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O GOVERNO repete nas negociações comerciais o mesmo erro que cometeu
com a Bolívia: concorda com as premissas do adversário, esperando
poder escapar à sua desastrosa conseqüência. Nas negociações
comerciais, aceita de forma tácita que tudo depende de barganha
igualitária: os ricos fariam concessões em agricultura em troca de
concessões em serviços e produtos industriais da parte de países como
o Brasil e a Índia.
É tão maciço o bombardeio pela imprensa e os líderes mundiais dessa
mensagem de aparência simples que até o próprio presidente a engoliu
em dois de seus programas de rádio. Com a aproximação de data
decisiva nas tratativas da OMC (Organização Mundial do Comércio) e da
reunião do G8 em São Petersburgo, é de temer algum irremediável
desatino do Brasil, inspirado pelo pecado original da atual
diplomacia presidencial: a busca imoderada de protagonismo e
glorificação pessoal. Não é preciso lembrar que, em véspera de
eleições, a loucura pode às vezes ter método.
O problema dessa premissa é sua irresgatável falsidade. A Rodada Doha
da OMC foi denominada de "Rodada do Desenvolvimento" porque seu
objetivo era o de "redress the imbalances and injustices" do sistema
mundial de comércio, isto é, "compensar, corrigir, reequilibrar" os
desequilíbrios e injustiças do sistema. Reconhecia-se que, ao excluir
a agricultura por mais de 50 anos, o sistema havia causado sério e
persistente prejuízo aos países pobres e eficientes em produção
agrícola. Chegara, portanto, o momento de compensá-los pelas perdas,
e não de exigir-lhes pagar preço adicional pela compensação devida.
O principal desequilíbrio e injustiça em agricultura não se situa nas
tarifas, mas nos subsídios à produção interna e às exportações.
Subsídios são distorções da concorrência, adulterações da competição,
análogas aos delitos em direito penal. Não tem cabimento exigir que
se recompense alguém para abrir mão de prática incorreta e desleal.
Da mesma forma, não tem sentido querer que paguemos para que os ricos
deixem de gastar US$ 280 bilhões anuais para falsear a concorrência
agrícola. Aliás, os subsídios industriais estão proibidos há décadas,
e o Brasil nada recebeu quando foi obrigado a suspendê-los.
Restam as tarifas e outras barreiras. As dos ricos em agricultura
chegam a porcentagens astronômicas, 500% ou mais, nos casos de cotas-
tarifas. Nem de longe se comparam à proteção modesta dos mercados
industriais e de serviços dos subdesenvolvidos. Tome-se o exemplo do
Brasil. Criou-se aqui a mitologia de que somos um dos países mais
protecionistas do mundo. O que mostram, porém, os números do mais
recente estudo sobre o assunto, o boletim "Comércio Exterior em
Perspectiva", de março-abril, elaborado pela magnífica equipe técnica
da CNI (Confederação Nacional da Indústria)?
1) A tarifa média nominal era em 1990 de 43% e baixou em 2005 a 10,7%;
2) a alíquota média efetivamente paga em 2005, após as isenções, foi
de 4,35%;
3) a média para produtos industriais é de 10,8%, superior apenas à da
China, à da Coréia do Sul e à da Rússia; a nominal mexicana é de
15,1%, embora a efetiva seja menor graças às isenções de acordos
comerciais;
4) a mais alta tarifa nominal é de 35%, aplicada a automóveis e
apenas a seis outros produtos do setor de calçados, alhos e sorbitol;
5) na comparação com nove expressivas economias em desenvolvimento
(África do Sul, China, Coréia do Sul, Índia, México, Rússia,
Tailândia, Venezuela e Vietnã), o estudo conclui que o Brasil tem
média relativamente baixa, superior à russa, próxima à da África do
Sul e à da China e inferior à dos demais.
Chama a atenção que a média mais elevada é a da Índia, de 29,9%,
quase três vezes a nossa. Como o Brasil tem o nome associado ao da
Índia nas cobranças internacionais, recomenda a prudência deixar
claro que se trata de situação diferente. A Índia saberá defender-se
como sempre fez e, além disso, não vai querer pagar muito pois seu
interesse em agricultura é mais tático do que real.
O Brasil, com interesse genuíno na liberalização agrícola, precisa
fazer conhecer os números e não ter vergonha de dizer que temos
direito a compensação pelas distorções do sistema. Se não mudarmos as
premissas da negociação, vamos ter de comer gato e pagar a conta da
lebre.