O Estado de S. Paulo - 20/01/2010
A polêmica provocada pelo decreto criador do 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH) mostra que ainda não acabou a cesura que remonta às origens do Partido dos Trabalhadores (PT) sobre a natureza da democracia pretendida por seus militantes. Será a clássica democracia burguesa de controles e contrapesos exigidos pelos Pais Fundadores da Revolução Americana de 1783, com a adoção de três Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) autônomos e soberanos, fórmula do francês Montesquieu? Ou a direta, a ser exercida por consultas permanentes à cidadania por plebiscitos e referendos e por conselhos compostos por delegados (neste debate se tem lembrado que soviet significa conselho em russo)? A diferença entre as duas é que a primeira é obviamente imperfeita e a segunda, impossível de ser praticada, tal como define seu significado semântico, conforme disse o cientista político Leôncio Martins Rodrigues em entrevista a este jornal, domingo.
A dúvida traz outra à baila: será a eleição dos mandatários do Executivo e dos representantes do cidadão no Legislativo o momento crucial do exercício do poder pelo povo, como determina a Constituição (no caso do Brasil, mais do que isso, pois nossa democracia é exclusivamente eleitoral), ou apenas um pretexto para galgar o poder e de lá submeter a Nação às próprias convicções? A resposta a essa pergunta é fundamental neste momento em que o País se prepara para viver a sexta escolha direta do chefe do Poder Executivo desde o fim da vigência do acordo negociado na cúpula para a extinção do regime autoritário e sua substituição por um Estado Democrático de Direito, nos moldes definidos na velha democracia burguesa. Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto impulsionado por duas votações que manifestaram a inequívoca vontade da maioria do eleitorado de vê-lo no poder. Seu talento inato para se comunicar com o cidadão comum o tornou o mais popular governante do Brasil desde Tomé de Souza e com parcas chances de vir a ser superado nisso, a julgar pelos quadros atuantes na política e na gestão pública.
Lula fez-se conhecer como dirigente sindical desatrelado do peleguismo no controle da organização dos trabalhadores pelo PTB de Getúlio Vargas e do anarcocomunismo que dirigia o sindicalismo antes das greves do ABC, nos anos 70. Incorporou-se à tradição conciliadora que moldou o estilo de importantes homens públicos brasileiros: dom Pedro II, Bernardo de Vasconcelos, Getúlio Vargas e Tancredo Neves. A primeira conciliação, mercê de seu talento para o ecumenismo, deu-se já na fundação do PT. Antes, dizia-se que a esquerda brasileira só se unia na cadeia. Sob sua égide se reuniram egressos de grupos guerrilheiros de posições inconciliáveis com líderes sindicais apartidários (caso dele próprio) e a esquerda católica, dividida entre políticos "progressistas" da democracia cristã e militantes da Teologia da Libertação, em comunidades eclesiais de base e pastorais.
O tão decantado carisma de Lula e sua habilidade de milagroso domador dos gatos desse incrível saco foram insuficientes para levá-lo ao poder e à glória de agora nas três tentativas que fez antes de chegar à Presidência - a primeira contra Collor e outras duas contra Fernando Henrique Cardoso. O milagre da ascensão ao topo do poder só foi possível com a segunda conciliação, fruto de seu oportunismo e iniciada com o abandono do programa socialista, que unia apenas os três grupos originais do PT, e a adoção de um discurso de austeridade fiscal e combate à inflação da era pós-Palocci. O desgaste dos laços que atavam o saco de gatos, amarrado pelos pretensos social-democratas sob Fernando Henrique, permitiu a Lulinha Paz e Amor promover a segunda e ainda mais bem-sucedida conciliação com a escória da velha política brasileira, que os petistas de antanho chamavam de "isso que está aí". A reverência que o atual presidente fez ao ex Sarney, ao evitar a degola dele na presidência do Senado, teve natureza simbólica, pois a certeza do clã maranhense de que o candidato tucano à sucessão de Fernando Henrique, José Serra, tivera papel decisivo na perseguição à herdeira do chefão, Roseana, no episódio da descoberta de dinheiro vivo em seu comitê eleitoral, foi determinante para a desistência da candidatura por ela. E a senha oportuna para a velha plutocracia mudar de palanque, como agora para beijar a mão da guerrilheira aposentada Dilma Rousseff.
É claro que a fisiologia descarada só se curva hoje à Utopia derrotada na guerra suja, mas vitoriosa no confronto ideológico, seja com a direita que desabou com a ditadura, seja com os liberais da pusilânime aliança PSDB-DEM, porque não quer largar o osso do poder. Nisso, aliás, imita o mais poderoso, Lula, que quer eleger a chefe da Casa Civil na convicção (talvez ilusória) de que será conviva de honra nos banquetes da fortuna e da glória depois da posse de quem lhe suceder.
Há, contudo, entre o criador e a criatura mais diferenças do que pode supor sua débil filosofia. Uma delas é que, por menos que saiba disso, o matreiro Lula ajudou a derrubar o autoritarismo de cima do palanque do Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo, tornando-se, com todas as honras, herói desta democracia que está aí, por mais imperfeita que ela possa ser. E a guerrilheira desalmada e desarmada participou de um processo de enfrentamento militar que só prolongou a longa noite dos porões. E, depois, penetrou no centro das decisões no vácuo do chefe. Isso induz democratas assustados a imaginar que o 3º PNDH seja um projeto de vingança a ser realizado em seu eventual, embora provável, futuro governo. Enquanto ela não esclarecer isso com todas as letras, este fantasma que reabre feridas já cicatrizadas faz tempo continuará a nos espreitar
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2010
(1998)
-
▼
janeiro
(183)
- CELSO MING - Eles vão mal das pernas
- CLÓVIS ROSSI Porto Alegre em Davos
- DANUZA LEÃO O preço a pagar
- Suely Caldas:Mistério na Petrobrás
- Fagulhas autoritárias Gaudêncio Torquato
- Sergio Fausto - Liderança à altura
- Maria Helena Rubinato :Não se pode bater o sino e ...
- Tudo azul na mídia oficial Miro Teixeira
- Merval Pereira: Um processo virtuoso
- Ferreira Gullar:Casos e acasos
- Rubens Ricupero:: Todo ano é Haiti
- VEJA Edição 2150. 3 de fevereiro de 2010
- Celso Ming - Fatiar os bancos
- Luiz Garcia - Aposentados em Brasília
- Merval Pereira - Anticlímax
- Depois da queda Luiz Felipe Lampreia
- Truques fiscais - Regina Alvarez
- Merval Pereira Como controlar?
- Celso Ming - Participação nos lucros
- A China dominará o mundo?
- Exageros no Haiti Editorial de O Globo
- MERVAL PEREIRA As culpas de Davos
- Míriam Leitão Chavez sempre sobreviveu, mas desta ...
- Arrogância e falta de medida Rubens Ricupero
- Mais Europa, não menos - Celso Ming
- Lula e Davos Merval Pereira
- O Brasil e a Conferência de Copenhague Rubens Barbosa
- Haiti: na capital devastada, as cenas macabras que...
- Nobel da paz critica Lula (Giulio Sanmartini)
- A salvo da lei- Ricardo Noblat
- O mundo atrapalhado - Carlos Alberto Sardenberg
- Lula - imagem estilhaçada- Carlos Alberto Di Franco
- A anistia de Lula Daniel Piza
- Uma mulher e tanto José Serra
- Chavismo em crise
- A nova classe Merval Pereira
- Cavalo de Troia Celso Ming
- Comitê central Dora Kramer
- FERREIRA GULLAR Uns mentem, outros deliram
- DANUZA LEÃO Ser escrava
- VINICIUS TORRES FREIRE A política menor do plano O...
- Guerrilha e redemocratização IVES GANDRA DA SILVA ...
- A falta de apelo e a apelação Editorial de O ESTAD...
- Dora Kramer Parceria de adversários
- Atentado ao futuro
- Merval Pereira Máquina politizada
- Carta ao Leitor
- Entrevista Peter Ward
- Claudio de Moura Castro
- Radar Lauro Jardim
- O Google enfrenta o governo chinês
- Manuscrito das memórias de Newton está na internet
- Novas descobertas sobre um povo antigo do Acre
- O novo número 1 do tabuleiro
- Maílson da Nóbrega
- O eleitor escolheu a direita
- O ex-senador John Edwards reconhece filha ilegítima
- Diogo Mainardi
- Invictus, uma história de Nelson Mandela
- Zumbilândia, uma comédia com mortos-vivos
- A Senhora do Jogo, de Sidney Sheldon, supostamente
- VEJA Recomenda e Os mais vendidos
- J. R. Guzzo
- Reinaldo Azevedo:O FALSÍSSIMO EM VERISSIMO. OU: A ...
- Merval Pereira Troca de chumbo
- Dora Kramer Desmonte exemplar
- MERVAL PEREIRA - Parcerias estratégicas
- O rombo vai aumentar - Celso Ming
- Comparação incomparável - Dora Kramer
- O Bonaparte ausente : Demétrio Magnoli
- O assalto ao poder, fase 2 : Rolf Kuntz*
- Desaquecimento chinês está próximo: Chris Oliver*
- 'Marolinha' foi vagalhão : Roberto Macedo
- CUT prepara greves em apoia à Dilma
- A DITADURA DE ESQUERDA CHEGANDO. VINGANÇA OU MALUQ...
- Merval Pereira -Forjando a união
- Dora Kramer - Banho de sol
- Celso Ming A população envelhece
- O fantasma da vingança espreita a eleição José Nê...
- O Chile e nós - Merval Pereira
- Míriam Leitão Desafios e riscos
- Heróis ou vilões? -/Rodrigo Constantino
- As novas bolhas Celso Ming
- Pernas curtas Dora Kramer
- Anistia é irreversível PAULO BROSSARD
- O Capoeirista-Mary Zaidan
- Um desumano Programa de Direitos Humanos PAULO RAB...
- Ricardo Noblat Serra vai bem, obrigado!
- Marco Antonio Rocha O plano para pôr a Ágora no poder
- Direitos humanos Denis Lerrer Rosenfield
- Direitos desumanos /Ives Granda Martins Filho
- A Venezuela e a maldição do petróleo Adriano Pires
- CELSO MING - "Quero o meu de volta"
- AUGUSTO NUNES:O Haiti não precisa de circo
- Amargo começo - Miriam Leitão
- Argentina: mandar todos embora, outra vez? JOAQUÍN...
- Demétrio Magnoli -Direitos humanos reciclavéis
- Dora Kramer Instituição questionada
- Merval Pereira:: O papel de cada um
- Surtos e sustos Gaudêncio Torquato
-
▼
janeiro
(183)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA