Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, novembro 24, 2005

EDITORIAIS de O ESTADO DE S.PAULO

Palocci virou o jogo

Dizia-se ontem neste espaço, a propósito da mais do que presumível intenção do presidente Lula de manter o seu ministro da Fazenda, mas não a política econômica - "Palocci sem o paloccismo" -, que faltava combinar com ele. E que o cenho franzido do ministro numa solenidade palaciana, segunda-feira, "proclamava eloqüentemente o fracasso da esperteza do chefe". Na tarde seguinte, reconhecendo o fracasso e dando razão a todos quantos dizem que ele pode ser qualquer coisa, menos parvo e menos ainda suicida, Lula jogou publicamente a toalha. "Ele está mais firme do que nunca", respondeu aos jornalistas que, ao final de outro evento, dessa vez em Goiás, queriam saber do futuro do ministro - o qual, horas antes, afirmara numa comissão da Câmara dos Deputados que só o presidente poderia dizer se ele permaneceria no cargo.

Àquela altura, porém, um e outro sabiam que o jogo estava feito, e o que parecia impossível tinha acontecido. Não apenas Palocci ficaria, como ficou mantida a política econômica que, na sua primeira ida ao Congresso, a uma comissão do Senado, uma semana antes, ele dissera ser a única que teria força para cumprir. "Não outra", sublinhou, apostando todo o seu cacife, o que a muitos soou como uma temeridade. Palocci pagou para ver - e acabou levando as fichas em disputa, menos as que simbolizam uma concessão nominal aos seus adversários, notadamente a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Pelo que vazou do acordo entre ele e o presidente, ao cabo de uma tensa conversa na noite daquela segunda, o superávit primário do governo deverá cair do recorde de 6,1% do PIB registrado em outubro, mas não a ponto de voltar à meta nominal de 4,25%.

Decidiu-se fechar o ano poupando entre 4,6% e 4,7% do PIB para pagar os juros da dívida, o mesmo resultado de 2004. De todo modo, esses números não dão conta do essencial. E o essencial é que Palocci - desmentindo a suspeita de que o seu apego ao poder seria tanto que aceitaria, afinal, gerir a política que Lula fizera questão de definir como sendo, não do ministro, mas do governo - manteve intactos os fundamentos e os objetivos da orientação inextricavelmente associada ao seu nome. E essa, "não outra", é o caso de parafrasear, foi a condição que apresentou para ficar. O seu triunfo foi nada menos do que fantástico, embora isso não signifique que tenha sido um jogo de soma zero, em que ao êxito de um corresponde o fracasso do outro. Ao ceder a Palocci, também Lula saiu ganhando - e decerto foi por antever isso que ele desistiu de fritá-lo, como tudo indicava que vinha fazendo.

As últimas dúvidas que o presidente pudesse ter sobre a conveniência política de conservar o companheiro no time ele próprio se incumbiu de pulverizar, com um desempenho digno de aplausos em cena aberta na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara - de onde, assim como acontecera quando de seu depoimento à Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, saiu melhor do que entrou, apesar do que talvez tenha deixado de dizer sobre os seus tempos de prefeito de Ribeirão Preto. Combinando elegância na forma com unhas e dentes no conteúdo, sustentou de modo cabal, sem um único escorregão, o imperativo de garantir a estabilidade das finanças públicas, defendendo tudo que a ministra Dilma condenara na entrevista a este jornal, há duas semanas, desencadeando o confronto aberto entre ambos.

"Vamos deixar para os nossos filhos e netos uma dívida de 50% do PIB?", provocou, em dado momento. O respeito quase reverencial com que foi ouvido, salvo por um ou outro parlamentar cabeça-quente, numa casa do Congresso que não costuma tratar os seus interrogados com punhos de renda, há de ter aberto os olhos de Lula, se é disso que se tratava, para o que representa contar com um ministro da sua estatura e credibilidade. Nenhum outro conseguiu nem conseguirá ser o arrimo sem o qual o governo não pode passar, fustigado por uma crise política que caminha para o seu sétimo mês e que não cessa de derrubar os índices de popularidade do presidente. (Pela pesquisa divulgada ontem, já são 44% os brasileiros que o reprovam, 43% os que acham que ele tem parte com a corrupção e 47% os que não pretendem votar nele de forma alguma.)

E embora 53% considerem a política econômica "inadequada", a economia, sob a batuta de Palocci, poderá ser a paradoxal tábua de salvação de Lula - o contrapeso ao fator corrupção.


Morte anunciada

Anunciada como uma das principais medidas do "choque de gestão" com que o governo Lula pretendia dar à opinião pública demonstrações de eficiência e competência administrativa, teve vida curta a Receita Federal do Brasil, ou Super-Receita, como ficou conhecida. Sobreviveu exatamente o tempo de vigência de uma medida provisória quando não convertida em lei. Era previsível que o governo, envolvido em grave crise política e sem forças nem competência para negociar, não conseguiria aprovar no Senado a MP 258, como ela fora aprovada pela Câmara. Sem ter sido votada, a MP perdeu validade na semana passada.

Tão logo ficou claro que o Senado não votaria a MP a tempo de ela ser convertida em lei, o governo chegou a pensar em transformar em projeto de lei o texto aprovado pela Câmara. Embora isso implicasse o início da tramitação de uma nova proposta no Congresso, o governo contava com o fato de o texto já ter sido examinado pela Câmara para tentar acelerar o processo. Esperava que, como aprovara a MP com alterações, a Câmara aprovasse também o projeto de lei, o que concentraria a discussão no Senado. Se tudo corresse assim, haveria a possibilidade de o novo projeto ser aprovado ainda neste ano, como era sua intenção inicial.

Parece que, felizmente, voltou atrás nessa decisão, que poderia resultar em novas dificuldades. O presidente da República assinou decretos com medidas necessárias para manter em funcionamento autônomo os órgãos que formariam a Super-Receita - a Secretaria da Receita Federal, ligada ao Ministério da Fazenda, e a Secretaria da Receita Previdenciária, vinculada ao Ministério da Previdência - e nomeou o secretário da Receita, Jorge Rachid, para exercer também o cargo de secretário da Receita Previdenciária, "sem acúmulo de vencimentos".

Também o Congresso tem tarefas a cumprir. Tendo a MP 258 perdido eficácia, cabe agora ao Congresso, como determina a Constituição, "disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas dela decorrentes".

Adotadas essas providências, resolvem-se os problemas resultantes da perda da eficácia da MP 258. Mas permanece a carência do "choque de gestão" na administração federal prometido em julho último, quando o governo a propôs.

Temeu-se, na época, que a criação da Super-Receita poderia resultar na constituição de uma "supercaixa" que centralizaria os recursos. O texto da MP, porém, era claro ao assegurar que a receita previdenciária teria contabilidade e controle próprios, separados das demais receitas federais, para ser aplicada exclusivamente no pagamento de benefícios do Regime Geral da Previdência Social. Seriam mantidas as atuais competências do Instituto Nacional do Seguro Social, entre elas a de concessão de aposentadorias.

Também se temia que contribuintes que costumeiramente deixavam de recolher as contribuições previdenciárias devidas pudessem compensar seus débitos com créditos dos demais tributos administrados pela Super-Receita. Mas o texto da MP impedia essa compensação.

Afastados esses temores, a MP tinha muitos pontos positivos, que justificavam sua inclusão entre as medidas de "choque de gestão" prometidas pelo governo. A unificação das duas estruturas arrecadatórias resultaria, ao longo do tempo, numa redução substancial do quadro de pessoal. Atenderia, por isso, a um reclamo dos contribuintes, que querem a redução da estrutura estatal e, sobretudo, dos gastos com pessoal. A despeito da redução de pessoal, a Super-Receita poderia ser mais eficaz do que as atuais. No esquema que funciona hoje, os dados dos cadastros de contribuintes da Receita Federal e da Previdência não são cruzados de maneira automática. Tal cruzamento poderia levar à identificação com maior presteza dos casos de sonegação.

Por essas razões, a criação da Super-Receita trará benefícios não apenas para o governo, mas também para os contribuintes honestos, que são a imensa maioria. Deve avançar, mas por meio de projeto de lei que possa ser examinado pelo Congresso com a profundidade que a questão exige.

O Inep não é exceção

Há dez anos o governo do presidente Fernando Henrique deu o primeiro passo para disseminar uma "cultura da avaliação do ensino" no País, criando o Sistema de Avaliação do Ensino Básico. Em seguida, obrigou os estudantes universitários a se submeterem ao Provão e, dois anos depois, lançou o Exame Nacional do Ensino Médio, para avaliar o grau de aproveitamento dos alunos das três séries que compõem o último ciclo educacional antes do vestibular. Implementados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), vinculado ao Ministério da Educação (MEC), esses programas tinham por objetivo promover uma avaliação da qualidade do ensino para, a partir dela, tentar melhorar a qualidade dos investimentos na educação. Até então, as políticas educacionais eram formuladas mais por intuição do que com base em dados estatísticos.

Uma década depois, o que era estratégico para deflagrar a revolução educacional, da qual o Brasil tanto depende para forjar suas novas elites intelectuais, técnicas e gerenciais, está destinado ao fracasso. Isto porque, enquanto o governo Fernando Henrique valorizou o Inep, entregando-o a pedagogos respeitados, e assegurou uma linha de continuidade na política de ensino, mantendo o mesmo ministro durante seus dois mandatos, o presidente Lula fez o inverso.

Em três anos no poder, ele nomeou três ministros para a pasta da Educação. E como cada um deles, ao ser empossado no cargo, mudou as prioridades de seu antecessor, o governo passou a agir de modo errático, anunciando novos programas sem a preocupação de assegurar a continuidade dos que vinham sendo implementados. Além do desperdício de dinheiro, a política do governo Lula também permitiu o aparelhamento político do Inep, por meio da nomeação para os principais cargos do órgão de militantes petistas sem preparo técnico para ocupá-los.

Essa simbiose entre falta de foco, inépcia e aparelhamento político da administração pública, que hoje desorganiza o Inep, é a marca do governo Lula. A descrição minuciosa desse fenômeno que caracteriza a administração petista está em entrevista à Folha de S.Paulo de 2ª-feira, do sociólogo Carlos Araújo, que até há duas semanas era o responsável pela Diretoria de Avaliação de Educação Básica do órgão. Insuspeito, por pertencer ao PT, ele descreve um cenário de terra arrasada num dos setores estratégicos da máquina estatal.

Desde a posse de Lula, recorda Araújo, o Inep já teve quatro presidentes. O primeiro foi Otaviano Helene, professor de física e líder sindical na USP. O segundo foi Luís Araújo, professor de história no Pará. O terceiro foi Eliezer Pacheco, casado com a deputada Maria do Rosário, ex-candidata a presidente do PT. O atual presidente é Reynaldo Fernandes, um economista de Ribeirão Preto que estava na Escola de Administração Fazendária, quando foi convidado para dirigir o Inep pelo ministro Fernando Haddad, de quem é amigo. Todos eles são militantes petistas, principal "credencial" para o cargo que ocuparam, pois nenhum tinha qualquer experiência em matéria de avaliação de ensino.

O coordenador do centro de informação do Inep é irmão de Geraldo Magela, ex-candidato a governador do Distrito Federal pelo PT. A diretora de Tratamento da Informação é sogra do prefeito petista de Nova Iguaçu, Lindberg Farias. O próprio Carlos Araújo confessa que teve de "engolir" a nomeação de uma professora de educação física petista para gerir o Banco Nacional de Itens, um cargo que exige conhecimento de estatística e de psicometria. "Como era de se esperar, ela se atrapalhou (...). Eu pedi abertura de sindicância para apurar responsabilidades. Mas o Reynaldo (atual presidente do Inep) chegou e não deu continuidade (à sindicância). Como podia ficar num lugar em que via uma coisa errada, pedia para o presidente tomar providências e ele não encaminhava?", diz Araújo.

Com tanto despreparo técnico, tornou-se inevitável a erosão da experiência de avaliação educacional acumulada até 2003. Nos próximos dias, o Inep avaliará o ensino básico, em prova envolvendo 5 milhões de alunos. Mas de que adianta realizar esse esforço se o órgão não tem gente preparada para processar informações? Infelizmente, o que ocorre no Inep acontece, em maior ou menor escala, em quase todas as áreas do governo, fora do setor econômico.


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