quinta-feira, março 31, 2005

Jornal O Globo -Merval Pereira

USA, amor e ódio

Onde havia apenas amor, e muitas vezes subserviência, há uma ambivalência de amor e ódio atualmente na relação entre Brasil e Estados Unidos que pode dar certo, mas pode também acabar em algum mal-entendido desses que podem criar uma crise nas relações internacionais onde menos se espera e, pior, que ninguém deseja.

O presidente Lula, muito cioso do papel de principal líder regional da América do Sul — e, quem sabe, da América Latina — se oferece como representante da região para o Conselho de Segurança Nacional da ONU, sem levar em conta o papel do México — tomou as dores do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, e respondeu ao que teria sido uma intromissão do secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld.

Quando, em visita oficial ao Brasil, criticou a Venezuela por estar comprando cem mil fuzis AK-47, insinuando que esse armamento poderia acabar nas mãos da guerrilha colombiana, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, o secretário de Defesa americano claramente exacerbou suas funções.

Lula aproveitou o encontro com os presidentes Chávez e Uribe, da Colômbia, e mais o presidente do governo espanhol, José Luiz Zapatero, para assumir a defesa de Chávez, dizendo que não aceita difamações “de companheiros”. A gafe de Rumsfeld, bem apontada por Luiz Garcia em coluna recente, acabou gerando uma bravata de Lula em defesa da região, que parece estar sob fogo cerrado do governo Bush.

Certamente Rumsfeld não falou sem querer sobre a questão da Venezuela no Brasil. Na verdade, quis mandar um recado direto ao Palácio do Planalto, o que não diminui o tamanho da gafe, pois se quer a interferência brasileira para conter o populismo de Chávez, deveria pedi-la a porta fechadas, e não tentando publicamente emparedar o governo brasileiro.

A guinada à esquerda da América do Sul preocupa Washington, que está escolhendo o pior caminho, o da pressão política, para tentar desunir os líderes da região. O certo, no entanto, seria procurar trabalhar com o governo Lula para que a liderança política do Brasil fosse uma garantia de tranqüilidade na região. Pressionar publicamente só faz com que Lula, para manter o prestígio entre os seus, tenha que responder publicamente também.

O que os Estados Unidos parecem não entender, e o jornal inglês “Financial Times” já entendeu, é que o governo brasileiro, com o prestígio que vem angariando junto aos vizinhos e a clara disposição de liderar a região, postura que nunca havia sido assumida pela política externa brasileira, é o único caminho diplomático viável para garantir estabilidade política na região.

Não foi à toa que o presidente Lula se referiu diretamente, pela primeira vez, às acusações de que o PT recebeu doações em dinheiro das Farc para a última campanha eleitoral, que o elegeu. Ao negar ter recebido dinheiro clandestino, Lula colocou-se como um interlocutor aceitável também para o presidente da Colômbia, Alvaro Uribe, sem o que sua liderança regional estaria ameaçada.

O próprio presidente George W. Bush telefonou para o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, para se queixar de Chávez, e ouviu dele que continuaria dialogando com o governo democrático da Venezuela. Por mais que Chávez faça internamente para transformar seu superpresidencialismo em um arremedo de democracia, enquanto estiver mantendo as aparências democráticas, e sendo alvo de campanhas de desestabilização vindas dos Estados Unidos, terá o apoio dos governos da região.

Mais pelo temor de que os Estados Unidos se intrometam no nosso continente, do que exatamente pela defesa de suas posições políticas, que não têm o apoio integral do governo brasileiro. O interessante é que tanto o governo dos EUA quanto o do Brasil estão empenhados em entenderem melhor um ao outro, e há indicações de que figuras-chaves dos dois países estão tentando compreender “a cabeça” do outro.

A secretária de Estado Condoleezza Rice anda lendo ultimamente livros sobre Lula e sua trajetória política, e já deu demonstrações de que tem interesse em vir ao Brasil brevemente. Do nosso lado, o chefe da Casa Civil, José Dirceu, andou lendo biografias de Condoleezza antes de encontrá-la em Washington, no início do mês.

O governo brasileiro estabeleceu, com o acompanhamento pessoal do presidente Lula, uma série de visitas de autoridades brasileiras aos Estados Unidos, especialmente para contatos no meio acadêmico, e entre as ONGs e entidades sindicais. Além do ministro Dirceu, também esteve nos EUA o secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, encarregado de fazer a ligação do governo com a sociedade civil no Brasil.

Não por acaso os dois estiveram reunidos com representantes dos meios de comunicação americanos, Dirceu almoçando com a direção do “Washington Post”, e Dulci se encontrando com jornalistas da NBC, que está programando uma série de documentários com os BRICs — Brasil, Rússia, Índia e China — países tidos como possíveis futuros líderes mundiais.

Outras viagens acontecerão, e o governo brasileiro pretende convidar intelectuais e formadores de opinião dos Estados Unidos para visitarem o Brasil. Incomoda sobremaneira aos petistas como o meio acadêmico americano continua sendo “tucano”.

Com esses contatos, o governo brasileiro quer mostrar nosso potencial e, sobretudo, mudar a imagem de setores que ainda temem essa confluência de governos de esquerda na América do Sul.

Depois de ter sido defendido publicamente pelo presidente Lula, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, abrandou suas críticas ao governo americano, numa indicação de que seria melhor mesmo para os Estados Unidos trabalharem mais próximos ao Brasil. A diferença entre Chávez e Lula pode ser medida na seguinte comparação: Chávez só se refere ao FMI aos palavrões, Lula só tem elogios. Mas é compreensível que seja difícil para os neoconservadores que tomaram conta do governo americano entenderem que o equilíbrio político da América do Sul dependa de “moderados” como Lula e Kirchner.

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