O Globo - 02/09/2010
Já se sabe quem perdeu a eleição de 2010: a Receita Federal. O órgão sai dessa campanha com uma queda violenta de credibilidade. Pelo que fez, pelo que deixou de fazer, pelo que deixou que fizessem em suas repartições, a Receita que tinha o respeito dos brasileiros — e o temor dos sonegadores — hoje está reduzida a um braço de um partido político
A violação do sigilo fiscal da filha do candidato José Serra é daqueles fatos que acabam com quaisquer dúvidas que por acaso ainda persistiam. A resposta dada pela Receita de que interposta pessoa levou procuração pedindo para quebrar o sigilo da contribuinte foi espantosamente grosseira.
Quem pare um minuto para pensar na explicação do órgão sabe que não faz sentido algum.
Quer dizer então que uma pessoa com documento falsificado pode pedir informações protegidas? As primeiras apurações derrubaram a versão oficial.
Na campanha governista a avaliação é que este assunto não terá impacto eleitoral porque apenas alguns milhões de brasileiros declaram imposto de renda no país.
Isso equivale a dizer que crimes que atingem poucos eleitores podem ser cometidos, sem problema, desde que não ponham em risco a eleição da candidata do governo.
A atual direção da Receita tem cometido erros sequenciais. Não presta as informações necessárias, protela deliberadamente o esclarecimento do assunto, dá explicações inaceitáveis para os fatos dos quais não consegue escapar. Num dos seus piores momentos, a Receita Federal quis garantir que não era um evento com motivações políticas, explicando que era um caso de corrupção. Se há um balcão de compra e venda de informações sigilosas num órgão que tem a prerrogativa de ser a guardiã desse sigilo, é gravíssimo. Isso não atenua o descalabro.
No caso de ser uma espionagem política, e com fins bem óbvios, é preciso que se saiba tudo antes do fim do pleito. É urgente que se faça uma investigação que acabe com as dúvidas e não as aumente.
Há um claro exagero do PSDB em pedir a cassação do registro da candidata que está em tão confortável vantagem nas intenções de voto. Por outro lado, Dilma Rousseff, seu entorno, e o governo têm feito declarações espantosamente amenas ou equivocadas diante da gravidade do caso. Reiteradamente eles têm tentado subestimar o que está acontecendo dizendo que é briga de campanha. Dilma disse esta semana que o PSDB “tem trajetória de vazamentos e grampos expressiva.” Falou para justificar os fatos que estão sendo divulgados. Referiuse ao caso das fitas gravadas no BNDES. Não há qualquer comparação possível.
As fitas do BNDES tentavam comprometer pessoas do próprio governo — e não políticos de um partido adversário em campanha.
Elas foram resultado de gravação ilegal, as pessoas foram identificadas, e foram condenadas.
A candidata precisa mostrar seriedade no trato dessa questão — ainda que tarde.
Esse tipo de resposta criada por assessor pode dar a impressão de esperteza, mas o que passa é a convicção de que está se aceitando como banal e corriqueiro o que é inaceitável, a quebra de um princípio constitucional.
O Estado não pode ser usado pelo partido que está temporariamente no poder para espionar adversários políticos. Foi isso que derrubou o então presidente Richard Nixon no caso Watergate.
É preciso restaurar a noção da dimensão do crime de usar a máquina para espionar e usar informações, entregues ao Estado, como parte da guerra eleitoral. A luta tem que ser travada apenas em torno de ideias, projetos, estilos de governo.
O secretário Otacílio Cartaxo disse que a Receita foi “pega de surpresa” e que “está traumatizada”. Causa com isso novos danos à imagem do órgão, que sempre teve reputação de competência.
Quebra-se o sigilo fiscal em bases seriais e o fato nem é notado, montase um balcão de compra e venda e isso só vem a público pela imprensa.
Para evitar o trauma, a Receita precisa rapidamente trabalhar para mitigar o dano à sua imagem. Isso só se faz se houver uma apuração rigorosa e ágil. A demora nesse caso deixará a impressão de acobertamento. E se for isso a desconfiança se espalhará por toda a instituição.
No governo Lula, o aparelhamento de alguns órgãos ficou acima do tolerável. Como o que acontece com o Ipea, por exemplo. O órgão não foi usado nem mesmo pelos militares durante a ditadura, e, ao contrário, tornouse uma espécie de centro de pensamento crítico que produziu análises valiosas para o país. Agora virou estação repetidora do partido. A qualidade dos estudos comandados pela presidência do órgão é sofrível. A imagem do instituto só não está inteiramente demolida porque alguns resistentes, ainda que marginalizados, continuam mantendo a capacidade de produção de informação de qualidade no órgão. Mas hoje, o Ipea, com seus exóticos escritórios em Havana e Caracas, é uma sombra do que foi nos anos em que sua inteligência foi tão útil ao país.
O primeiro sinal de que a Receita Federal não era mais um território protegido do uso indevido aconteceu na queda da ex-secretária Lina Vieira, derrubada por ter dado informações que constrangeram a hoje candidata Dilma Rousseff. O caso nunca foi suficientemente esclarecido.
Até o fato de não haver ainda a foto dela na parede dos ex-secretários da Receita é um sinal estranho.
Lembra os regimes autoritários que mudam a história pregressa e apagam personagens que incomodam.
Construir a reputação de seriedade, competência e neutralidade da Receita Federal custou muito trabalho.
Esse patrimônio está sendo destruído nessa eleição.
É ela, a Receita, a perdedora.
Mais do que as vítimas da espionagem.
Entrevista:O Estado inteligente
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