Entrevista:O Estado inteligente

domingo, junho 25, 2006

Miriam Leitão O país não se vê- Jornal O Globo

O Brasil é o país da dissonância cognitiva. Ele se vê de maneira
diferente do que é, em questões imediatas e nas mais profundas. Quem
quer protestar contra tudo prepara o voto nulo, mas o voto nulo é
Lula. As pesquisas sobre valores mostram que no Brasil há racismo sem
racistas e há destruição do meio ambiente com todos conscientes da
virtude da preservação. As empresas são todas responsáveis social e
ambientalmente e contra a corrupção.

O caso do voto nulo, no qual acreditam tantos descrentes, é um ótimo
exemplo imediato da diferença entre intenção e gesto. Se a intenção é
protestar “contra tudo isso que está aí”, velho bordão que o
presidente Lula gastou no passado, não há de ser com o voto nulo.
Matematicamente ele é um voto a favor de tudo isso que está aí.

Pela metodologia das eleições, ganha no primeiro turno uma eleição
para cargo executivo quem tem 50% mais um dos votos válidos. E o
cálculo do voto válido é feito descontando-se os nulos e brancos.
Quanto mais nulo e branco, mais fácil é para o candidato que está na
frente chegar ao percentual requerido e ir mais cedo para a festa da
vitória. Tem muita gente sem opção e essa é uma aflição verdadeira,
mas o voto nulo é o que é: um voto a favor do favorito.

Outro lado mais antigo da dissonância cognitiva é visto nas pesquisas
que investigam aceitação de boas práticas pela sociedade. A maioria
dos brasileiros é a favor da preservação do meio ambiente. Segundo
pesquisa do Iser, 62% dos entrevistados acham que a natureza é
sagrada e o homem não deve interferir nela e 98% consideram grave a
destruição das florestas.

Olhando só os números, qualquer um se convence de estar no país que
mais protege seu patrimônio ambiental. De todos os ecossistemas do
Brasil, o mais ameaçado é a Mata Atlântica. Há 14 anos está rolando
no Congresso um projeto para regular a proteção da Mata Atlântica que
é pela Constituição patrimônio nacional. Os nossos congressistas não
conseguiram tempo para aprová-lo. O que deveria ser feito? Uma
divulgação em massa dos nomes dos parlamentares que impedem a
aprovação do projeto para constrangê-los e, quem sabe, derrotá-los. A
Mata Atlântica, com seus magros 7% remanescentes, tem perdido muitas
batalhas, como a da Hidrelétrica de Barra Grande, sobre a qual já
falei aqui neste espaço. Relembrando: um consórcio formado por
Bradesco-Votorantim e Camargo Corrêa está para inaugurar uma
hidrelétrica que produzirá o equivalente a apenas uma única turbina
de Itaipu e, por causa dela, estão sendo afogados 4.000 hectares de
Mata Atlântica. O Eia-Rima com o qual uma outra empresa, a Engevix,
conseguiu a liberação da obra era fraudado e ninguém viu. O crime
começou no governo Fernando Henrique e foi consumado no governo Lula.
Quanto às empresas envolvidas na destruição da preciosidade, são
todas ambientalmente sustentáveis.

Falei dessa contradição semana passada no seminário do Instituto
Ethos. A boa notícia é que o encontro deste ano, em vez de ser uma
apresentação edulcorada dos programas sociais das empresas, teve
debate. O que se quer agora é dar um passo adiante na discussão e
separar filantropia de responsabilidade social empresarial. O
conceito precisa se alargar e ganhar consistência. Não pode ser um
rótulo que vai perdendo o sentido pelo abuso do uso.

No início, as empresas se diziam responsáveis porque apoiavam algum
bom projeto externo à empresa. Com um pedacinho do lucro, alugavam
uma placa. Era uma ação de marketing para ficar bem na foto. Vários
desses projetos são meritórios e salvaram vidas. São importantes.
Mas, pelo clima do debate no encontro deste ano, há uma pressão para
novos passos. A empresa digna do nome responsável tem que ver e rever
práticas criticamente durante todo o tempo. Tem que ser transparente,
ter conduta auditável, rever seu ambiente interno para não barrar o
avanço das mulheres, incluir os negros e aproveitar talentos de quem
tenha alguma deficiência. Empresa que tem reserva de mercado de 100%
dos cargos da diretoria para homens e brancos não pode estar falando
sério sobre diversidade. Na saída do debate, uma executiva me abordou
e disse que defende os negros, mas não conseguiu incluí-los na
empresa onde trabalha:

— Eles não estão preparados — disse-me.

Este é o verdadeiro Brasil. Aquele que finge não discriminar atrás de
frases como “eles não estão preparados”. Esperemos, portanto, mais
cem anos e então, algum dia, eles estarão preparados.

Já é conhecida a pesquisa que mostra que 84% dos brasileiros acham
que há racismo e só 4% admitem ser racistas. O Brasil é, assim,
dominado por forças extraterritoriais que nos impõem atitudes com as
quais não comungamos.

Pode ser um avanço o Pacto contra a Corrupção assinado na última
semana por 180 empresas sob o patrocínio de diversas ONGs. Se seus
organizadores ficarem vigilantes e seus signatários estiverem falando
sério, pode ser o começo de uma onda para combater a promiscuidade na
relação entre setor público e empresas. Mas os céticos devem reservar-
se o direito à dúvida e, ao fazer isso, estarão ajudando o Pacto.
Nenhum político corrupto é corrupto sozinho. Alguém paga a propina.
Empresas que encontram pedido de pedágio para fazer negócios com
setor público acabam cedendo. Às vezes, têm até uma atitude mais
ativa. Se os signatários do Pacto realmente recusarem as más
práticas, começarão a constranger quem está fora. Da mesma forma que
começa a acontecer no Pacto contra o trabalho escravo.

A boa notícia é que o debate avança agora sobre as contradições do
Brasil. Se o país tirar a máscara, poderá se ver. Bom momento para
começar a mudar.

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