou ao dia D? Ou aos campos de concentração?
Os Andrades também não manifestam o menor interesse pelos poetas estrangeiros. Nas cartas, eles nunca citam, por exemplo, Eliot, Pound, Auden, Lorca ou Montale. Preferem citar Emílio Moura, Augusto Meyer e Sérgio Milliet, seus conterrâneos. Além disso, divulgam insistentemente suas próprias obras: "Aqui vai a Escrava. É oferta de amizade e admiração, acredite. Você pode distribuir os exemplares que vão juntos?". Ou: "Tenho poucas relações em São Paulo e se acaso existe aí algum amigo seu a quem o meu livro interesse, mande-me o nome e o endereço dele". Ou: "Gostaria que você me dissesse quais os jornais daí para os quais vale a pena mandar o volume (eu não acredito na crítica desses jornais, mas respeito a tradição)".
A desconfiança em relação ao resto do mundo se revela desde o começo da correspondência, quando Mário de Andrade tenta convencer Drummond de que lhe falta "o espírito da mocidade brasileira". Ele conclama: "Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Ser brasileiro é uma coisa única no mundo; é de uma originalidade delirante". Inicialmente, Drummond resiste: "Acho o Brasil infecto. Não tem atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns políticos muito vagabundos". Algum tempo depois, porém, Drummond muda de idéia e vai servir aqueles mesmos "políticos muito vagabundos", tornando-se assessor do ministro da Educação do governo Getúlio Vargas.
Enquanto isso, Mário de Andrade se engaja na Liga de Defesa Paulista, defendendo a separação de São Paulo "desses brasis africanos", cheios de gaúchos, "cabeças chatas" e o "vomitório araxento" dos mineiros. Nada disso impede que, mais tarde, graças à ajuda ministerial de Drummond, Mário de Andrade venha a trabalhar para o Estado Novo. Drummond, por sua vez, em 1944, percebendo a irremediável deterioração da ditadura getulista, debanda para o Partido Comunista e passa a compor poesia doutrinária.
Agora, com o governo do PT, estamos recauchutando a velha retórica andradiana do "abrasileiramento do Brasil". Existe um certo orgulho no ar. O orgulho de pertencer a uma cultura de "originalidade delirante". Lula, por suas especificidades, já foi elevado, aos olhos dos brasileiros, a líder planetário. O resultado dessa exaltação nacional será o mesmo de sempre: o mundo irá adiante, deixando-nos para trás, em Itabira. Quanto a essa história de que somos únicos, e de que podemos tratar os outros de igual para igual, só será útil para aqueles que quiserem arrumar uma boquinha com algum político muito vagabundo.