A gota d’água
Pelas contas do próprio governo, ele tentou tirar R$ 1,5 bilhão de 230 mil brasileiros e devolver R$ 2,5 bilhões a sete milhões de brasileiros. E não foi entendido em seu propósito. Era uma tsunami e a área política do governo achou que era uma onda que dava para surfar. A área técnica ainda não entendeu o que foi mesmo que aconteceu com a MP 232. Ela produziu um movimento invencível de rejeição que mobilizou até os que não foram diretamente atingidos. Virou um ponto de resistência.
A Receita Federal, mesmo em outros governos, sempre aproveitou alguma medida tributária para apertar mais um botão, mudar uma base de cálculo, antecipar uma cobrança, subir de forma disfarçada o imposto. Esse tipo de esperteza o contribuinte decidiu não aceitar. E elegeu a 232 como ponto a partir do qual não ficaria mais calado.
Era para ser uma boa notícia. O presidente Lula chamou os sindicalistas no Palácio do Planalto para anunciar a eles a correção da tabela do Imposto de Renda pessoa física. Acabou virando uma das piores exposições de mídia vividas pelo governo. Só aqui em O GLOBO foram publicados 98 artigos, reportagens, editoriais e cartas sobre a MP nestes três meses. Deles, 14 positivos, 19 neutros e 65 negativos. Em toda a mídia, a exposição foi majoritariamente negativa.
O que foi que entornou o caldo? Tudo! Há muito tempo, o contribuinte está com esse grito engasgado. O governo embutiu na notícia boa da correção da tabela mais uma má notícia. Novo aumento da base de cálculo do IRPJ e da CSLL das prestadoras de serviço que pagam pelo lucro presumido. A última mudança dessa base de cálculo havia sido em outubro de 2003, um ano antes. Pulou de 12% para 32% e, agora, para 40%.
Técnicos da Receita que ouvi acham que o país está se mobilizando como se todos fossem atingidos, quando, na verdade, é um grupo pequeno. As empresas prestadoras de serviço que pagam pelo lucro presumido são apenas 230 mil, 9% do universo das empresas do país. E têm liberdade de pagar pelo lucro real. Outra parte da medida atinge os produtores rurais que tenham uma operação de cinco vezes o limite de isenção. Depois, negociou-se a elevação desse número para dez vezes o limite de isenção. Ou seja, teria que ser um produtor rural com uma operação mensal além de R$ 11.640. E o que se cobraria era 1,5% sobre a parcela excedente a esse valor, como retenção na fonte. Ou seja, não era mais carga, mas apenas antecipação.
A Receita mostrou esses e outros dados para os políticos e não os convenceu. Ninguém queria ouvir os argumentos técnicos. Um desses argumentos é que, na ponta do lápis, a elevação não seria tão grande quanto parece.
O aumento agora seria apenas da CSLL. No ano que vem, obedecido o princípio da anualidade, entraria em vigor o aumento para o IRPJ. Hoje, dos dois impostos, uma empresa com faturamento mensal até R$ 50 mil estaria pagando 11,33% do faturamento. Já que os dois impostos incidem sobre 32% de toda a receita da empresa, presumindo que este é o lucro que ela teve. Ao passar a base para 40% do faturamento, o custo fiscal subiria para 13,25%. Um aumento, dizem os técnicos, de apenas 1,92 ponto percentual. O governo acha que isso é pouco, mas é uma elevação de 16,9% do que se paga nesses dois tributos. No caso das empresas com faturamento além de R$ 50 mil, o aumento é maior.
Os números são perigosos. O ministro Antonio Palocci disse que as despesas discricionárias não estão aumentando tanto assim como proporção do PIB. A questão é que o PIB cresceu muito no ano passado; e ele não crescerá sempre nesta proporção. O crescimento anestesia. Quando o país cresce, aumenta a arrecadação, o governo cai na tentação de ampliar seus gastos e a conta sempre fecha no fim. Quando vem o mau tempo, o contribuinte paga a conta.
No caso da correção da tabela, o governo argumenta que foi uma despesa extra e que precisa de uma receita nova para cobrir pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A discussão é se a correção da tabela é despesa. Afinal, a correção é para buscar alguma neutralidade nesse imposto, a menos que o governo confesse que deliberadamente quer aumentar, ano a ano, a carga tributária sobre o contribuinte pessoa física. De qualquer maneira, sempre há o caminho de corte de despesas.
A MP virou, para os contribuintes, uma bandeira, uma hora de dizer basta à fúria arrecadatória. Na tramitação, viu-se novamente em cena a espantosa incapacidade política do governo. Qualquer pessoa ligeiramente informada veria que a rejeição à MP estava forte demais, o que exigiria uma habilidosa operação de salvamento ou um enterro em tempo hábil. Mas o governo foi até o fim num espetáculo inédito. Agora, o presidente Lula poderá dizer que “nunca antes na história desse país” se viu o partido do governo fazendo um relatório propondo a rejeição — e o líder do partido encaminhando pela rejeição — de uma proposta do próprio governo.
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