quinta-feira, março 31, 2005

Relatório aponta déficit de R$ 659,7 mi deixado por Marta


CONRADO CORSALETTE
da Folha de S.Paulo

O prefeito de São Paulo, José Serra (PSDB), enviou ontem ao TCM (Tribunal de Contas do Município) um relatório que aponta um déficit financeiro de R$ 659,7 milhões nas contas do último ano da gestão Marta Suplicy (PT).

Além de dívidas de curto prazo, o relatório diz que o rombo patrimonial da prefeitura --diferença entre todo seu patrimônio e tudo que deve-- é de R$ 5,2 bilhões.

Se os números forem confirmados --num processo que pode demorar anos--, a ex-prefeita corre o risco de perder seus direitos políticos e ser enquadrada na Lei de Crimes Fiscais, que prevê até a reclusão de governantes.

Marta nega ter deixado as contas no vermelho. A ex-prefeita promete entrar com uma representação criminal contra a equipe de Serra sob alegação de que os balanços estão sendo manipulados.

O déficit apontado no relatório entregue aos conselheiros do tribunal é bem inferior ao R$ 1,8 bilhão que vinha sendo divulgado anteriormente pela equipe tucana. Isso porque não foram incluídos no balanço dívidas que ainda não estão consolidadas, como aquelas que não foram incluídas no Orçamento ou tiveram seu empenho (reserva orçamentária) cancelado no final de 2004.

Muitos números sofreram alterações --a Secretaria de Finanças alega que os balanços divulgados anteriormente eram provisórios.

Segundo o relatório, Marta deixou em caixa R$ 358,6 milhões para saldar dívidas de curto prazo que chegavam a R$ 1,018 bilhão.

A Lei de Responsabilidade Fiscal proíbe governantes de deixar pendências ao sucessor sem deixar saldo em caixa para pagá-las.

A entrega do relatório aos conselheiros do TCM é o primeiro passo de um longo processo até a aplicação de eventuais penas pelo descumprimento da lei fiscal.

O tribunal tem 90 dias para emitir um parecer sobre as contas de Marta, recomendando sua aprovação ou reprovação. Esse parecer será enviado, em seguida, à Câmara Municipal. Os vereadores decidirão, por fim, se a ex-prefeita cumpriu ou não a legislação.

A Câmara Municipal não tem prazo para votar as contas. Ainda tramitam na Casa oito pareceres do TCM, referentes a gestões fiscais dos governos Luiza Erundina (1988-1992), Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (1997-2000).

Mesmo que os vereadores reprovem as contas --o que deixaria o governante inelegível--, há ainda a possibilidade de recursos judiciais para rever a decisão.

Os relatórios do tribunal, porém, podem ser solicitados pelo Ministério Público. Se houver irregularidade, Marta poderá ser processada. Os promotores paulistas já estão investigando o fechamento das contas de 2004.

As contas dos três primeiros anos da gestão Marta já foram aprovadas pelos vereadores, após um acordo entre petistas e tucanos no final do ano passado.

Por esse acordo, os parlamentares aprovariam as três gestões fiscais em troca da aprovação do remanejamento de 15% para Serra em seu primeiro ano de mandato.

A equipe de Marta também esperava fechar o balanço de seu último ano de governo ao lado da equipe de Serra para que a Câmara aprovasse ainda este ano essas contas. Nos bastidores, os petistas se dizem traídos, pois os tucanos teriam descumprido o acordo ao iniciar a divulgação de balanços apontando déficits milionários.

Outro lado

A ex-prefeita Marta Suplicy (PT) disse ontem, em nota, que irá representar criminalmente contra a equipe de José Serra (PSDB). Ela quer a abertura de um inquérito que investigue a "manipulação" das contas por parte dos tucanos.

Segundo seus assessores, Marta, que é pré-candidata do PT ao governo do Estado, fechou as contas no azul.

"Reiteramos que a administração Marta Suplicy cumpriu a Lei de Responsabilidade Fiscal e fechou 2004 com disponibilidade financeira de R$ 428,8 milhões", diz a nota. "Trata-se de dinheiro em caixa suficiente para cobrir as obrigações com os fornecedores vencidas em 2004, que somavam R$ 417,2 milhões."

Assim como ocorreu no balanço de Serra, os números apresentados ontem por Marta também são diferentes daqueles divulgados anteriormente.

Jornal O Globo - Luis Fernando Verissimo

Novos ódios


O racismo cresce e assusta na Europa, onde estive durante o último mês e pouco. Acontece um tétrico torneio de violência entre etnias e grupos — brancos contra negros e árabes, árabes contra negros e judeus, neonazistas contra negros, árabes, judeus e o que estiver pela frente. Racismo não é novidade no continente, e nem é preciso invocar a velha tradição anti-semita e o seu paroxismo nazista. Na Europa desigual que emergiu da Segunda Guerra Mundial, portugueses, espanhóis, italianos, gregos e outros em fuga das regiões mais pobres eram discriminados onde procuravam os empregos que não tinham em casa, e o problema dos magrebinos na França é anterior à Segunda Guerra. Mas todos se integraram de um jeito ou de outro no país escolhido ou voltaram aos seus próprios países economicamente recuperados, e o velho racismo foi solucionado, ou pelo menos amenizado, pelo tempo e o progresso. O que assusta no novo racismo é a ausência de qualquer solução parecida à vista. Ele é econômico como o outro, claro. Existe na sua grande parte entre jovens marginalizados e sem perspectiva. Mas envolve cor e religião e ódios culturais novos, ou — no caso de judeus e muçulmanos — ódios antigos importados. E o tempo só piora o novo racismo. Caso curioso é o do futebol, que deveria estar contribuindo para o entendimento racial mas ajuda a deteriorá-lo. Não há grande clube europeu que não tenha um bom número de jogadores negros, que são ídolos das suas torcidas mas alvos dos insultos raciais das torcidas adversárias — que esquecem seus próprios ídolos negros na hora do xingamento. É nos estádios de futebol que têm havido os piores incidentes raciais. Na França fazem campanhas contra o preconceito e a violência, e contra as novas manifestações do anti-semitismo que tem sido uma infecção recorrente na história da Europa cristã. A luta parece em vão num mundo que, quanto mais cosmopolita fica, mais se retribaliza.


***



Apareceu a autora do “Quase”, o texto que rola na internet atribuído a mim e que eu, relutantemente, tenho que repetir que não é meu. Ela se chama Sarah Westphal Batista da Silva, tem 21 anos, é de Florianópolis, escreveu o texto “inspirada por um menino que não me namorou, mas quase...”, mandou o texto por e-mail a várias amigas e dois anos depois teve a surpresa de vê-lo impresso com a minha assinatura. A Sarah está no quarto semestre de medicina mas sonha em largar a faculdade e começar a escrever. Olha aí, editores. Ela nem começou e já foi traduzida na França.

QUASE ( Falsamente atribuído a Luis Fernando Veríssimo)


Presque

Jornal O Globo -Merval Pereira

USA, amor e ódio

Onde havia apenas amor, e muitas vezes subserviência, há uma ambivalência de amor e ódio atualmente na relação entre Brasil e Estados Unidos que pode dar certo, mas pode também acabar em algum mal-entendido desses que podem criar uma crise nas relações internacionais onde menos se espera e, pior, que ninguém deseja.

O presidente Lula, muito cioso do papel de principal líder regional da América do Sul — e, quem sabe, da América Latina — se oferece como representante da região para o Conselho de Segurança Nacional da ONU, sem levar em conta o papel do México — tomou as dores do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e respondeu ao que teria sido uma intromissão do secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld.

Quando, em visita oficial ao Brasil, criticou a Venezuela por estar comprando cem mil fuzis AK-47, insinuando que esse armamento poderia acabar nas mãos da guerrilha colombiana, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, o secretário de Defesa americano claramente exacerbou suas funções.

Lula aproveitou o encontro com os presidentes Chávez e Uribe, da Colômbia, e mais o presidente do governo espanhol, José Luiz Zapatero, para assumir a defesa de Chávez, dizendo que não aceita difamações “de companheiros”. A gafe de Rumsfeld, bem apontada por Luiz Garcia em coluna recente, acabou gerando uma bravata de Lula em defesa da região, que parece estar sob fogo cerrado do governo Bush.

Certamente Rumsfeld não falou sem querer sobre a questão da Venezuela no Brasil. Na verdade, quis mandar um recado direto ao Palácio do Planalto, o que não diminui o tamanho da gafe, pois se quer a interferência brasileira para conter o populismo de Chávez, deveria pedi-la a porta fechadas, e não tentando publicamente emparedar o governo brasileiro.

A guinada à esquerda da América do Sul preocupa Washington, que está escolhendo o pior caminho, o da pressão política, para tentar desunir os líderes da região. O certo, no entanto, seria procurar trabalhar com o governo Lula para que a liderança política do Brasil fosse uma garantia de tranqüilidade na região. Pressionar publicamente só faz com que Lula, para manter o prestígio entre os seus, tenha que responder publicamente também.

O que os Estados Unidos parecem não entender, e o jornal inglês “Financial Times” já entendeu, é que o governo brasileiro, com o prestígio que vem angariando junto aos vizinhos e a clara disposição de liderar a região, postura que nunca havia sido assumida pela política externa brasileira, é o único caminho diplomático viável para garantir estabilidade política na região.

Não foi à toa que o presidente Lula se referiu diretamente, pela primeira vez, às acusações de que o PT recebeu doações em dinheiro das Farc para a última campanha eleitoral, que o elegeu. Ao negar ter recebido dinheiro clandestino, Lula colocou-se como um interlocutor aceitável também para o presidente da Colômbia, Alvaro Uribe, sem o que sua liderança regional estaria ameaçada.

O próprio presidente George W. Bush telefonou para o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, para se queixar de Chávez, e ouviu dele que continuaria dialogando com o governo democrático da Venezuela. Por mais que Chávez faça internamente para transformar seu superpresidencialismo em um arremedo de democracia, enquanto estiver mantendo as aparências democráticas, e sendo alvo de campanhas de desestabilização vindas dos Estados Unidos, terá o apoio dos governos da região.

Mais pelo temor de que os Estados Unidos se intrometam no nosso continente, do que exatamente pela defesa de suas posições políticas, que não têm o apoio integral do governo brasileiro. O interessante é que tanto o governo dos EUA quanto o do Brasil estão empenhados em entenderem melhor um ao outro, e há indicações de que figuras-chaves dos dois países estão tentando compreender “a cabeça” do outro.

A secretária de Estado Condoleezza Rice anda lendo ultimamente livros sobre Lula e sua trajetória política, e já deu demonstrações de que tem interesse em vir ao Brasil brevemente. Do nosso lado, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, andou lendo biografias de Condoleezza antes de encontrá-la em Washington, no início do mês.

O governo brasileiro estabeleceu, com o acompanhamento pessoal do presidente Lula, uma série de visitas de autoridades brasileiras aos Estados Unidos, especialmente para contatos no meio acadêmico, e entre as ONGs e entidades sindicais. Além do ministro Dirceu, também esteve nos EUA o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, encarregado de fazer a ligação do governo com a sociedade civil no Brasil.

Não por acaso os dois estiveram reunidos com representantes dos meios de comunicação americanos, Dirceu almoçando com a direção do “Washington Post”, e Dulci se encontrando com jornalistas da NBC, que está programando uma série de documentários com os BRICs — Brasil, Rússia, Índia e China — países tidos como possíveis futuros líderes mundiais.

Outras viagens acontecerão, e o governo brasileiro pretende convidar intelectuais e formadores de opinião dos Estados Unidos para visitarem o Brasil. Incomoda sobremaneira aos petistas como o meio acadêmico americano continua sendo “tucano”.

Com esses contatos, o governo brasileiro quer mostrar nosso potencial e, sobretudo, mudar a imagem de setores que ainda temem essa confluência de governos de esquerda na América do Sul.

Depois de ter sido defendido publicamente pelo presidente Lula, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, abrandou suas críticas ao governo americano, numa indicação de que seria melhor mesmo para os Estados Unidos trabalharem mais próximos ao Brasil. A diferença entre Chávez e Lula pode ser medida na seguinte comparação: Chávez só se refere ao FMI aos palavrões, Lula só tem elogios. Mas é compreensível que seja difícil para os neoconservadores que tomaram conta do governo americano entenderem que o equilíbrio político da América do Sul dependa de “moderados” como Lula e Kirchner.

Jornal O Globo - Miriam Leitão

A gota d’água

Pelas contas do próprio governo, ele tentou tirar R$ 1,5 bilhão de 230 mil brasileiros e devolver R$ 2,5 bilhões a sete milhões de brasileiros. E não foi entendido em seu propósito. Era uma tsunami e a área política do governo achou que era uma onda que dava para surfar. A área técnica ainda não entendeu o que foi mesmo que aconteceu com a MP 232. Ela produziu um movimento invencível de rejeição que mobilizou até os que não foram diretamente atingidos. Virou um ponto de resistência.
A Receita Federal, mesmo em outros governos, sempre aproveitou alguma medida tributária para apertar mais um botão, mudar uma base de cálculo, antecipar uma cobrança, subir de forma disfarçada o imposto. Esse tipo de esperteza o contribuinte decidiu não aceitar. E elegeu a 232 como ponto a partir do qual não ficaria mais calado.


Era para ser uma boa notícia. O presidente Lula chamou os sindicalistas no Palácio do Planalto para anunciar a eles a correção da tabela do Imposto de Renda pessoa física. Acabou virando uma das piores exposições de mídia vividas pelo governo. Só aqui em O GLOBO foram publicados 98 artigos, reportagens, editoriais e cartas sobre a MP nestes três meses. Deles, 14 positivos, 19 neutros e 65 negativos. Em toda a mídia, a exposição foi majoritariamente negativa.

O que foi que entornou o caldo? Tudo! Há muito tempo, o contribuinte está com esse grito engasgado. O governo embutiu na notícia boa da correção da tabela mais uma má notícia. Novo aumento da base de cálculo do IRPJ e da CSLL das prestadoras de serviço que pagam pelo lucro presumido. A última mudança dessa base de cálculo havia sido em outubro de 2003, um ano antes. Pulou de 12% para 32% e, agora, para 40%.

Técnicos da Receita que ouvi acham que o país está se mobilizando como se todos fossem atingidos, quando, na verdade, é um grupo pequeno. As empresas prestadoras de serviço que pagam pelo lucro presumido são apenas 230 mil, 9% do universo das empresas do país. E têm liberdade de pagar pelo lucro real. Outra parte da medida atinge os produtores rurais que tenham uma operação de cinco vezes o limite de isenção. Depois, negociou-se a elevação desse número para dez vezes o limite de isenção. Ou seja, teria que ser um produtor rural com uma operação mensal além de R$ 11.640. E o que se cobraria era 1,5% sobre a parcela excedente a esse valor, como retenção na fonte. Ou seja, não era mais carga, mas apenas antecipação.

A Receita mostrou esses e outros dados para os políticos e não os convenceu. Ninguém queria ouvir os argumentos técnicos. Um desses argumentos é que, na ponta do lápis, a elevação não seria tão grande quanto parece.

O aumento agora seria apenas da CSLL. No ano que vem, obedecido o princípio da anualidade, entraria em vigor o aumento para o IRPJ. Hoje, dos dois impostos, uma empresa com faturamento mensal até R$ 50 mil estaria pagando 11,33% do faturamento. Já que os dois impostos incidem sobre 32% de toda a receita da empresa, presumindo que este é o lucro que ela teve. Ao passar a base para 40% do faturamento, o custo fiscal subiria para 13,25%. Um aumento, dizem os técnicos, de apenas 1,92 ponto percentual. O governo acha que isso é pouco, mas é uma elevação de 16,9% do que se paga nesses dois tributos. No caso das empresas com faturamento além de R$ 50 mil, o aumento é maior.

Os números são perigosos. O ministro Antonio Palocci disse que as despesas discricionárias não estão aumentando tanto assim como proporção do PIB. A questão é que o PIB cresceu muito no ano passado; e ele não crescerá sempre nesta proporção. O crescimento anestesia. Quando o país cresce, aumenta a arrecadação, o governo cai na tentação de ampliar seus gastos e a conta sempre fecha no fim. Quando vem o mau tempo, o contribuinte paga a conta.

No caso da correção da tabela, o governo argumenta que foi uma despesa extra e que precisa de uma receita nova para cobrir pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A discussão é se a correção da tabela é despesa. Afinal, a correção é para buscar alguma neutralidade nesse imposto, a menos que o governo confesse que deliberadamente quer aumentar, ano a ano, a carga tributária sobre o contribuinte pessoa física. De qualquer maneira, sempre há o caminho de corte de despesas.

A MP virou, para os contribuintes, uma bandeira, uma hora de dizer basta à fúria arrecadatória. Na tramitação, viu-se novamente em cena a espantosa incapacidade política do governo. Qualquer pessoa ligeiramente informada veria que a rejeição à MP estava forte demais, o que exigiria uma habilidosa operação de salvamento ou um enterro em tempo hábil. Mas o governo foi até o fim num espetáculo inédito. Agora, o presidente Lula poderá dizer que “nunca antes na história desse país” se viu o partido do governo fazendo um relatório propondo a rejeição — e o líder do partido encaminhando pela rejeição — de uma proposta do próprio governo.

O DIA Online

Linha de (má) produção
Dora Kramer
Embora tenha sido peculiar no procedimento – com o Governo tentando derrotar a si mesmo –, o processo de votação da Medida Provisória 232 foi previsível no tocante ao resultado político desastroso.

Manteve em alta o ritmo da linha de produção de dissabores em série que o Palácio do Planalto parece ter inaugurado de um ano para cá.

O Governo recusou-se a reconhecer a óbvia resistência social à MP que corrigia o Imposto de Renda da pessoa física e aumentava tributos para pessoas jurídicas e, assim, conseguiu a um só tempo indispor pela primeira vez o presidente Luiz Inácio da Silva com a sociedade, expor o Governo a uma situação de minoria no Congresso e exibir os partidos aliados em pleno exercício de pusilanimidade explícita.

Sem coragem de defender a aprovação da medida provisória, sem condições para argumentar em favor de sua derrubada, desprovidos de convicção para enfrentar com clareza a opinião pública e carentes de disposição ao suicídio, os deputados submeteram-se a um jogo de aparências absolutamente enganosas e, portanto, indefensáveis.

Ao se verem sem votos até para derrotar a impopular medida provisória, os governistas continuaram protagonizando cenas nunca dantes vistas, juntas, num único espetáculo: lançaram mão de um instrumento regimental típico das minorias (a obstrução) e terminaram contabilizando como vitória o adiamento da sessão por falta de quorum.

Convenhamos, é pouquíssimo para quem detém o poder, conta com uma base parlamentar não-ideológica permeável à sedução dos instrumentos daquele mesmo poder e até outro dia considerava-se seguro se si no jogo político-partidário-parlamentar ao ponto de escolher um candidato à presidência da Câmara pautado exclusivamente nas conveniências e circunstâncias do PT.

O deputado Luiz Eduardo Greenhalgh desagradava à maioria dos partidos aliados ao Governo, mas, como era querido pela esquerda do PT, foi escolhido candidato como forma de tentar reaproximar o Governo de sua base social de origem. Ou seja, ignorou o colégio em que disputava, perdeu a eleição e o controle sobre a pauta da Câmara.

Agora estão patentes, pelo menos em relação ao Congresso, duas impossibilidades.

O Governo não tem base confiável para ganhar votações difíceis nem por maioria simples. Tornou-se impossível também dar continuidade ao jogo duplo pelo qual o Governo, de um lado, vê atendidos seus interesses no Parlamento e, de outro, o presidente da República faz ligação direta com a sociedade como se a administração, os ministros, o pragmatismo, o fisiologismo, as razões práticas de Governo (entre elas o aumento de impostos) e a figura de Lula fossem coisas diferentes.

Desta vez, o presidente comprou uma briga diretamente com o eleitorado. Tentou fazer uma manobra esperta dentro daquela lógica de ficar bem com a sociedade e deixar ao Governo – no caso à área econômica – o ônus das dificuldades, mas não se saiu bem.

No primeiro lance, anunciou a correção da tabela do Imposto de Renda como forma de se reconciliar com “a classe média”, cujo desagrado teria sido expresso na eleição municipal.

Quando o anúncio virou medida provisória, seguiu para o Congresso na virada do ano acrescida do aumento dos impostos às pessoas jurídicas na forma de contrabando, sem alarde nem verificação prévia sobre a possibilidade de aprovação.

Se, como alega hoje o Governo, houve incompreensão quando à justiça desta última “correção”, pois atingira só aqueles que, por permissividade da lei estavam subtraindo recursos ao Erário, não teria sido necessário embuti-la na MP, digamos assim, popular, de correção da tabela do Imposto de Renda.

Agora, ante à confusão armada, há quem se pergunte no Governo onde é que está o erro, porque, afinal de contas, não se conseguiu vencer a batalha da comunicação e convencer a sociedade das boas intenções governistas.

A resposta não é assim tão difícil. Está exatamente na tentativa de se fazer uma manobra esperta. De deixar Lula em primeiro plano exibindo o lado bom, enquanto Antonio Palocci, do bastidor, manipula o leme daquilo que é ruim e, aprendeu com eficácia o PT, como tal deve ser escondido.

Nem sempre dá certo, e desta vez não deu.

Bomba-relógio

Desde a suspensão da reforma ministerial, o Governo estuda com cuidado qual a melhor maneira de lidar com o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti.

As opiniões a respeito dele no Palácio do Planalto mudaram bastante neste mês e meio em que ocupa o cargo. De início, foi percebido como uma figura folclórica, razoavelmente fácil de ser manipulada.

Ao preço de uns cargos e outros tantos agrados, imaginava-se poder controlar Severino. Ou, na pior das hipóteses, fazer dele um contraponto pelo qual suas exorbitâncias despertassem rejeição popular e carreasse apoios ao Palácio do Planalto.

Agora já começa a prevalecer a convicção de que Severino, na sua primariedade, é incontrolável, imprevisível, um perigo, pois pode perder, mas também ganhar e impor derrotas.

Se pudesse escolher entre tratá-lo no confronto ou esvaziar-lhe o poder de fato, o Planalto ficaria com a segunda opção.

Folha de S.Paulo - Editoriais - 31/03/2005

PREOCUPAÇÃO FISCAL

O quadro que emerge do desempenho fiscal do setor público em janeiro e fevereiro, de acordo com números divulgados pelo Banco Central, não caracteriza uma situação de folga, mas tampouco de descontrole, como alguns têm insinuado. União, Estados e municípios, malgrado o preocupante déficit da Previdência, influenciado pela expansão dos benefícios e por pagamentos determinados pela Justiça, acumularam um superávit primário de R$ 15,4 bilhões nos dois primeiros meses do ano -o equivalente a 5,2% do Produto Interno Bruto. Em 12 meses, o saldo foi de R$ 86,3 bilhões (4,8% do PIB).
São valores que excedem a meta de 4,25% do PIB definida pelo governo para 2005. Mesmo assim, os recursos acumulados não foram suficientes para o pagamento dos juros da dívida pública, que somaram R$ 24 bilhões em janeiro e fevereiro. Considerando o fluxo acumulado nos últimos 12 meses, os juros atingiram R$ 131,1 bilhões (7,3% do PIB). Assim, as contas do setor público apresentaram, em janeiro e fevereiro, um déficit nominal (superávit primário menos o pagamento de juros) de R$ 8,6 bilhões. Em 12 meses, ele chegou a R$ 44,8 bilhões.
Entretanto, a despeito da alta da taxa de juros e do déficit nominal ligeiramente maior, a relação entre dívida líquida do setor público e PIB permaneceu estável, em torno de 51,3%.
Isso não significa que os gastos governamentais não venham se elevando e que as apreensões em torno desse processo sejam injustificadas. De fato, não basta considerar que o aumento das despesas públicas é "sustentável" -como fez o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, no Congresso. Num país com enormes carências, submetido a restrições financeiras e a alto endividamento, é imperativo que os gastos sejam mais eficientes e se subordinem à necessidade de o poder público recuperar a capacidade de investir em áreas fundamentais, como a infra-estrutura.
Gastos "sustentáveis", mas desnecessários ou ineficientes, são a outra face do insuportável processo de elevação da carga tributária que a sociedade brasileira já não mais tolera.

Folha de S.Paulo -CLÓVIS ROSSI-31/03/2005


Dois Lula, ambos convenientes

MADRI - Vinte e sete meses depois de assumir a Presidência, como é Luiz Inácio Lula da Silva quando visto de longe? Pode ser assim: "Lula da Silva consolidou sua posição de grande potência regional e sua aspiração a consolidar-se como porta-voz continental e paladino de uma política viável de progresso social e desenvolvimento" (descrição de Peru Egurbide, do jornal espanhol "El País", a respeito da cúpula de anteontem em Ciudad Guayana).
Você aí que sempre teve ou contraiu raiva de Lula dirá que Egurbide é um desses jornalistas "petistas" que existem supostamente em todas as redações do mundo. Engano. É o especialista em diplomacia do melhor jornal espanhol, com muita quilometragem rodada (trabalhamos juntos em Israel, durante a primeira guerra do Golfo, há 14 anos).
Mas a esse retrato simpático deve-se acrescentar outro, que surge quase distraidamente no mesmíssimo jornal, em cândida confissão de Carlos Westendorp, embaixador da Espanha em Washington e outro veterano (já foi comissário europeu).
Westendorp comenta que o objetivo comum da Espanha e dos EUA em relação ao presidente venezuelano Hugo Chávez é "lulalizar Chávez". Não é preciso ser diplomata nem veterano nem mesmo muito esperto para perceber que o neologismo "lulalizar" significa que Lula foi devidamente domesticado e não mais assusta nem incomoda o establishment (tanto o interno como o externo).
Ao contrário do que parece, nem há contradição entre os dois Lula, o do jornalista e o do embaixador.
Convém aos líderes mundiais que o presidente de um país complexo e potencialmente problemático como o Brasil, ainda mais sendo ele proveniente em teoria da esquerda, faça todo um discurso contra a pobreza e a fome, mas, ao mesmo tempo, implemente políticas ortodoxas, convencionais, pró-mercado.
Como ninguém é contra combater a fome (ao menos da boca pra fora), a "lulalização" de Lula é conveniente, porque sua retórica nem sequer arranha o status quo.

Folha de S.Paulo -ELIANE CANTANHÊDE- 31/03/2005



Deus nos acuda

BRASÍLIA - É difícil, mas até acontece de governos não conseguirem aprovar suas propostas no Congresso. O que nunca se viu é governos saberem que vão perder e não conseguirem nem derrotar a própria proposta. Isso só acontece com Lula.
Sem comando, sem articulação, sem base, o governo virou uma barata tonta durante toda a reta final da MP 232, que, de um lado, corrigia a tabela do Imposto de Renda em 10% e, de outro, compensava a perda aumentando a tributação sobre prestadores de serviço e autônomos. Tirava do salário para o salário. O verdadeiro capital continuava ileso.
É uma MP bumerangue: o governo lançou, a opinião pública reagiu iradamente, o Congresso tirou o corpo fora e a medida foi atirada de volta na testa do governo. Não satisfeita, a oposição quer manter a redução do IR, sem compensação nenhuma.
Severino Cavalcanti levou os louros. O mesmo Severino que tentou aumentar os salários dos deputados e acabou aumentando as verbas de gabinete é o que agora botou a MP 232 em votação -para enterrá-la.
José Dirceu sai em campo para passar a mão na cabeça de Roseana Sarney e tentar atrair as "viúvas de FHC" no PMDB. Aldo Rebelo avisa que da Coordenação Política não sai, dali ninguém o tira. Arlindo Chinaglia (novo líder do governo) tenta se ouvir num plenário de surdos.
Mas, se há um culpado, é o presidente da República. Bom de megafones em portas de fábricas e de negociações em sindicatos, ele tornou-se também bom de voto. Mas nunca perdeu o desdém pela política e pelos políticos, e o que consegue é o oposto do que gostaria: além de colher derrotas como a de agora, contribui para vicejar os Severinos e os "300 picaretas" que antes condenava.
E o governo nem completou dois anos e meio. Imagine daqui a dois, três, quatro, cinco anos, com reeleição. Hoje, já está um deus-nos-acuda. Depois, nem Deus dá jeito.
Como diz o deputado Roberto Brant (PFL-MG), "o governo envelheceu muito cedo". Tem razão.

Folha de S.Paulo -PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.:Bye, Bye, FMI- 31/03/2005





"You say goodbye and I say hello
Hello, hello
I don't know why you say goodbye
I say hello" Lennon & McCartney

A decisão de não renovar o acordo com o FMI foi um passo acertado e recebeu apoio geral. Uma vitória política para o governo Lula, portanto.
O governo oscilava entre dois objetivos conflitantes. Por um lado, pretendia "faturar" na opinião pública a decisão de "caminhar com as próprias pernas" e dispensar o apoio do Fundo. Por outro, não queria assustar os mercados financeiros. O presidente da República e o ministro da Fazenda adotaram, assim, um discurso comedido e sóbrio. Saíram-se bem. Os mercados nem piscaram (por enquanto), os meios de comunicação deram cobertura favorável e a cotação do governo deve ter subido na população.
Evidentemente, a vitória nada tem de espetacular. Não é comparável, por exemplo, à que foi alcançada pelo governo Kirchner na reestruturação da dívida pública argentina. Na realidade, a decisão veio tarde. Poderia ter sido tomada já no final de 2003, quando o governo Lula, por excesso de zelo, resolveu prorrogar por mais 15 meses, até março deste ano, o acordo "stand-by" que havia sido negociado pelo governo Fernando Henrique Cardoso em 2002. O Brasil nem teve que efetuar saques nesse último empréstimo, limitando-se a pagar ao FMI os vencimentos de principal, de juros e as comissões pelos recursos disponíveis não-utilizados.
Além do mais, convenhamos, não é normal que um país fique tanto tempo debaixo das asas do FMI. O Brasil ficou submetido a monitoramento do FMI desde fins de 1998. Todo o segundo mandato de FHC e um pouco mais da metade do governo Lula transcorreram sob a tutela desse organismo. Se o governo brasileiro resolvesse agora estender por, digamos, mais 15 meses o acordo "stand-by", o país completaria quase oito anos como cliente do FMI. Ora, os empréstimos "stand-by" são linhas emergenciais, utilizadas normalmente por períodos curtos, de 12 a 18 meses.
Seja como for, a pergunta mais importante é a seguinte: que diferença fará essa decisão para a vida prática do país? Pouca, na minha opinião. O FMI já foi "internalizado" pelo governo brasileiro. Contamos hoje com a valorosa contribuição de um "FMI doméstico", solidamente instalado na Fazenda e no Banco Central. Ocorreu uma espécie "sui generis" de substituição de importações.
Pior: o "FMI doméstico" é às vezes mais radical e inflexível do que o original. É o velho fenômeno: para apagar o seu pecado original -a condição de subdesenvolvido nato e hereditário-, o economista ortodoxo tupiniquim está sempre buscando meios e modos de demonstrar fidelidade canina aos princípios da economia tradicional.
Como se comportará o "FMI doméstico" sem o apoio direto e formal dos seus mentores em Washington? O risco que corremos (e já há vozes no mercado financeiro clamando por isso) é que novas medidas restritivas venham a ser adotadas. O raciocínio (ou pretexto) é o seguinte. Sem o FMI, o governo pode ter problemas de credibilidade. Precisaria antecipar-se e dar demonstrações concretas de que está preparado para tomar medidas duras de forma independente, "sponte sua".
Por essa linha de argumentação, caberia à Fazenda, por exemplo, elevar a meta para o superávit fiscal primário, o que poderia significar aumentos de impostos, cortes de investimentos públicos ou redução de programas sociais. Outro exemplo: o Banco Central deveria manter a taxa básica de juro em nível muito alto por mais tempo (ou até aumentá-la ainda mais). Ainda outra possibilidade: o governo adotaria certas "reformas" bem-vistas pelo mercado financeiro, como a concessão de autonomia formal para o Banco Central. Leia-se: estabilidade no emprego para os membros do Copom (Comitê de Política Monetária do BC) -aqueles que estão sempre ameaçando os empregos dos demais brasileiros.
Se essa linha prevalecer, só nos restaria berrar: "Help! Tragam o FMI de volta!".

Folha de S.Paulo -LUÍS NASSIF:Uma inclusão meritória




A proposta mais racional sobre políticas compensatórias para acesso às universidades foi desenvolvida pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas): o Paais (Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social).
Partiu-se de um levantamento de vestibulares passados para analisar o desempenho dos alunos. Chegou-se a conclusões óbvias, embora relevantes. Todo excluído vem da escola pública. Entre os excluídos da escola pública, os mais excluídos são os pretos (para usar a terminologia do IBGE), os índios e os pardos. Mas nem todo preto é excluído, porque parte vem de escolas privadas.
No curso, entre grupos de alunos de mesma nota nos vestibulares, os que vieram de escola pública tiveram desempenho superior. Se, em desvantagem no vestibular, alcançaram a mesma nota, em igualdade de condições, nos cursos, se saíram melhor. Logo, mesmo que haja diferença de preparo de saída -que não seja excessiva-, ela poderá ser compensada ao longo do curso.
A partir daí, definiram-se dois critérios de políticas compensatórias:
1) todo aluno de escola pública recebe um bônus de 30 pontos adicionais no vestibular;
2) dentro desse grupo, os que se declararem pretos, pardos ou indígenas receberão num adicional de 10 pontos. Em cursos de competição média, a nota de corte é 500. Em cursos com maior competição, como medicina, é 600. Trinta a 40 pontos fazem diferença, mas não estabelecem desníveis insuperáveis. Ou seja, não basta ser preto, pardo ou indígena: é preciso, primeiro, ser pobre.
O mais importante na medida foi ter estimulado os excluídos a se habilitar ao vestibular. Do vestibular de 2003 ao de 2005, o percentual de candidatos isentos de taxa de matrícula (com renda familiar abaixo de dois salários mínimos) aumentou de 4,4% para 13,3%; a proporção de aprovados egressos da escola pública saltou de 24,5% em 2000 para 32,8% em 2005. Do lado dos pretos, pardos e indígenas, o total de aprovados pulou de 9% em 2003 para 15,1% em 2005. A participação dos isentos foi de 1,2% em 2000 para 6,4% em 2005 -crescimento de 93%, o mais significativo de todos.
Para os cursos mais procurados, o crescimento superou a média. Na medicina, são 82,9 candidatos por vaga. Em 2004, dos 110 aprovados, 7 eram egressos da escola pública e 10 eram também pretos, pardos e indígenas. Em 2005, o primeiro grupo pulou para 29, e o segundo, para 19.
Importante: a ampliação da oferta de cursos noturnos ajudou substancialmente na colocação desses grupos, que, por falta de renda, são obrigados a trabalhar para se sustentar. Em primeira chamada, para o período integral, os alunos da escola pública representaram 17% dos aprovados em 2004 e 25% em 2005. No noturno, o índice de aprovação foi de, respectivamente, 40% e 51%.
Com o sistema de pontuação, respeitou-se a meritocracia, não se criaram resistências nos demais grupos, não se criou o estigma da cota, não houve desníveis de preparação que não pudessem ser compensados com esforço e talento.

Folha de S.Paulo - JANIO DE FREITAS:Governantes sem correção31/03/2005





Essa medida provisória que contrabandeou um aumento de impostos, conhecida por 232, é uma síntese exemplar do período que se vive no Brasil.
Visto o seu desenrolar de trás para o início, temos a atitude com que o governo do ex-operário recusou a aprovação parcial da MP, pela qual se corrigiriam as deduções do Imposto de Renda. O governo decidiu que só poderia admitir a aprovação parcial -ou seja, de algo que o próprio governo determinou por medida provisória- em troca de um aumento qualquer no imposto, para compensar a perda com a correção das deduções. A alegação é essencialmente falsa.
A correção das deduções é um ato que apenas repõe, se a correção for plena, o que está retirado dos contribuintes além do adequado. Com toda a clareza: é um ato para evitar a usurpação -praticada como "normalidade" anual por Fernando Henrique Cardoso e Pedro Malan. A correção, portanto, não impõe perda ao governo. Limita-se a dar continuidade às proporções regulares.
Se não há perda, muito menos têm cabimento as afirmações falaciosas de que, caso aprovada a correção sem algum aumento compensatório, o governo precisaria fazer "desembolso" e sofreria "hemorragia" de recursos, nas palavras do vice-líder governista Vicente Cascione, deputado integrante da bancada dita trabalhista. O próprio governo aceita e utiliza, inclusive oficialmente, a expressão "correção das deduções". E correção é o ato de corrigir algo que está errado.
Recusa de correção, seja total ou parcial, tem como resultado inevitável o aumento do Imposto de Renda, com a agravante de que, no caso dos assalariados, esse ônus lhes é aplicado sobre o salário antes mesmo de recebê-lo. Aí está retratado, portanto, um aspecto fundamental do que é, na sua natureza e não nos discursos, o governo Lula. E o que é o PT atual.
O propósito público da 232 foi estabelecer os índices da correção devida pelo governo. Nela, porém, foi introduzido um contrabando, disfarçado sob formulação arrevesada: aumento de imposto para os trabalhadores prestadores de serviço e empresas assim definidas. Para dar ao contrabando o arremate à altura, a MP foi editada com data de 31 de dezembro, sob as atenções gerais postas no Ano Bom ("com data", como está dito, porque é admissível a suspeita de que a emissão, para fins oficiais, só tenha sido em 1º de janeiro, contrariando a exigência constitucional de alteração do IR até o ano anterior à sua vigência).
O contrabando não era, pois, a única burla posta na medida assinada por Lula. Ao diminuir o excedente de certos impostos, por um lado, e aumentar outros impostos, o governo anulava a correção devida, burlava-a e aos cidadãos. Não é atitude de governo honesto e de pessoas decentemente respeitáveis. É ato que reflete um determinado tipo de índole.
O aumento de imposto provocou a bem conhecida e indignada reação dos setores sociais que têm voz. O Congresso ouviu-os, como faz quando sente que falam forte, e lá também prosperou a reação. A persistência do governo levou à iminência de sua derrota e ao clima de crise entre Congresso e governo. Logo, também a vasto noticiário e comentários incontáveis. A maior parte, valendo-se de todas as possibilidades para acusar o novo presidente da Câmara pelo sucedido. Os demais, com mínimas exceções, situando a responsabilidade, genericamente, no ato de aumento abusivo do imposto. Como se o ato não tivesse autor, como se não houvesse um responsável por ele no governo, o responsável sempre levado ao pelourinho nos atos de outras pastas.
Foi assim porque o responsável pelo aumento se chama Antonio Palocci. A classe que tem influência para levantar reação ao aumento de impostos é a mesma que está recebendo lucros de altitude e facilidade sem iguais no mundo, por obra da ação governamental de Antonio Palocci, o verdadeiro governo Lula.

Folha de S.Paulo - Diplomacia: Para espanhol, EUA querem "lulalizar" Chávez - 31/03/2005



CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

O objetivo da política norte-americana para a Venezuela, compartilhado pela Espanha, é o de "lulalizar Chávez" (o presidente venezuelano Hugo Chávez).
A cândida confissão é de Carlos Westendorp, um dos diplomatas mais experimentados da Espanha e que ocupa posto que lhe permite, em tese, fazer tal afirmação (embaixador em Washington). Foi publicada ontem em reportagem de José Manuel Calvo, correspondente do "El País" em Washington, na ampla cobertura que os meios espanhóis dedicaram à cúpula entre Chávez, Luiz Inácio Lula da Silva, José Luís Rodríguez Zapatero e Álvaro Uribe.
Westendorp não elaborou a respeito do significado de "lulalizar", mas não é difícil decifrá-lo: tratar-se-ia de conduzir Chávez às políticas internas ortodoxas, como as de Lula no Brasil, e a uma política externa mais comportada ou no mínimo a uma retórica menos incendiária, também como Lula.
É bom lembrar que o presidente brasileiro dizia, até meados de 2002, quando se elegeu, que a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) era a "anexação" do Brasil pelos EUA, retórica que Chávez não abandonou. Ao contrário: ele lançou solitariamente, exceto pelo apoio de Cuba, que não faz parte das negociações da Alca, o projeto da Alba, em que o "c" de Comércio na Alca dá lugar ao "b" de Boliviariana na Alba.
É pura retórica porque não há a mais remota chance de os demais países sul-americanos aderirem à hipotética Alba. Mas é uma retórica incômoda para os EUA.
Uma cúpula anterior, realizada em dezembro em Cusco (Peru), entre presidentes sul-americanos, pode servir de exemplo claro do que seria "lulalizar" Chávez.
Chávez chegou à cidade cobrando "uma integração sul-americana feita pelos povos, e não pelos interesses econômicos". Lula, no discurso para os presidentes, criticou a "ansiedade" de Chávez por resultados nas cúpulas.
Ao sair, Chávez deu o troco: "Ansiosos estão os que ainda não comeram nada hoje, ansiosos estão os desempregados. Eu talvez seja apenas quem lhes dê voz".
Não que Lula não pretenda, também, ser a voz dos que têm fome. Mas a diferença de tom é visível. O brasileiro é "bem comportado" enquanto o venezuelano segue como "revolucionário".
A própria reunião de anteontem serve de exemplo do que pode significar "lulalizar": o presidente brasileiro defendeu seu colega venezuelano do que chamou de "difamações" e "insinuações". É óbvio que todas as "difamações" ou "insinuações" contra Chávez têm partido de Washington, que já assumiu publicamente que está elaborando planos de "contenção" do venezuelano.
Mas, ao contrário de Chávez, Lula nunca dá nome aos responsáveis pelas acusações. Uma coisa é dizer, como Lula, que "tem muita gente falando mal de nós pelo mundo". Outra é fazer como Chávez e acusar diretamente os EUA de ter planos para assassiná-lo.
O porta-voz do Departamento de Estado americano Adam Ereli se recusou a comentar o discurso de Lula. Sobre as declarações na entrevista coletiva, Ereli afirmou que as desconhecia, mas que o Brasil e os EUA têm "aspirações comuns" para a América Latina.
Há, no entanto, um ponto em que o próprio Lula precisa ser "lulalizado": a ênfase no processo de integração sul-americana. Nesse capítulo, o brasileiro e o venezuelano coincidem integralmente.
Ambos estão dispostos a usar recursos para fazer avançar projetos de integração física e de infra-estrutura regional. O objetivo do governo Lula é o de unir a América do Sul pelo menos (e, se possível, a América Latina) como forma de acumular forças para negociar melhor com os países ricos.
Washington, ao contrário, tenta atrair cada país da América Latina para acordos bilaterais ou plurilaterais, com o que isola o Brasil.
É nesse campo, principalmente, que os dois países podem ver afetadas relações que o assessor internacional de Lula, Marco Aurélio Garcia, considera excelentes, talvez porque, na área econômico-financeira, Lula foi completamente "lulalizado".
Colaborou Fabiano Maisonnave, de Washington

quarta-feira, março 30, 2005

BliG Ricardo Noblat

Entre perder e ganhar, o governo escolhe perder

Na melhor das hipóteses, digamos que o governo anda um tanto confuso ultimamente. Bastante confuso.
Levou pelo menos três meses negociando a reforma ministerial que Lula abortou quando acordou invocado na semana passada.
E ontem orientou sua tropa na Câmara dos Deputados para derrotar a Medida Provisória (MP) 232 despachada por ele ao Congresso.
No primeiro caso, alegou que Severino desrespeitara a autoridade presidencial ao dar um prazo de 24 horas para que Lula nomeasse um ministro do PP. O aborto da reforma teria sido a resposta à altura do ato de desrespeito.
No segundo caso, admitiu que não tinha votos para aprovar a MP 232. E que seria melhor trocá-la por por um projeto de lei que desprezaria alguns dos seus ítens e resgataria outros.
Desculpas, nada mais do que desculpas esfarrapadas.
O ultimatum dado por Severino ao presidente foi o pretexto de que Lula se valeu para engavetar uma reforma que fracassou. Porque havia mais gente querendo entrar no governo do que sair. E porque faltou energia a Lula para impor sua vontade.
Convencido de que perdera a batalha pela aprovação da MP 232, o governo decidiu ajudar a sepultá-la para não parecer que a oposição vencera sozinha. De resto, ganharia tempo para substitui-la por um projeto de lei.
Ora, ou a reforma ministerial era necessária e deveria ter sido feita excluindo apenas o PP do rebelde Severino ou não era necessária - e não deveria ter sido deflagrada, poupando o governo do desgaste de dar o dito pelo não dito.
Da mesma forma, ou a MP 232 se justificava, e o governo deveria tê-la bancado até o fim mesmo para perder ou não se justificava, e o governo não deveria tê-la editado. E muito menos pensar em substitui-la por um projeto de lei.
A MP foi uma jogada esperta do governo que deu errado.
Sob pressão da opinião pública para reajustar a tabela de Imposto de Renda engessada há alguns anos e beneficiar assim cerca de 7 milhões de contribuintes, o governo concordou em fazê-lo, mas ao preço de aumentar o imposto pago por prestadores de serviços.
Quer dizer: o que daria com uma mão tomaria com a outra.
Se a MP caísse, ficaria elas por elas.
Ocorre que ela cairá - não caiu ontem por manobra do governo, mas cairá hoje ou amanhã. E a disposição da maioria dos deputados é de preservar parte da MP - justamente aquela que garante o reajuste da tabela do Imposto de Renda.
O governo obstruiu a votação ontem à noite para impedir duas vitórias da oposição em um único dia: a derrubada da parte ruim da MP (a que aumenta o imposto dos prestadores de serviços) e a manutenção da parte boa (a que reajusta a tabela do Imposto de Renda).
Não enxergou uma coisa: foi a reação da fatia mais organizada da sociedade que mandou para o lixo o aumento de imposto embutido na MP 232, e que quer preservar o reajuste da tabela do Imposto de Renda - não foi a oposição que apenas lhe emprestou a voz.
Perder para a sociedade significa ganhar com ela.
O governo está conseguindo transformar uma vitória da sociedade numa vitória da oposição - e numa vexaminosa derrota dele.
enviada por Ricardo Noblat

O GLOBO Miriam Leitão

Devolver dinheiro



O Brasil deveria dar um segundo passo e devolver parte do dinheiro do FMI, pré-pagando um empréstimo que tem juros mais altos. Essa é a sugestão do ex-diretor do Banco Central Ilan Goldfajn. As reservas cambiais, na prática, ficam maiores com o fim do acordo com o Fundo. Desaparece a divisão de reserva líquida e bruta. O país tem, ao todo, US$ 62 bilhões. O relatório de inflação divulgado ontem comprova que o BC mudou a forma de perseguir a meta.
O acordo com o FMI estabelecia uma divisão das reservas nesses dois grupos, porque os dólares emprestados pelo Fundo só poderiam ser usados com a autorização do credor. Quando o acordo acaba, some essa divisão e as reservas disponíveis aumentam.


Ilan Goldfajn, ex-diretor do Banco Central e sócio da Gávea Investimentos, já foi funcionário do FMI. Ele explica que nem todo dinheiro do Fundo é barato. Uma parte do empréstimo concedido ao Brasil foi dentro do programa emergencial, o SRF (Supplemental Reserve Facility). E esse é um dinheiro mais caro:

— Acho que o Brasil deveria pré-pagar essa parte da dívida. Ela é cara e não está nos fazendo falta. Há reservas suficientes. A vantagem é que se economiza com juros; e não é pouca coisa. O governo deveria fazer as contas e quitar este empréstimo. Vai melhorar a relação dívida/exportação e a percepção de risco.

O Fundo continuará vindo, avisa Ilan. Não apenas a visita anual que todo sócio do FMI recebe. Continuará aparecendo a cada três meses, mesmo sem o acordo, porque esta é a rotina em países que têm empréstimo a pagar.

O relatório de inflação confirma a interpretação de que o BC mudou a forma de perseguir a meta, alongando o horizonte para prazos maiores do que o ano calendário. Nesse balanço sobre a situação da economia que o Banco divulga a cada três meses, está repetido o que foi publicado na última ata de inflação: em intervalos maiores, como 12,15 e 18 meses, o país está com projeção de inflação até abaixo da meta. Confira no gráfico publicado no relatório. Nele, o BC mostra que vê a inflação como um processo ao longo do tempo, e não apenas como uma meta para dezembro. No texto, o Banco Central diz que seu modelo projeta uma inflação de 5,5% este ano, acima da meta, mas abaixo das previsões de mercado. Para o ano que vem, o modelo do BC prevê uma queda mais forte, chegando ao fim de 2006 em 3,8%.

— O gráfico mostra uma meta contínua. Na nossa época, olhávamos assim, sem ficarmos presos ao ano calendário, mesmo que isso não fosse explicitado na comunicação. Mas a meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional é para cada ano em separado. A mudança que houve agora foi de ênfase. O Banco Central não abandonou o 5,1% para este ano, apenas está dando ênfase à trajetória que mostra que, no ano que vem, está claramente convergindo para o centro e depois ficando até abaixo — disse Ilan Goldfajn.

Em outros países que usam metas de inflação, não se fixa meta para ano calendário. Até porque o importante é a trajetória, a tendência dos preços.

No resto do relatório, o Banco Central faz uma análise otimista em relação à economia: diz que o país continua crescendo, mas num ritmo mais compatível com a manutenção da inflação sob controle. Lembra que sua preocupação anteriormente era com a velocidade de ampliação da oferta para atender à demanda. Constata que houve investimento forte no ano passado, o maior desde 1994. Isso significa que haverá o aumento da oferta de produtos. O relatório reforça a impressão de que os juros vão parar de subir, mas o BC alerta, de novo, que tudo vai depender das condições da economia internacional. E, para garantir um mundo mais tranqüilo, temos que combinar com os russos; aliás, com os americanos e os chineses.

Jornal O Globo - Merval Pereira :O dia da caça

O Presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, teve ontem um dia de euforia: desabafou com um longo improviso por escrito, lido com dificuldades, e foi o principal responsável pela derrota da medida provisória que classificou de propósito de "a do aumento dos impostos". Mas Severino perdeu uma grande chance de tentar se recolocar diante da opinião pública ao não aceitar a proposta do presidente do PPS, deputado Roberto Freire, que queria que o plenário decidisse sobre o aumento dos salários dos gabinetes dos deputados.

Seria uma oportunidade de tentar convencer a sociedade de que o aumento não foi feito para compensar o reajuste dos subsídios dos deputados, e passar a responsabilidade para a totalidade dos deputados. O cientista político Fabiano Santos, do Iuperj, por exemplo, tem uma visão bastante positiva de alguns dos movimentos atuais da Câmara.

Ele classifica a eleição de Severino Cavalcanti como conseqüência de um anseio dos parlamentares por melhores condições do exercício do mandato, o que inclui não apenas condições para que tenham maior visibilidade, como principalmente para que o Legislativo se imponha no processo político.

Para isso, os deputados e senadores têm que ter melhor estrutura, melhor assessoria. Investir na instituição, colocar dinheiro público nela, é importante para o processo democrático, defende Santos. Esses aspectos deveriam estar mais presentes no debate atual, diz Fabiano Santos.

Do ponto de vista político, porém, Santos acha que Severino não vocaliza a opinião dos grandes centros, e nesse caso a atuação contra a medida provisória é uma maneira que ele encontrou de se afinar com os formadores de opinião que estão fora de seu raio de ação.

O governo, derrotado ontem de maneira dramática, ultimamente se dedica a jogar fora a água do banho com o bebê junto. Quando o presidente Lula, justamente irritado com a audaciosa postura do presidente da Câmara de pressionar publicamente pela nomeação de um seu protegido, decidiu mostrar quem manda, escolheu o pior dos caminhos: não fazer a reforma, quando o correto seria ignorar as pressões indevidas de Severino Cavalcanti e deixar o PP de fora da reforma.

Ontem, orientou o PT e seus aliados, de maneira esdrúxula, a votarem contra a medida provisória 232, e acabou anulando não apenas o aumento de imposto dos profissionais liberais, como também o reajuste da tabela do imposto de renda, que já estava em vigor.

Se a reforma ministerial era necessária para melhorar a qualidade do ministério - e esse é um ponto em que existe praticamente unanimidade -, o presidente Lula não poderia deixar de fazê-la. No entanto, a maneira como estava sendo encaminhada a negociação da reforma ministerial fez com que as soluções que estavam sendo discutidas não levassem em consideração a qualidade técnica dos eventuais escolhidos, mas apenas os interesses políticos dos partidos.

Não fosse assim, não haveria espaço para que Severino tentasse impor um protegido completamente desqualificado para o cargo de ministro das Comunicações. E nem haveria político cogitado ao mesmo tempo para ministérios totalmente diferentes, como foi o caso da senadora Roseana Sarney, sondada tanto para a Coordenação Política como para o Ministério das Cidades, Integração Social e até mesmo Planejamento. O que demonstra que o importante para o governo não era encontrar um bom nome para esses ministérios, mas um lugar no governo para a filha do senador José Sarney, que domina uma parte ponderável do PMDB, partido que passou a ser fundamental para o projeto do governo de reeleição do presidente Lula.

Assim também o ministro da Saúde, Humberto Costa, saiu da frigideira em que o jogaram meses a fio para transformar-se em exemplo de ministro na boca do presidente Lula, que com essa declaração deixou claro que não está interessado em ter ministros competentes, mas apenas em fazer política. Diante da intervenção na saúde da cidade do Rio, Humberto Costa, ganhou relevância política, mas continuou com as mesmas deficiências.

Ontem, mais uma vez o governo adotou a postura de negar integralmente uma proposta sua, enviada ao Congresso por medida provisória, teoricamente tratando de medida urgente. A MP 232, que reajustou a tabela do desconto de Imposto de Renda, atendia a um anseio da opinião pública e fazia parte de uma ação do governo de se aproximar da classe média, soterrada pela alta carga tributária em vigor.

Por uma esperteza dos técnicos da Receita Federal, foi incluído sorrateiramente na medida provisória um aumento da tributação dos profissionais liberais, oficialmente para tornar "mais justa" a cobrança de impostos, na prática para compensar a perda de arrecadação que o reajuste da tabela do imposto de renda provocará.

O governo brigou até o último momento para tentar conseguir apoio de sua base aliada no Congresso, mas não conseguiu nem mesmo o apoio do PT, o partido oficial. O aumento da carga tributária é uma medida tão impopular que o governo foi obrigado a "ceder à pressão da opinião pública", como ressalvou um eufórico presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, e desistiu de aprová-lo. Se já irritara a classe média e os profissionais liberais com a tentativa de aumentar a cobrança de impostos, o governo agora irrita mais ainda ao colocar em perigo o reajuste da tabela do Imposto de Renda, que já estava em vigor.

O DIA Online-Dora Kramer: Suspeitos em tempo integral


Escolhido relator de uma Comissão Parlamentar de Inquérito especialmente complicada, a da privatização do setor elétrico, o deputado Luiz Carlos Santos (PFL-SP) aproveitará o ensejo da instalação (ainda sem data definida) para convidar os colegas de Parlamento a um esforço concentrado e coletivo no sentido de darem um pouco de lustro à própria imagem.

A primeira coisa a fazer é parar de fingir que estamos numa situação normal, que as comissões parlamentares de inquérito são percebidas da mesma maneira de antes pela população, que podemos iniciar qualquer processo de investigação sem antes encararmos o fato de que, hoje, somos os suspeitos número um e em tempo integral. A instituição está no fundo do poço”, diz o deputado.

No tocante às comissões de inquérito, o processo de desqualificação vem de há algum tempo e culminou com o vexaminoso fim da CPI do Banestado, onde houve de tudo: brigas políticas, tentativas de achaques, produção de mecanismos de suposta investigação com objetivo real de servir a chantagens de várias naturezas, quebras de sigilos indiscriminadas, convocações de pessoas alheias ao objeto da comissão e uma série de distorções.

Tudo isso resultou na mais completa impunidade por absoluta ausência de condições de se distinguirem mocinhos e bandidos. Ficaram todos nivelados por baixo, ganhando, evidentemente, quem de fato tinha culpa no cartório.

Mas qual a relação da CPI da privatização do setor elétrico com a desmoralização crescente dos políticos e a providência proposta por Luiz Carlos Santos ?

Como o instituto da comissão parlamentar de inquérito vem sofrendo o desgaste junto com o Poder Legislativo como um todo, a idéia seria utilizar agora exatamente o mesmo instrumento para iniciar um caminho em direção à recuperação da imagem perdida – ou nunca conquistada.

Como? Fazendo uma investigação bem feita, sem partidarização nem abertura de espaço para movimentações de múltiplos e escusos sentidos.

Na opinião de Luiz Carlos Santos, são tantos os interesses envolvidos numa CPI como a do setor elétrico que, se seus integrantes não tomarem a iniciativa de admitir que existe suspeição sobre ela, terminam eles mesmos sob suspeição.

“É preciso expor a realidade e não ficar fazendo de conta que a péssima imagem dos políticos é produto de mera ficção ou má vontade”. O deputado cita o exemplo de recente novela de televisão em que havia cinco personagens masculinos de destaque, três deles políticos: um prefeito, um deputado e um senador. Os outros dois eram um jornalista e um bicheiro aposentado.

“O jornalista era um herói, o bicheiro terminou com a mocinha e os políticos eram todos vigaristas quando não também assassinos. Ora, o autor não criou isso do nada nem me parece que tenha havido reação de estranheza na sociedade”, argumenta.

A CPI do setor elétrico, cuja investigação abrangerá o período do Governo Fernando Henrique Cardoso é, na visão generalizada dentro do Parlamento, especialmente delicada.

Se mal conduzida – ou conduzida para o mal – pode perfeitamente se prestar às mesmas deformações ocorridas com a comissão de inquérito instalada para apurar operações financeiras ilegais feitas através do Banestado.

Redução ilimitada

Vaidoso, o deputado Luiz Carlos Santos admite: revela qualquer segredo na vida, mas não confessa a idade. Ao cardiologista, por exemplo, o deputado subtrai 10 anos.Aos seres em geral, aposta na redução ilimitada.

Outra dia um repórter telefonou querendo saber, “afinal de contas”, qual era a idade dele, porque no arquivo do jornal havia cinco registros diferentes.

“É a mais baixa, meu filho”, optou, sem falar em algarismos.

Preparação

A direção do PMDB vai sentar com os recém-demitidos Amir Lando, do Ministério da Previdência, e Carlos Bezerra, da presidência do INSS, para uma conversa séria a respeito da posição de ambos no tocante aos projetos eleitorais do Governo federal.

Por “direção” aí entenda-se a cúpula partidária alinhada com a oposição e atualmente em fase de inauguração de um novo tipo de relação com o Palácio do Planalto – uma coisa assim meio cada um com seu cada qual porque o futuro a Deus pertence.

O senador Lando e o ex-senador Bezerra interessam sobremaneira ao grupo – cuja tese predileta por ora é a da candidatura pemedebista própria para a Presidência da República – pelo poder de influência dos dois nos respectivos estados.

Amir Lando controla o diretório de Rondônia, e Carlos Bezerra dá cartas na regional do PMDB em Mato Grosso. A expectativa é a de que a demissão lhes tenha semeado fel às almas.

A decisão sobre o apoio ou não a Lula será tomada em junho de 2006 numa convenção em que os partidários da reeleição precisarão obrigatoriamente de dois terços dos votos dos delegados para mudar a resolução, tomada em dezembro, a favor da candidatura própria.

Os oposicionistas – se na oposição continuarem, é claro – vão precisar de menos votos, mas não poderão dispensar forças, para manter as coisas como estão.

Folha de S.Paulo - Editoriais: VITÓRIA DA SOCIEDADE - 30/03/2005

Em mais um caso no qual a arrogância e a insensibilidade política acabaram por derrotá-lo, o governo se viu compelido a abandonar a famigerada medida provisória 232. Diante do amplo e inequívoco repúdio que despertou, a MP, naquilo que continha de nocivo ao contribuinte, já deveria ter sido reformulada.
No entanto, atropelando o bom senso e as evidências de que não haveria ambiente para a aprovação, o ministro da Fazenda, Antonio Palocci Filho, preferiu insistir na proposta, articulando-se com congressistas na tentativa de edulcorar a indigesta investida contra os contribuintes.
O esforço foi em vão. As mudanças podem ter tornado a MP mais palatável, mas não alteraram o intuito original de aumentar a tributação -algo intolerável para uma sociedade que, submetida a elevada carga de impostos, não recebe, sob a forma de investimentos e serviços eficientes, a contrapartida dos recursos que transfere ao Estado.
A MP 232 deveria simplesmente implementar uma correção das faixas de rendimento sobre as quais incide o Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Tratava-se de beneficiar o imenso contingente de trabalhadores assalariados que, desde o governo Fernando Henrique Cardoso, vinham pleiteando um ajuste proporcional à inflação dos valores sobre os quais se aplicam as diversas alíquotas desse imposto.
Desde 1996, houve apenas uma correção, em 2002, de 17,5%. Para acompanhar toda a inflação, o novo ajuste teria de ser superior a 50%. O governo aceitou conceder 10%.
A boa notícia, porém, foi obscurecida pela sorrateira introdução na MP de dispositivos que aumentavam impostos de outros setores, notadamente as empresas prestadoras de serviço -que já haviam sido atingidas, em 2003, por uma elevação de 12% para 32% da base sobre a qual se calcula o seu IR.
É de esperar que os clamores da sociedade sejam ouvidos e que se mantenha para este ano a proposta de correção das faixas do IRPF. Quanto à compensação das "perdas" que tal reajuste imporia aos cofres públicos, há maneiras mais produtivas de promovê-la, como, por exemplo, cortar despesas e aumentar a eficiência da máquina pública.

Folha de S.Paulo - Editoriais: SHARON AVANÇA - 30/03/2005

Se há alguém que realmente deixou a esquerda perplexa e a direita indignada, essa pessoa é o primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. O general de linha dura antes execrado pela centro-esquerda israelense hoje não apenas arranca elogios dos antigos adversários como governa com o seu apoio. Quem lhe faz a oposição mais ferrenha são seus próprios companheiros de partido, o Likud, que está rachado.
Antes tido como um campeão da direita e grande incentivador dos assentamentos judaicos em territórios palestinos, Sharon é hoje visto como um traidor pelos colonos ultra-ortodoxos, que pedem a sua cabeça e ameaçam deflagrar uma guerra civil se o premiê levar em frente seu plano de retirada de Gaza.
Foi justamente o projeto de devolver Gaza aos palestinos que caracterizou a guinada de Sharon, com a ruptura de suas antigas alianças e a criação de novas. É claro que esse processo não se deu sem sobressaltos. Nesta semana, porém, o premiê obteve duas importantíssimas vitórias sobre os que ainda tentavam frustrar os seus intentos.
Na segunda-feira, o Knesset (Parlamento) rejeitou a proposta de submeter a retirada de Gaza a referendo popular. Essa era uma medida meramente protelatória, pois a esmagadora maioria dos israelenses é favorável a esse plano. Mais importante, ontem o governo conseguiu finalmente aprovar a lei orçamentária de 2005. Era essa a frente em que a oposição a Sharon vinha apostando. Se a peça não fosse votada até o dia 31, o gabinete seria automaticamente dissolvido, o que teria implicado pelo menos um atraso na implementação da saída de Gaza.
Espera-se agora que Sharon, fortalecido pela vitória, consiga abandonar Gaza o mais rapidamente possível e ao menor custo político. Gaza é apenas um primeiro passo -e o menos complicado- na complexa negociação de paz com os palestinos.

Folha de S.Paulo - - Clóvis Rossi: 50 anos no Terceiro Mundo - 30/03/2005

MADRI - Estamos comemorando o cinqüentenário do Terceiro Mundo, expressão cunhada originalmente por pesquisadores franceses em 1952, mas consolidada em 1995, na 1ª Conferência de Solidariedade Afro-Asiática, em Bandung, na Indonésia.
O lembrete vem de um extraordinário brasilianista, Ignacy Sachs, diretor do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais. Está no número mais recente da "Desafios do Desenvolvimento", excelente revista mensal editada em conjunto pelo Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Não há, a rigor, o que comemorar nesse cinqüentenário. Para começar, Terceiro Mundo é expressão fora de moda pela simples e boa razão de que acabou o "segundo mundo" (o mundo comunista). Sobraram uma dúzia de países ricos e o resto.
No caso do Brasil, que faz parte do "resto", em vez de comemorar, o que se deve é lastimar o fato de que não fomos capazes de sair do subdesenvolvimento, ao contrário do que se buscava com a Conferência de Bandung, que "deu grande impulso à problemática do desenvolvimento", como escreve Sachs.
O brasilianista resume desenvolvimento como "a universalização efetiva dos direitos políticos, cívicos e civis, econômicos, sociais, culturais, ambientais e tanto outros. E que a inclusão social pelo trabalho deve ser preferida, sempre que possível, às políticas sociais compensatórias".
Para ser justo, é fato que o Brasil avançou em matéria de direitos políticos, cívicos e civis. Mas não creio que haja alguém, a não ser um cínico, capaz de dizer que todos os direitos do parágrafo anterior foram "universalizados" ou que a inclusão social está sendo feita pelo trabalho, e não pelos "sopões", nome vulgar de políticas sociais compensatórias.
Nessas circunstâncias, é melhor deixar mesmo passar em branco os 50 anos do Terceiro Mundo, já que não conseguimos sair dele.

Folha de S.Paulo -Fernando Rodrigues: Fisiologia - 30/03/2005

BRASÍLIA - Um sujeito andava outro dia pelos salões do Congresso prometendo uma mesada de R$ 2 milhões para a bancada de deputados que conseguisse indicá-lo para a diretoria de uma grande empresa estatal. Essa pessoa quer roubar. Seu nome está em uma lista que repousa dentro do Planalto. Não se sabe o que Lula fará, mas alguns deputados dão a nomeação como certa. O fato é que vários partidos estão finalmente recebendo o seu quinhão dentro do governo. Ninguém sabe ao certo quantos cargos federais de confiança e de alguma importância existem. A conta mais conservadora é que são, pelo menos, umas 2.000 posições. O loteamento dessas vagas será usado agora para garantir as alianças da reeleição de Lula em 2006. Na semana passada, ao saber que uma listinha de nomes do PTB estava parada nos escaninhos da Casa Civil, o próprio Lula mandou consumar as nomeações. As posições cobiçadas pelos petebistas são de locais como Petroquisa, Furnas, BR Distribuidora, Correios, Caixa Econômica Federal, Itaipu e Anvisa. O PTB é comandado pelo ex-collorido Roberto Jefferson, hoje pró-Lula. Como se sabe, trata-se de partido historicamente conhecido por ter quadros administrativos altamente qualificados. A agremiação deseja apenas contribuir para melhorar a capacidade gerencial da administração lulista. Está quase lá. Essa é a mesma intenção nobre de outras siglas. PL, PMDB, PP e outros só querem ajudar Lula a fazer um governo mais eficaz. Por essa razão, pedem cargos. O presidente parece cada vez mais sensível a esses apelos. O eufemismo chapa-branca é que Lula entrou na articulação política (sic). No fundo, está abrindo de uma vez o resto da porteira para o fisiologismo. Não deixa de ser uma maneira de romper com o imobilismo do qual alguns acusam o governo.


Lula adotou a auto-ajuda. Anteontem disse: "Se você pensa positivo, as coisas serão positivas". Tenha dó.

Folha de S.Paulo - Gilberto Dimenstein: Os párias de São Paulo - 30/03/2005



Na sua primeira viagem à Índia, em 2001, o engenheiro José Vidal ficou especialmente impressionado com os párias, a categoria mais desprezada no sistema de castas, desprovida de direitos políticos e religiosos. Os párias nem sequer podem andar de cabeça erguida; na maioria das vezes, estão agachados, maltrapilhos. "Nunca tinha visto antes seres humanos com aspecto tão animalesco."
Aquelas imagens de humilhação inspiraram um dos mais sofisticados projetos para a cidade de São Paulo hoje em discussão: transformar a "cracolândia" num pólo de tecnologia da informação. Essa inspiração deve-se a uma caminhada de Vidal pela região, onde viu crianças e adolescentes usando crack. "Novamente vi seres humanos com jeito de animais."
Vidal já estava na direção do ITS (Instituto de Tecnologia de Software de São Paulo) e conhecia experiências de recuperação de áreas urbanas com a criação de pólos de tecnologia: Barcelona, Montréal ou Recife, por exemplo. Redigiu um plano tirando proveito do fato de que a rua Santa Ifigênia, centro de produtos eletroeletrônicos, fica no coração da "cracolândia". Prédios degradados passariam, depois de reformados, a abrigar programas de formação profissional, escolas de informática e centros de pesquisa, incubadoras para a produção de software e hardware.
Por causa de sua complexidade, a proposta parecia condenada a ser tão abandonada como os párias da Índia. Nas últimas semanas, porém, parece ter sido recuperada graças a uma confluência de forças. Para tirar a droga do bairro, a prefeitura quer atrair empreendimentos para a "cracolândia". Sabendo disso, o deputado federal Júlio Seneguini, ex-presidente do ITS e ex-dirigente da Prodesp (a empresa de processamento de dados do Estado de São Paulo), levou o projeto de criação do pólo a José Serra, que gostou da idéia e mandou analisar sua viabilidade. A poucas quadras dali, a movimentação entusiasmou a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo, onde existe um grupo que reúne universidades, empresas e centros de pesquisa voltados para o estímulo à fabricação de produtos de informática.
Talvez a idéia nem saia do papel, mas já não é encarada como algo tão exótico como os párias hindus, que jamais imaginariam, na sua barbárie cultural, virar fonte de inspiração tecnológica.

Folha de S.Paulo - Luís Nassif: O FMI que se vai - 30/03/2005

O FMI (Fundo Monetário Internacional) que deixa o Brasil, agora, é totalmente diferente do FMI que ajudou a afundar toda a América do Sul e parte da Ásia, com uma tecnocracia vergonhosamente comprometida com a banca internacional.
Nas análises de investimento, rentabilidade está associada a risco. Quanto maior o risco, maior a rentabilidade, e vice-versa. Junte-se a terceira perna -a liquidez- e se terá o tripé em torno do qual se montam as carteiras de investimento.
Durante esses anos todos, o Brasil conseguiu ser o paraíso da especulação, oferecendo ao mesmo tempo rentabilidade, liquidez e baixo risco.
A rentabilidade foi assegurada em julho de 1994, com a apreciação do real. O Brasil de julho de 1994 não era país de alto risco, posto que com contas externas em ordem. O Brasil de dezembro de 1994 já tinha que pagar juros astronômicos porque a apreciação do câmbio criou um enorme déficit nas contas correntes.
Depois, assegurou-se a liquidez, à custa desse discurso ideológico primário, de que o livre fluxo de capitais especulativos era precondição para o capital de investimento.
Finalmente, a terceira perna -o risco- foi minimizada por meio de dois expedientes. O primeiro, prolongar ao máximo possível o período de agonia econômica para preservar os juros altos.
Suponha um título do Tesouro norte-americano que pague 3% ao ano; e títulos de países emergentes pagando 25% ao ano. Ao final do terceiro ano, o que o investidor conseguiu receber de juros do emergente cobriria 87% do saldo da aplicação no título norte-americano. Se levasse um deságio de 70% na testa, ainda assim teria ganhado 17% a mais do que aplicando no seu país.
Isso se deu por meio da criação sucessiva de falsas expectativas. O país afundava, exigia-se mais um pacote aqui, outra lição de casa ali. Tudo sem muita sofisticação.
Neste país de botocudos, em se plantando, tudo dá. Até a máxima de Mailson de que "primeiro precisa piorar para depois melhorar". Nem depois do desastre se aprendeu que, quando uma situação piora, a tendência é piorar, a não ser que se combatam as causas da piora.
Mas sempre chega a hora da verdade, quando os investidores percebem que não há mais como prosseguir com o jogo e começam a sair. A corrida provoca uma desvalorização da moeda local e uma perda para os investidores externos.
Nesse momento, o FMI entrava com um empréstimo-ponte, para garantir a saída tranqüila -e sem prejuízo- dos investidores internacionais. Foi assim com a ajuda ao Brasil em fins de 1998. Todo o dinheiro que entrou -e que se tornou dívida do país- serviu para impedir o prejuízo dos especuladores.
O jogo acabou quando George W. Bush indicou Paul O'Neill para secretário do Tesouro e este anunciou que, dali para a frente, nunca mais o FMI seria utilizado para minimizar risco da banca privada.
É justamente por isso que foram mínimas as reações do governo norte-americano e do FMI contra a reestruturação da dívida da Argentina.
O jogo já tinha mudado. Mas parte relevante dos analistas -os "politicamente corretos" da planilha- não tinha sido informada.

Folha de S.Paulo - Paulo Rabello de Castro: A (im)previdência social brasileira - 30/03/2005


O recente anúncio de déficit recorde, de R$ 38 bilhões, no resultado previsto do INSS em 2005, feito pelo novo ministro-gerente à testa do setor, senador Romero Jucá, que chegou anunciando novos cortes e ajustes de cálculo de benefícios, oferece-nos uma medida do desafio de consertar o sistema de seguridade pública, se é que conserto ainda existe. O tamanho do déficit, o discurso do ministro e a crescente desconfiança dos participantes do sistema previdenciário contrastam vivamente com as iniciativas precedentes. Há dez anos (1995), o governo FHC encaminhava, com toda pompa, ao Congresso Nacional, seu projeto de reforma previdenciária. A grande proposta reformista bateu na trave. Não ia ao âmago dos desequilíbrios e, depois de torpedeada por todos os lados, acabou se tornando o primeiro dos remendos que vieram em seguida: apenas mais um mecanismo legal de amputação de benefícios, muitos deles, de fato, aberrantes, como as aposentadorias precoces "por tempo de serviço", e outros, nem tanto. Depois, veio o chamado fator previdenciário, novo método de acesso às aposentadorias, que retardou a precocidade na concessão do benefício, em 1999. Em 2003, nova reforma, desta vez na previdência dos regimes especiais, dos servidores públicos.
Um elo une e relaciona cada uma dessas "reformas". Esse elo, comum a todas as tentativas, é o da provisoriedade e da precariedade, a mãe bicéfala da descrença do participante da Previdência Social. Previdência imprevidente é o que temos no Brasil. Imprevidente porque não enxerga um palmo à frente do próprio nariz. Se enxergasse, não haveria dificuldade de prever o desastre que o saudoso Francisco Oliveira, o "Chico Previdência", vivia prognosticando em qualquer seminário ou painel sobre o tema da Previdência no Brasil.
Em 1982, portanto há quase um quarto de século, pedi a Chico que aprontasse um documento propositivo sobre aquilo que chamamos de "tríplice renegociação da dívida brasileira", a externa, a interna e a social. Chico trataria dessa última, propondo equacionamento dos problemas do então INPS e dos regimes especiais, o que ele concluiu prontamente com a extraordinária clareza dos seus diagnósticos demográfico, social, contributivo e redistributivo de ambos os regimes previdenciários. Óbvio que nossa proposta, primeiro encaminhada ao confuso governo de João Figueiredo, não deu em nada. O quadro previdenciário complexo e difícil de 1982 foi acentuado pelo viés assistencialista da Carta de 88, que inseriu benefícios aos milhões, sem contribuição prévia, confundindo assim Previdência com assistência social.
Nem por isso deixamos de trabalhar duro, com alguns esforços coletivos feitos, entre outros, por grupos de trabalho na Abrapp (Associação Brasileira das Entidades Fechadas de Previdência Complementar), na Fiesp, no Instituto Atlântico, esses sob a liderança de Eduardo Mascarenhas, cuja morte prematura possa, talvez, ser também atribuída a seu total desapontamento com a insensibilidade do Brasil oficial à questão previdenciária. Por isso, quem quer que acompanha, há várias décadas, a degradação do conceito de Previdência no Brasil ganha o direito de espumar de indignação com mais um pacote de ocasião sobre tema que mexe com a vida (e a morte) de tantos milhões de brasileiros.
A ausência de um plano atuarial previdenciário é tão evidente quanto chocante. De um governo de trabalhadores se esperaria atenção e estudos muito mais pormenorizados, pois a Previdência bem organizada está na base de qualquer crescimento sustentado no capitalismo moderno.
A propósito, nem mesmo a Lei de Responsabilidade Fiscal foi cumprida nesse particular, pois previa a organização de um fundo previdenciário, até hoje letra morta.
O país caminha mansamente para o maior engodo de todos os tempos: o pecúlio previdenciário nas mãos do poder público. Esse quadro patibular não é, aliás, privilégio do Brasil. Até o insensível Bush está querendo reformar a Previdência americana, que projeta problemas a partir de 2037. Aqui, não precisamos projetar nada. A corda já está no nosso pescoço.
Urge uma lei de responsabilidade previdenciária, proposta -quem sabe- capaz de lançar alguma luz num tema tão candente quanto obscuro.

Primeira Leitura- De bodes exultórios e bodes expiatórios


Quem diria, o presidente da Câmara lembrou ao governo Lula que “a autonomia da Câmara fará bem à democracia”; é lembrança mais construtiva do que a patranha armada por palacianos que debita uma conta fictícia de R$ 30 bi nas costas de Severino

Por Rui Nogueira


O processo é visível na mídia e vai agora, com a derrota da Medida Provisória 232, tornar-se ainda mais visível. Há uma clara campanha de satanização do Congresso Nacional tomando a figura e os atos do presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), como alvo exemplar.

Os sopradores palacianos espalhados pelo Planalto e pela Esplanada dos Ministérios transformaram Severino em fonte de todos os males e problemas do governo Lula. Prestam um desserviço ao país ao se porem a serviço de uma causa áulica. Trata-se, explicitamente, de um jogo em que o governo se apresenta como bode exultório, já que a mídia serve Severino como bode expiatório, e o Congresso, como exemplo de desordem.

Enveredar por esse primarismo não deixa ver que o Executivo não é exemplo de ordem e que o Congresso, a rigor, nunca atrapalhou os planos do Planalto. Ao contrário, pois tem oferecido saídas para os imbróglios em que o governo se mete. Está aí a derrubada da MP 232 como saída política ordeira para uma desordem criada pelo Executivo.

Severino e os seus gastos contabilizados na conta dos bilhões – a maioria fictícios ou debitados em projeções para um futuro incerto – serviram para fazer esquecer os gastos do Executivo. Não se está aqui a esquecer a tentativa de Severino aumentar os salários dos deputados, não se está aqui a esquecer a defesa do nepotismo feita pelo presidente da Câmara. Estamos aqui a dizer que o governo Lula precisa culpar alguém pela sua desordem, e o Congresso foi para o sacrifício.

É bom que parte da mídia não compre fontes no poder fazendo contas com números que não existem. E é isso que mostra a opção pela satanização explícita do Congresso. São tão gritantemente espúrios esses números, que Severino os rebateu nesta terça-feira com a candura de um anjo político. Ninguém, do governo ousou apresentar contra-argumentação.

Severino é canhestro dirigindo as sessões, não conhece minimamente o regimento da Casa e precisa de um auxiliar que fique o tempo todo lhe dizendo, ao ouvido, a quem dar ou não a voz. Mas Severino foi posto lá pela articulação política PT-Planalto e não pode carregar nas costas a mentira de que, em um mês de gestão à frente da Câmara, “aprovou” projetos que podem abrir um rombo de “R$ 30 bilhões” nas contas públicas. Essa conta é uma ignomínia.

A decisão política de não renovar o acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), tomada para tentar facilitar o discurso eleitoral em 2006, tem a ver com esse discurso que tomou Severino para Cristo de uma suposta gastança pública. Destacou-se a tropa de choque fiscalista do governo para ir preparando os espíritos e avisar que a manutenção do arrocho fiscal continuaria na ordem do dia depois do adeus ao FMI. Que assim seja, mas que se assuma a decisão.

O espantalho dos R$ 30 bilhões espetados nas costas de Severino é parte desse momento. Façamos as contas e rememoremos os fatos: 1) o aumento dos salários dos parlamentares foi barrado – ainda bem; 2) o aumento da verba de gabinetes, que custará em torno de R$ 93 milhões/ano, era um projeto definido na administração do deputado João Paulo Cunha (PT-SP), ex-presidente da Casa, e que foi votado na administração Severino; os R$ 550 milhões de gasto gerado pela PEC Paralela da Previdência foram relatados pelo petista José Pimentel (CE) e votados em segundo turno, porque o primeiro turno havia sido aprovado na gestão João Paulo; os R$ 26 bilhões de gasto extra que a mudança na Loas (Lei Orgânica da Assistência Social) poderia provocar são uma hipótese que está na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara. Um desplante, portanto, a conta dos R$ 30 bilhões.

O governo, claro, exulta com essa conta debitada a Severino. É uma farsa, mas soa como bálsamo para o desastre político da reforma ministerial. Funciona, enfim, para não deixar ver o lado virtuoso de Severino, que, até o momento, suplanta, e muito, o populismo visceral em que ele nasceu e se criou como político e pode ser resumido na frase dita nesta terça, em discurso no plenário: “A autonomia da Câmara fará bem à democracia”.

Sim, essa autonomia incomoda o Planalto. Quem diria que o governo Lula, o governo do PT, um dia ouviria essa frase da boca de Severino Cavalcanti.

terça-feira, março 29, 2005

no mínimo- Augusto Nunes:A gastança viaja no trem da anistia



28.03.2005 | A Receita Federal vem estabelecendo, quase todos os meses, recordes notáveis na arrecadação de impostos, tributos, taxas e outros penduricalhos. A obesidade começa a tornar-se obscena. Mas o processo de engorda promete ganhar mais velocidade, porque o mamute federal é empresa que não gera lucro, só despesas. Quem paga a conta (todas as contas) é o povo, sobretudo a indefesa classe média.

A gastança corre solta, rombos e ralos se multiplicam por todos os cantos administrados pela União. Todos os dias, relatos dando conta de desperdícios escabrosos consomem páginas de jornais, pencas de minutos nos noticiários do rádio ou da TV. E a tudo assistimos bestificados, inermes. Não provocaram reações de espanto visíveis, por exemplo, recentes reportagens da “Folha de S. Paulo” sobre a interminável orgia organizada pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Desta vez os protagonistas do escândalo são ex-funcionários da Petrobrás, embora não custe reiterar que indenizações milionárias se têm espalhado por todas as áreas. Só o jornalista Dirceu de Castro, personagem da novela “Senhora do Destino”, negou-se a encarnar o papel de vítima de perseguições políticas para tomar dinheiro da Viúva. Ficcionistas da TV são muito inventivos. Na vida real, o assalto coletivo prossegue no ritmo animado de sempre.

Voltemos às revelações arroladas pela “Folha”. Somados ex-servidores públicos e empregados de empresas privadas, foram indenizados até fevereiro 3.823 filhos da sorte. Desse lote fazem parte 344 petroleiros. A indenização média ficou perto de R$ 313 mil, fora a dinheirama anexada por espertezas jurídicas. Como a comissão age nas sombras (seguindo a metodologia dos porões da ditadura), é difícil o acesso à papelada. Mas alguns números e casos bastam para montar-se o resumo da ópera absurda.

Foram comprovados 29 casos de pagamentos retroativos superiores a R$ 1 milhão. Nesse grupo abençoado figuram 18 “ex-petroleiros”. Os próprios premiados admitem que a coisa ultrapassou os limites da razão. “Se o governo pagar com mais rapidez, os valores podem ser reduzidos”, diz Antônio Fontes, vice-presidente da Associação Nacional dos Anistiados da Petrobrás, a Conape. “Poderíamos chegar a um acerto bem menor do que se propõe. Não queremos criar rombos.” Outros tratam de ampliar sem constrangimentos o tamanho do buraco.

Os cálculos das indenizações são feitos pela própria Petrobrás. Na Comissão de Anistia, quem acompanha os pleitos é o ex-petroleiro Luiz Carlos Natal, ele próprio contemplado com cerca de R$ 1 milhão. Hoje na chefia do gabinete do deputado (e advogado de anistiados) Luiz Eduardo Greenhalgh, Natal recusou tratar do assunto com repórteres da “Folha”, alegando “problemas de saúde”. Problemas financeiros, esses decididamente não tem.

A farra da anistia tem distribuído boladas à esquerda e à direita. A lista de beneficiários inclui pelo menos dois nomes surpreendentes: o executivo Frederico Birchal de Magalhães Gomes, 64 anos, e o economista Fernando Talma Sarmento Sampaio, 66, ambos demitidos da Petrobrás quando ainda jovens. Apesar desse tropeço, conseguiram construir um bonito currículo a serviço da nação.

Entre 1967 e 1969, no governo do general Arthur da Costa e Silva, Magalhães Gomes trabalhou nos planos de expansão da rede de energia elétrica e em pesquisas vinculadas ao programa nuclear do regime militar. Mas prevaleceu o episódio do petroleiro estagiário que perdeu o emprego supostamente por motivos políticos. E o executivo vai embolsar R$ 1,2 milhão. É a mesma quantia destinada ao economista Sampaio.

Ele foi secretário estadual do governo da Bahia entre 1971 e 1974. Também nos tempos mais agudos da repressão política, ocupou um cargo muito bem remunerado na cúpula do governo do Rio. Mas ficou estabelecido que se trata de um ex-perseguido, e assim merecedor de reparação milionária.

O advogado Marcelo Lavanére Wanderley, presidente da Comissão, sonega à imprensa o acesso ao conteúdo dos processos. Tampouco lhe caberia, argumenta, conferir a pertinência das reivindicações. Ele é apenas o maquinista do trem pagador. Nisso é muito bom. Os passageiros aglomerados nos vagões viajam felizes, porque o apito não pára de soar.

no mínimo-Holocausto 0000001 – meu bisavô por Marina Lemle



Álbum de família
Arnold com uniforme de soldado alemão da Primeira Guerra: "Não quero viver"
Arnold com uniforme de soldado alemão da Primeira Guerra: "Não quero viver"
29.03.2005 | A história que vou contar seria mais uma de seis milhões não fosse ela a da vítima fatal número 1 do nazismo: meu bisavô.

Pela data do crime, a família sempre soube que ele havia sido um dos primeiros mortos. Mas a informação de que marca o início do genocídio de judeus só chegou à minha avó em 2002, após levantamento feito por um pesquisador alemão nos registros policiais da época. Apesar do impacto da notícia, minha avó não se preocupou em me contar. Somente há cerca de um mês o “detalhe” veio à tona, en passant, numa conversa.

Minha avó é reticente quando pergunto o porquê da demora da revelação. Acredito que tenha a ver com o excesso e a intensidade dos sentimentos guardados e remexidos a cada vez que tocamos no assunto. Por mais que ela esteja disposta a relatar seu drama, a emoção é latente e às vezes escapa ao seu controle. Insisto e recebo resposta direta: “Achei que você não ia querer saber. Eu quis te poupar”.

Mas vamos à história.

Manhã de sábado, 25 de março de 1933. Cerca de 20 guardas da SA - a tropa de assalto de Hitler - chegam de caminhão à pequena vila rural de Creglingen, no Sul da Alemanha. Os chamados “camisas-pardas” invadem a sinagoga, levam os homens e trancam as mulheres. Em filas, homens de todas as idades são levados à Prefeitura. No caminho, os SA encontram e prendem mais um “porco”: meu bisavô, Arnold Rosenfeld, que saía do barbeiro para ir à sinagoga.

Na Prefeitura, portas fechadas, os SAs espancam os judeus com ferros durante horas. Satisfeitos, deixam a cidade.

Libertada do cárcere no templo, minha bisavó, Ida Rosenfeld, não podia imaginar o estado em que receberia o marido em casa: agonizante, carregado por jovens também cheios de hematomas. Arnold, 53 anos, faleceu uma semana depois em um hospital na cidade vizinha de Würzburg. O ataque deixou outra vítima fatal: Hermann Stern, de 67 anos.

Minha avó tinha 19 anos quando viu o pai chegar em casa todo arrebentado. A imagem das suas costas roxas é viva na memória da senhora de 91 anos, que prefere ficar incógnita. Segurando as lágrimas e procurando manter a voz firme, ela conta que convenceu a mãe a enterrá-lo em Creglingen: “Eles vão ter que engolir isso”.

Estava certa. O túmulo de seu pai se transformou num marco histórico quando, quase 70 anos depois, pesquisadores descobriram que, dos seis milhões de judeus mortos pelo nazismo, Rosenfeld e Stern foram oficialmente os primeiros.

Álbum de família
Ida, a bisavó, presa e solta no mesmo dia: morte num campo de concentração
Ida, a bisavó, presa e solta no mesmo dia: morte num campo de concentração
Quando o ataque ocorreu, Hitler ainda não havia completado dois meses como chanceler do parlamento no governo de Hindenburg (com a morte deste, em 2 de agosto de 1934, ele se tornaria o “Führer”). Nas eleições de julho de 1932, os nazistas obtiveram seu melhor resultado até então, conseguindo 230 lugares no congresso e estabelecendo-se como o maior partido alemão.

Dos 1.300 habitantes de Creglingen, 90% votaram pelo nazismo. Excluindo os 70 judeus da cidade, pode-se afirmar que o eleitorado nazista representava 95% dos não-judeus locais. A comunidade fora fortemente influenciada pela campanha anti-semita e mudara muito seu comportamento em relação aos judeus. As diferenças, antes apenas diferenças, passaram a ser vistas como afrontas. “Os judeus irem bem vestidos para a sinagoga no sábado era motivo de chacota. Ouvíamos nas ruas: Abriu-se o saco de judeus”, conta minha avó, com sotaque carregado.

Na opinião dela, o preconceito era agravado pela associação da imagem dos judeus à dos comunistas. “E muitos eram mesmo, como Karl Marx. Havia grandes cientistas também, como Einstein. Mas Hitler dizia que éramos um câncer no povo alemão; então, fomos isolados. Ninguém mais ia às nossas casas”, relembra.

Nem sempre fora assim. Em Pessach, a Páscoa judaica, Ida Rosenfeld costumava mandar matzot (pães ázimos) para a casa dos amigos vizinhos, e eles retribuíam com ovos de chocolate. As crianças estudavam e brincavam juntas. O convívio era amistoso.

Arnold era comerciante de gado. Nos fins de semana, levava animais à feira da cidade vizinha de Manheim, onde os vendia vivos. Na visão de meu pai, o médico Alfred Lemle, esta posição de intermediário foi determinante para o ódio dos nazistas. Mas minha avó não endossa a teoria e garante que, com a propaganda nazista, todos os judeus passaram a ser odiados, independentemente do ramo profissional.

O que mais impressiona meu pai, do ponto de vista histórico, é que um ato de tamanha violência tenha acontecido num país teoricamente em paz. “Como podem elementos paramilitares do governo matar dois cidadãos a pauladas num país que não está em guerra declarada?”, questiona.

A verdade vem à tona

Álbum de família
A Oma, filha de Arnold e Ida, e seus dois irmãos: luta para chegar ao Brasil
A Oma, filha de Arnold e Ida, e seus dois irmãos: luta para chegar ao Brasil
De meados dos anos 1990 para cá, dois pesquisadores alemães passaram a procurar a minha avó para obter depoimentos. Gerhard Naser e Horst F. Rupp são de Creglingen e dedicam-se ao levantamento da história como forma de expurgar a culpa ancestral que carregam.

Naser, funcionário público aposentado, escreveu um belo livro ilustrado que conta a história e o destino de cada família judia da cidade (“Lebenswege Creglinger Juden Das Pogrom von 1933”, lançado em 1999). Ele percorreu o mundo atrás de sobreviventes e descendentes, passando pelo Brasil para entrevistar meus familiares.

Rupp, professor de teologia na Universidade de Würzburg, investiga arquivos da polícia e outros documentos históricos, procurando contextualizar os acontecimentos para entendê-los – mas não justificá-los. Neto do maior líder nazista de Creglingen, ele se envergonha das ações do avô, que participou diretamente desse pogrom (massacre) de 25 de março de 1933. Com dois livros lançados sobre o tema (“Vom Leben und Sterben – Juden in Creglingen”, de 1999, e “Streit um das Jüdische Museum”, de 2004), Rupp revela a história em toda a sua verdade crua.

Seu último livro traz a íntegra do depoimento que meu bisavô, no dia seguinte ao espancamento, deu, em casa, à polícia local – que, segundo minha avó, ainda não era nazista. Esse documento, descoberto por Rupp nos arquivos da polícia de Stuttgart e datado de 26 de março de 1933, é a prova de que Rosenfeld, junto com Stern, é mesmo a primeira vítima oficial do nazismo. Diz o registro:

“Me levaram ao salão da Prefeitura. Um SA me bateu com um cabo de ferro no rosto e me mandou virar para a parede. Disse-me para não desvirar mais - eu, ‘maldito moleque’. Fiquei assim, em pé, uma hora e meia. Então o líder me chamou e levou-me a outra sala, onde me mandaram tirar o casaco e me curvar sobre uma cadeira, com o rosto para baixo. Botaram um algodão na minha boca e um disse: ‘Agora batam o quanto puderem’. Apanhei de todos os lados. Perdi a consciência e caí da cadeira. Me levantaram e botaram de novo sobre a cadeira. Desmaiei de novo. Então me jogaram um balde d’água e me levaram ao quarto ao lado. Apanhei de novo no rosto com ferro e o SA me mandou levantar a cabeça, o que não pude fazer. Fui levado de volta ao salão e me permitiram sentar. Depois fui levado à prisão da Prefeitura, onde fiquei até as três da tarde. Então fomos todos libertados e três homens me levaram para casa. Estou ferido para morrer. Tenho hematomas dos joelhos até os ombros.”

A Oma (vovó em alemão) se emociona ao traduzir o texto para mim. E ativa mais uma memória dolorosa: “No hospital, em Würzburg, meu pai repetia: ‘eu não quero mais viver’. Logo ele, que costumava dizer que a Lei venceria...”

A vida continua

Álbum de família
Casa de Arnold e Ida em Creglingen: vendida, virou um centro nazista
Casa de Arnold e Ida em Creglingen: vendida, virou um centro nazista
Os livros de Naser e de Rupp repercutiram na imprensa alemã, e a história do primeiro pogrom nazista tornou-se pública. Já no Brasil, este é o primeiro registro.

Naser e Rupp não foram os primeiros a procurar minha avó e seus irmãos para que ajudassem a recuperar os fatos. Isso vem acontecendo desde os anos que se seguiram à guerra, quando a Alemanha, num esforço para mostrar ao mundo que havia mudado, passou a incentivar pesquisas sobre o nazismo e a pagar pensões vitalícias às suas vítimas. Em 1947, minha avó recebeu uma carta da polícia alemã pedindo que contasse sua história. Não foi difícil, já que em 1943 ela havia escrito tudo. Essa documentação foi fundamental para a pesquisa de Naser, que reproduziu o conteúdo em seu livro. O texto também conta o que aconteceu com os Rosenfeld após a morte do chefe da família.

Durante um ano, minha avó cuidou de tudo: dos negócios, da mãe, que se prostrara no sofá, dos irmãos de 10 e 11 anos. No ano seguinte, casou-se com meu avô, um jovem rabino liberal, primo em primeiro grau (suas mães eram irmãs). Foram todos morar em Frankfurt, onde meu avô liderava uma comunidade. A casa de Creglingen foi vendida a um preço muito abaixo do valor e soube-se mais tarde que havia se transformado num centro nazista.

Em 1936, minha avó teve meu pai, filho único. Já nessa época, ela tentava nos consulados estrangeiros – inclusive o do Brasil – vistos de entrada para poder deixar a Alemanha com a família. Mas estava difícil. Em 1938, meu avô foi preso pelos nazistas e levado ao campo de concentração de Buchenwald. Foi quando ela recorreu a um “anjo” na Inglaterra: The Honorable Miss Lily Montagu, uma nobre inglesa altamente politizada, ativista do judaísmo liberal, que se dedicou a ajudar refugiados da guerra. Imediatamente, Miss Montagu providenciou um convite à família, viabilizando a obtenção de vistos de transmigrantes para a Inglaterra. De posse dos vistos, mais meia dúzia de documentos e mediante o pagamento de uma taxa de cinco mil marcos, minha avó conseguiu, no escritório nazista, a esperança de libertação de meu avô.

De fato, no dia seguinte, o rabino chegava à estação de trem. Após três semanas no campo, estava mentalmente perturbado. “Ao chegar em casa”, relembra minha avó, “ele me perguntou se podia sentar-se na poltrona. Era a sua própria casa! Estava destruído.”

Em poucos dias, Oma, Opa (vovô) e meu pai embarcavam para Londres. Ficaram hospedados por três meses na casa de Miss Montagu, sendo tratados como representantes da nobreza. Dois meses depois, um transporte coletivo infantil trouxe os irmãos da minha avó, que foram para internatos públicos.

Na Alemanha, judeus; fora, alemães

Miss Montagu conseguiu uma sinagoga para o rabino trabalhar na cidade de Brighton & Hove, no Sul da Inglaterra. A vida seguia em relativo sossego até que a guerra de fato estourou, no dia seguinte à kristallnacht (a “noite de cristal”, em 9 de novembro de 1938, quando os nazistas destruíram e saquearam lojas de judeus por todo o território alemão e incendiaram as 1.500 sinagogas do país). Como meu avô era alemão, a polícia inglesa bateu em sua porta e levou-o para o campo de prisioneiros da Ilha de Mann. Ele agora era um enemy alien. Mas os judeus ficavam separados dos prisioneiros nazistas e eram mais bem tratados.

Minha avó, então, entrou de novo em ação. Desde os tempos de Frankfurt, ela sabia, através de contatos com a Organização Mundial do Judaísmo Progressista e com Miss Montagu, que uma comunidade no Rio de Janeiro precisava de um rabino, mas o Consulado Brasileiro na Alemanha não havia concedido os vistos. Ela resolveu tentar o escritório de Londres e dessa vez teve sucesso.

Com vistos para o Brasil em mãos, a Oma novamente conseguiu a libertação do Opa. Do outro lado do mundo, uma nova vida aguardava a minha família. Os cinco – meus avós, tios-avós e meu pai - ainda ficaram dois meses à espera do navio, hospedados na casa de campo de um rabino inglês, a três horas de Londres.

Foi debaixo de bombardeio que eles chegaram de trem ao porto de Liverpool e embarcaram, em 1940. “Entramos no navio na maior escuridão. Foi uma longa viagem em ziguezague, para evitar os torpedos alemães. Passei mal durante um mês”, conta a Oma.

A lembrança de meu pai, que ainda não tinha completado quatro anos, é das luzes da chegada. Luzes de uma cidade maravilhosa, alegre, onde mais tarde ele iria jogar futebol na rua, com o apelido de “Alemão” – veja só que ironia... Onde iria se formar médico, se casar, fazer carreira acadêmica, ter filhos e netos. Onde a liberdade se perpetuou na riqueza da diversidade. Onde os membros e descendentes da família se sentem livres para ficar e também para se mudar para São Paulo, Maceió, Israel ou Estados Unidos.

A alegria da libertação só não pôde ser vivida plenamente porque a mãe da Oma e os pais do Opa tiveram o mesmo destino terrível de tantos outros judeus na Segunda Guerra: a morte em campos de concentração. Mas pelo menos sua memória agora é respeitada. Em 2002, um Museu Judaico foi inaugurado em Creglingen, que vive do turismo e integra o chamado “roteiro romântico do Sul da Alemanha”. Em 25 de março de 2003, no aniversário de 70 anos do pogrom, crianças das escolas da cidade redigiram e leram a história de cada habitante judeu vitimado pelo nazismo na porta de suas respectivas casas, com velas nas mãos. Depois, as biografias foram levadas para o museu, onde estão expostas, em meio a outros documentos – entre eles, os registros sobre o assassinato do meu bisavô.

A quilômetros de distância, aqui no Rio, toca a campainha na casa da Oma. É minha mãe, trazendo minha filha de dois anos. Alheia ao astral carregado por mais de uma hora de entrevista comovente, a menina quebra o clima: “Mamãe, mamãe, eu quero praia, eu quero praia agora!”.

Às vezes me perguntam se, como descendente, tenho direito a passaporte alemão. Não sei, mas obrigada. Prefiro Ipanema.