O GLOBO
Quando o Rio começar a sair literalmente do buraco das obras de renovação em que está mergulhado, dias melhores virão
Feliz Ano Novo, leitores. Afinal, vivemos nesta cidade que vai fazer 450 anos, que nos oferece na passagem do ano uma chuva de ouro e onde o pôr do sol é aplaudido de pé por uma multidão maravilhada. A cada ano cai também uma chuva torrencial, assassina e, em pleno alumbramento no Arpoador, alguém pode ser apanhado em um arrastão de meninos assaltantes. Tudo isso, a chuva de ouro e a chuva assassina acontecem aqui. O pôr do sol no Dois Irmãos e os meninos selvagens. Luminosa, terna, corpo quente, essa cidade é a senhora dos sentidos. Violenta, é também a senhora da dor. Decidi nestes primeiros dias do ano acreditar na felicidade carioca que "é como a gota de orvalho numa pétala de flor".
Há 50 anos o Rio comemorava seu quarto centenário. Na plateia lotada do Teatro Municipal, homens de smoking e mulheres de vestido longo assistiam ao "Martírio de São Sebastião", de D'Annunzio e Debussy. Geneviève Page, uma linda atriz francesa, vestindo apenas uma malha sobre o corpo nu, encarnava nosso santo padroeiro.
Suspensos à sua voz encantatória, esperávamos o momento culminante em que o santo é flechado, senão quando entra pelas janelas abertas de um teatro então sem ventilação o canto alegre do Bola Preta, vizinho ruidoso do Municipal. "Quem não chora, não mama" entoava o cordão que, à sua maneira, comemorava o quarto centenário da Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Gargalhadas na plateia. Assim é o Rio que eu nunca esqueci, o Rio que nos pertence a todos, diferentes e desiguais, absurdo e sedutor patrimônio dos cariocas, uma cidade rebelde e inconformada que nos momentos de desespero compõe suas melhores canções.
O ano que começa será festivo. Quatrocentos e cinquenta anos é data que se comemora como convém à índole desta cidade cosmopolita que, a cada réveillon, reúne no seu mais belo salão de festas — suas areias, seu mar — milhões de brasileiros e turistas para saudar o Novo Ano. Plural, abre-se ao mundo e às línguas que não fala, mas improvisa, acolhe a diversidade das crenças e ritos.
O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, criou uma rede global de cidades selecionadas para ser laboratório de estilos de vida sustentáveis. Lá está o Rio entre as escolhidas. Uma aposta inteligente em quem já deu provas sucessivas de energia criativa. Quando o Rio começar a sair literalmente do buraco das obras de renovação em que está mergulhado, quando os tapumes caírem, dias melhores virão.
O Rio é uma cidade que tem amanhã, o que é preciso lembrar quando bater o desespero no trânsito ou uma tragédia a mais abalar a confiança no futuro. Não é um acaso que seja aqui que um Museu do Amanhã avança sobre o mar, confundindo e desmentindo quem associa museu à guarda do passado. Neste caso, trata-se da guarda do futuro, o que é concepção originalíssima que coloca o Rio na ponta da reflexão sobre o mundo em que vamos viver. O curador do museu, o físico Luiz Alberto Oliveira, um dos melhores cérebros do país, explica que, se o amanhã guarda muitos futuros possíveis, para o bem ou para o mal seremos as escolhas que fizermos frente a esses possíveis. Já sabemos que vamos na direção de mudanças climáticas extremas que pedem reflexão sobre a matriz energética. De alteração da biodiversidade que ameaça com a extinção de espécies. De vidas mais longas que estão mudando os critérios do que é envelhecer.
Cidades estressadas e criativas serão mais integradas e enfrentarão os problemas do consumo e da desigualdade. A multiplicação de tecnologias vai impactar cada vez mais a medicina, a comunicação, a educação e a agricultura. Desponta a iminente possibilidade de vida artificial com seus riscos e desafios éticos.
O museu é uma promessa educativa, que propiciará o aprendizado da escolha refletida e informada e a consciência de que o amanhã já está em nós, hoje.
Na passagem de um ano vem à tona o desejo de descobrir o que o destino esconde para o ano que entra. Ora, o destino não está escrito em lugar nenhum, ele se escreve na medida em que se cumpre, foi o que me ensinou o Prêmio Nobel de Biologia Jacques Monod. É o resultado próximo ou longínquo de nossas escolhas, da ação humana.
As cidades — e o Rio é assim — são uma miríade de escolhas de vida, de formas de convivência que vão pouco a pouco desenhando um tecido urbano, um território e uma cultura. Assim também são os amanhãs que escolhemos todo dia e que desenham nossas vidas.
Desejo aos cariocas, nesse aniversário, que com 450 anos tomem juízo e façam sempre melhores e refletidas escolhas.
Rosiska Darcy de Oliveira
é escritora