Por Acaso, de Ali Smith, tem toques
experimentais, algum romantismo
e grandes personagens
Jerônimo Teixeira
É daqueles casos em que a obviedade é tão flagrante que se torna engenhosa: Por Acaso (tradução de Beth Vieira; Companhia das Letras; 336 páginas; 49 reais), romance da escocesa Ali Smith, é dividido em três partes cujos títulos são "O começo", "O meio" e "O fim". No começo, uma estranha que se apresenta com o nome de Amber bate à porta da família Smart – Michael, um professor universitário, Eve, uma escritora, e os filhos que ela teve de um casamento anterior, Astrid e Magnus, todos em férias em um modorrento vilarejo inglês. No meio, ela seduz cada um dos membros da família. E no fim, vai embora – com algum barulho. A simplicidade do esquema é enganosa. "Eu gosto do fato de que, depois da palavra 'fim', o livro ainda tem umas 100 páginas", disse Ali – uma das autoras esperadas na Festa Literária Internacional de Parati, em agosto – a VEJA. Por Acaso tem alguns daqueles maneirismos costumeiramente chamados de "experimentais", como um capítulo inteiro escrito em versos – é o delírio apaixonado de um professor de literatura. Mas Ali se vale desses recursos com destreza e leveza (ah, sim: ela gosta de trocadilhos).
Aos 44 anos, Ali é considerada um dos melhores nomes da nova literatura britânica, com indicações para os mais badalados prêmios do Reino Unido – seu primeiro romance, Hotel World, foi indicado ao Orange e ao Booker, e Por Acaso arrebatou o Whitbread. O romance seduz principalmente pelo elenco de personagens, cada um deles marcado por um estilo narrativo distinto. Com 12 anos, Astrid é uma menina sensível mas um tanto pedante, inteligente mas dispersiva. Seu irmão Magnus vive atormentado por uma brincadeira de mau gosto de que participou na escola – uma típica grosseria adolescente que por azar levou uma colega sua ao suicídio. Eve é uma escritora que encontrou relativo sucesso em uma fórmula meio água-com-açúcar: escreve biografias de pessoas que tiveram mortes trágicas na II Guerra Mundial, alterando os finais para que elas não morram. Michael não passa um semestre sem levar uma aluna para a cama. Cafajeste um tanto convencional, ele é o personagem mais fraco do romance – mas permite uma crônica curiosa da crítica literária acadêmica: ele observa, por exemplo, que autores feministas ou "multiculturais" como Alice Walker vêm perdendo prestígio para escritores como Philip Roth (o que, diga-se de passagem, é uma notícia auspiciosa). E, claro, há a misteriosa Amber, que nunca mente e ainda assim engana a todo mundo. "Ela é uma força anárquica", diz Ali. Há uma nota romântica no modo como essa figura rústica muda a vida de todos os demais personagens. Mas, como Amber está na verdade armando um golpe contra a família Smart, o romantismo ganha certa ambigüidade. Começo, meio e fim talvez não sejam o que parecem.
O império marrom
"Por dentro, a igreja decepcionava. Era monótona, utilitária e moderna. Não acrescentava nada a respeito das possibilidades de algo depois desta vida, a não ser mais da mesma cor marrom. Marrom era a verdadeira cor do império, do Grã-Britanismo – a cor sépia que se entranhou feito uma mancha de umidade na era vitoriana. (...) No caminho até lá, tinham passado por casas e lojas agindo como figurantes num daqueles dramas do pós-guerra com temas operários, casas marrons feito cães decrépitos. Era o fim de uma era. Era o fim marrom de uma era."
Trecho de Por Acaso