Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, junho 22, 2006

Merval Pereira - Futebol e política

O Globo
22/6/2006

Nunca houve um presidente que misturasse tanto futebol com política
quanto o atual, até mais que o general Médici, cuja imagem com o
radinho de pilha colado ao ouvido já se transformou em símbolo
daquele período da ditadura militar, justamente o mais violento da
repressão política no país. O gosto pelo futebol humanizava o
ditador, e já naquela época era utilizado pelas incipientes técnicas
de marketing para suavizar a face cruel das torturas nos porões da
ditadura.

Dois livros lançados recentemente tratam do futebol na cultura
brasileira, um deles, “Vida que segue”, da Nova Fronteira, reúne
crônicas do João Saldanha e depoimentos exclusivos nos quais João Sem
Medo diz, com todas as letras, que foi demitido da seleção em 1970
por ser membro do Partido Comunista, e não ficaria bem o Brasil ser
campeão comandado por um comunista em plena ditadura militar.

Não há nada que corrobore essa versão, e ter cismado que Pelé estava
ficando cego certamente contribuiu para minar a credibilidade de
Saldanha como técnico. Mas o fato é que a história registra que ele
ficou sem lugar na seleção depois de resistir à pressão do próprio
Médici, que queria escalar Dario no ataque. “Eu não escalo o
Ministério, e ele não escala a seleção”, teria respondido Saldanha,
bem mais polido do que o Ronaldo Fenômeno, que também deu o troco no
atual presidente, insinuando que ele bebe muito, afirmação que virou
mote do candidato a vice-presidente na chapa tucana.

Um presidente que se meteu a tirar proveito político da seleção
corria o risco de um desastre como esse, mas até que Lula se saiu bem
do imbróglio, não apenas porque Ronaldo está mesmo gordo. Zagallo, o
mesmo que substituiu Saldanha em 1970 mais por ser confiável do que
pela competência técnica, deu uma de garoto propaganda do governo,
lembrando que o Brasil estrearia no dia 13, seu número de sorte e
número também do PT, partido de Lula.

O presidente Lula foi apenas infeliz ao perguntar a Parreira, sem que
Ronaldo estivesse presente, se ele estava mesmo gordo. Não quis
acusar Ronaldo e provavelmente, como disse na carta que enviou ao
jogador, teve a intenção de pôr um ponto final na discussão. Mas, ao
pressionar para fazer a videoconferência, e não permitir que os
jogadores fizessem perguntas, o Palácio do Planalto quis
evidentemente tirar proveito eleitoral para a campanha de reeleição
de Lula, o que já está mais que provado que não tem influência
política, se é que algum dia teve.

Em 1970, muitos da esquerda torciam contra a seleção para não dar
força ao governo Médici, mas esta é uma tarefa política difícil de
ser executada. Em 1994, o Brasil foi campeão e Itamar Franco elegeu
Fernando Henrique seu sucessor, muito mais devido ao Plano Real do
que à Taça do Mundo. Em 1998, o Brasil perdeu na final para a França
e Fernando Henrique se reelegeu. E em 2002, o Brasil foi campeão e
Fernando Henrique não conseguiu eleger seu sucessor.

É verdade que Lula sempre gostou de futebol e, sobretudo, de
metáforas futebolísticas. Lula joga suas peladas e é fruto dessa
democratização que só o futebol promove entre os esportes, como
analisa com muita propriedade o antropólogo Roberto DaMatta em seu
livro “A bola corre mais que os homens”, recém-lançado pela Rocco. O
livro contém crônicas escritas durante as Copas de 1994 e 1998 e três
ensaios sobre o significado social do futebol no Brasil e as lições
de igualdade que sua prática proporciona.

DaMatta vê o futebol como “formidável código de integração social”.
Ele ressalta que é muito raro no cotidiano do brasileiro, “um
universo onde as instituições públicas estão há décadas
desmoralizadas por práticas sociais clientelistas, ideológicas e
personalistas desconcertantes”, uma experiência com uma organização
coletiva “com a qual podemos nos identificar abertamente e que opera
integrada para nosso deleite e benefício”.

Uma outra dimensão do futebol, e que se agiganta nos dias de Copa do
Mundo em que vivemos, é sua capacidade “de proporcionar ao povo,
sobretudo ao povo pobre, enganado, mal-servido pelos poderes públicos
-— povo destituído de bens e, pior que isso, de visibilidade social e
cívica — a experiência da vitória e do êxito”.

Roberto DaMatta diz que é no futebol que a massa se sente responsável
“por vitórias arrebatadoras”. Vitórias que desconhece “no campo da
educação, da saúde, e, acima de tudo, da política”, ressalta o
antropólogo. O futebol, com suas regras próprias compreendidas por
todos, e que valem para todos, “reafirma simbolicamente que o melhor,
o mais capaz, e o que tem mais mérito pode efetivamente vencer”. O
que, para DaMatta, é “uma potente lição de democracia”. Essa
possibilidade de alternância entre vencidos e vencedores “é a mais
bela lição de igualdade que um povo massacrado pela injustiça pode
recebe”.

É bem verdade que, de tempos em tempos, tanto no Brasil quanto em
várias partes do mundo surgem escândalos com máfias das apostas de
loteria manipulando resultados de jogos, o que põe em risco
afirmações como “no futebol, portanto, não há golpes”, ou decisões
erradas dos juízes que põem em dúvida a tese, também defendida por
DaMatta, de que “as leis têm que ser obedecidas por todos, são
universais, transparentes”.

Quando começava minha carreira jornalística, lá pelos anos 1970, fui
chamado pelo diretor de redação do GLOBO, Evandro Carlos de Andrade,
para trabalhar como repórter de esportes. E Evandro, que já fora um
deles, disse que acompanhar os bastidores do futebol e as
politicagens dos cartolas seria muito útil mais tarde, quando fosse
tratar da política nacional. Com os mensaleiros absolvidos de um lado
e dirigentes esportivos como Eurico Miranda — que não por acaso foi
deputado federal — de outro, lamento que seja até hoje um conselho
atual.

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