Álbum de família | |
Arnold com uniforme de soldado alemão da Primeira Guerra: "Não quero viver" |
Pela data do crime, a família sempre soube que ele havia sido um dos primeiros mortos. Mas a informação de que marca o início do genocídio de judeus só chegou à minha avó em 2002, após levantamento feito por um pesquisador alemão nos registros policiais da época. Apesar do impacto da notícia, minha avó não se preocupou em me contar. Somente há cerca de um mês o “detalhe” veio à tona, en passant, numa conversa.
Minha avó é reticente quando pergunto o porquê da demora da revelação. Acredito que tenha a ver com o excesso e a intensidade dos sentimentos guardados e remexidos a cada vez que tocamos no assunto. Por mais que ela esteja disposta a relatar seu drama, a emoção é latente e às vezes escapa ao seu controle. Insisto e recebo resposta direta: “Achei que você não ia querer saber. Eu quis te poupar”.
Mas vamos à história.
Manhã de sábado, 25 de março de 1933. Cerca de 20 guardas da SA - a tropa de assalto de Hitler - chegam de caminhão à pequena vila rural de Creglingen, no Sul da Alemanha. Os chamados “camisas-pardas” invadem a sinagoga, levam os homens e trancam as mulheres. Em filas, homens de todas as idades são levados à Prefeitura. No caminho, os SA encontram e prendem mais um “porco”: meu bisavô, Arnold Rosenfeld, que saía do barbeiro para ir à sinagoga.
Na Prefeitura, portas fechadas, os SAs espancam os judeus com ferros durante horas. Satisfeitos, deixam a cidade.
Libertada do cárcere no templo, minha bisavó, Ida Rosenfeld, não podia imaginar o estado em que receberia o marido em casa: agonizante, carregado por jovens também cheios de hematomas. Arnold, 53 anos, faleceu uma semana depois em um hospital na cidade vizinha de Würzburg. O ataque deixou outra vítima fatal: Hermann Stern, de 67 anos.
Minha avó tinha 19 anos quando viu o pai chegar em casa todo arrebentado. A imagem das suas costas roxas é viva na memória da senhora de 91 anos, que prefere ficar incógnita. Segurando as lágrimas e procurando manter a voz firme, ela conta que convenceu a mãe a enterrá-lo em Creglingen: “Eles vão ter que engolir isso”.
Estava certa. O túmulo de seu pai se transformou num marco histórico quando, quase 70 anos depois, pesquisadores descobriram que, dos seis milhões de judeus mortos pelo nazismo, Rosenfeld e Stern foram oficialmente os primeiros.
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Ida, a bisavó, presa e solta no mesmo dia: morte num campo de concentração |
Dos 1.300 habitantes de Creglingen, 90% votaram pelo nazismo. Excluindo os 70 judeus da cidade, pode-se afirmar que o eleitorado nazista representava 95% dos não-judeus locais. A comunidade fora fortemente influenciada pela campanha anti-semita e mudara muito seu comportamento em relação aos judeus. As diferenças, antes apenas diferenças, passaram a ser vistas como afrontas. “Os judeus irem bem vestidos para a sinagoga no sábado era motivo de chacota. Ouvíamos nas ruas: Abriu-se o saco de judeus”, conta minha avó, com sotaque carregado.
Na opinião dela, o preconceito era agravado pela associação da imagem dos judeus à dos comunistas. “E muitos eram mesmo, como Karl Marx. Havia grandes cientistas também, como Einstein. Mas Hitler dizia que éramos um câncer no povo alemão; então, fomos isolados. Ninguém mais ia às nossas casas”, relembra.
Nem sempre fora assim. Em Pessach, a Páscoa judaica, Ida Rosenfeld costumava mandar matzot (pães ázimos) para a casa dos amigos vizinhos, e eles retribuíam com ovos de chocolate. As crianças estudavam e brincavam juntas. O convívio era amistoso.
Arnold era comerciante de gado. Nos fins de semana, levava animais à feira da cidade vizinha de Manheim, onde os vendia vivos. Na visão de meu pai, o médico Alfred Lemle, esta posição de intermediário foi determinante para o ódio dos nazistas. Mas minha avó não endossa a teoria e garante que, com a propaganda nazista, todos os judeus passaram a ser odiados, independentemente do ramo profissional.
O que mais impressiona meu pai, do ponto de vista histórico, é que um ato de tamanha violência tenha acontecido num país teoricamente em paz. “Como podem elementos paramilitares do governo matar dois cidadãos a pauladas num país que não está em guerra declarada?”, questiona.
A verdade vem à tona
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A Oma, filha de Arnold e Ida, e seus dois irmãos: luta para chegar ao Brasil |
Naser, funcionário público aposentado, escreveu um belo livro ilustrado que conta a história e o destino de cada família judia da cidade (“Lebenswege Creglinger Juden Das Pogrom von 1933”, lançado em 1999). Ele percorreu o mundo atrás de sobreviventes e descendentes, passando pelo Brasil para entrevistar meus familiares.
Rupp, professor de teologia na Universidade de Würzburg, investiga arquivos da polícia e outros documentos históricos, procurando contextualizar os acontecimentos para entendê-los – mas não justificá-los. Neto do maior líder nazista de Creglingen, ele se envergonha das ações do avô, que participou diretamente desse pogrom (massacre) de 25 de março de 1933. Com dois livros lançados sobre o tema (“Vom Leben und Sterben – Juden in Creglingen”, de 1999, e “Streit um das Jüdische Museum”, de 2004), Rupp revela a história em toda a sua verdade crua.
Seu último livro traz a íntegra do depoimento que meu bisavô, no dia seguinte ao espancamento, deu, em casa, à polícia local – que, segundo minha avó, ainda não era nazista. Esse documento, descoberto por Rupp nos arquivos da polícia de Stuttgart e datado de 26 de março de 1933, é a prova de que Rosenfeld, junto com Stern, é mesmo a primeira vítima oficial do nazismo. Diz o registro:
“Me levaram ao salão da Prefeitura. Um SA me bateu com um cabo de ferro no rosto e me mandou virar para a parede. Disse-me para não desvirar mais - eu, ‘maldito moleque’. Fiquei assim, em pé, uma hora e meia. Então o líder me chamou e levou-me a outra sala, onde me mandaram tirar o casaco e me curvar sobre uma cadeira, com o rosto para baixo. Botaram um algodão na minha boca e um disse: ‘Agora batam o quanto puderem’. Apanhei de todos os lados. Perdi a consciência e caí da cadeira. Me levantaram e botaram de novo sobre a cadeira. Desmaiei de novo. Então me jogaram um balde d’água e me levaram ao quarto ao lado. Apanhei de novo no rosto com ferro e o SA me mandou levantar a cabeça, o que não pude fazer. Fui levado de volta ao salão e me permitiram sentar. Depois fui levado à prisão da Prefeitura, onde fiquei até as três da tarde. Então fomos todos libertados e três homens me levaram para casa. Estou ferido para morrer. Tenho hematomas dos joelhos até os ombros.”
A Oma (vovó em alemão) se emociona ao traduzir o texto para mim. E ativa mais uma memória dolorosa: “No hospital, em Würzburg, meu pai repetia: ‘eu não quero mais viver’. Logo ele, que costumava dizer que a Lei venceria...”
A vida continua
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Casa de Arnold e Ida em Creglingen: vendida, virou um centro nazista |
Naser e Rupp não foram os primeiros a procurar minha avó e seus irmãos para que ajudassem a recuperar os fatos. Isso vem acontecendo desde os anos que se seguiram à guerra, quando a Alemanha, num esforço para mostrar ao mundo que havia mudado, passou a incentivar pesquisas sobre o nazismo e a pagar pensões vitalícias às suas vítimas. Em 1947, minha avó recebeu uma carta da polícia alemã pedindo que contasse sua história. Não foi difícil, já que em 1943 ela havia escrito tudo. Essa documentação foi fundamental para a pesquisa de Naser, que reproduziu o conteúdo em seu livro. O texto também conta o que aconteceu com os Rosenfeld após a morte do chefe da família.
Durante um ano, minha avó cuidou de tudo: dos negócios, da mãe, que se prostrara no sofá, dos irmãos de 10 e 11 anos. No ano seguinte, casou-se com meu avô, um jovem rabino liberal, primo em primeiro grau (suas mães eram irmãs). Foram todos morar em Frankfurt, onde meu avô liderava uma comunidade. A casa de Creglingen foi vendida a um preço muito abaixo do valor e soube-se mais tarde que havia se transformado num centro nazista.
Em 1936, minha avó teve meu pai, filho único. Já nessa época, ela tentava nos consulados estrangeiros – inclusive o do Brasil – vistos de entrada para poder deixar a Alemanha com a família. Mas estava difícil. Em 1938, meu avô foi preso pelos nazistas e levado ao campo de concentração de Buchenwald. Foi quando ela recorreu a um “anjo” na Inglaterra: The Honorable Miss Lily Montagu, uma nobre inglesa altamente politizada, ativista do judaísmo liberal, que se dedicou a ajudar refugiados da guerra. Imediatamente, Miss Montagu providenciou um convite à família, viabilizando a obtenção de vistos de transmigrantes para a Inglaterra. De posse dos vistos, mais meia dúzia de documentos e mediante o pagamento de uma taxa de cinco mil marcos, minha avó conseguiu, no escritório nazista, a esperança de libertação de meu avô.
De fato, no dia seguinte, o rabino chegava à estação de trem. Após três semanas no campo, estava mentalmente perturbado. “Ao chegar em casa”, relembra minha avó, “ele me perguntou se podia sentar-se na poltrona. Era a sua própria casa! Estava destruído.”
Em poucos dias, Oma, Opa (vovô) e meu pai embarcavam para Londres. Ficaram hospedados por três meses na casa de Miss Montagu, sendo tratados como representantes da nobreza. Dois meses depois, um transporte coletivo infantil trouxe os irmãos da minha avó, que foram para internatos públicos.
Na Alemanha, judeus; fora, alemães
Miss Montagu conseguiu uma sinagoga para o rabino trabalhar na cidade de Brighton & Hove, no Sul da Inglaterra. A vida seguia em relativo sossego até que a guerra de fato estourou, no dia seguinte à kristallnacht (a “noite de cristal”, em 9 de novembro de 1938, quando os nazistas destruíram e saquearam lojas de judeus por todo o território alemão e incendiaram as 1.500 sinagogas do país). Como meu avô era alemão, a polícia inglesa bateu em sua porta e levou-o para o campo de prisioneiros da Ilha de Mann. Ele agora era um enemy alien. Mas os judeus ficavam separados dos prisioneiros nazistas e eram mais bem tratados.
Minha avó, então, entrou de novo em ação. Desde os tempos de Frankfurt, ela sabia, através de contatos com a Organização Mundial do Judaísmo Progressista e com Miss Montagu, que uma comunidade no Rio de Janeiro precisava de um rabino, mas o Consulado Brasileiro na Alemanha não havia concedido os vistos. Ela resolveu tentar o escritório de Londres e dessa vez teve sucesso.
Com vistos para o Brasil em mãos, a Oma novamente conseguiu a libertação do Opa. Do outro lado do mundo, uma nova vida aguardava a minha família. Os cinco – meus avós, tios-avós e meu pai - ainda ficaram dois meses à espera do navio, hospedados na casa de campo de um rabino inglês, a três horas de Londres.
Foi debaixo de bombardeio que eles chegaram de trem ao porto de Liverpool e embarcaram, em 1940. “Entramos no navio na maior escuridão. Foi uma longa viagem em ziguezague, para evitar os torpedos alemães. Passei mal durante um mês”, conta a Oma.
A lembrança de meu pai, que ainda não tinha completado quatro anos, é das luzes da chegada. Luzes de uma cidade maravilhosa, alegre, onde mais tarde ele iria jogar futebol na rua, com o apelido de “Alemão” – veja só que ironia... Onde iria se formar médico, se casar, fazer carreira acadêmica, ter filhos e netos. Onde a liberdade se perpetuou na riqueza da diversidade. Onde os membros e descendentes da família se sentem livres para ficar e também para se mudar para São Paulo, Maceió, Israel ou Estados Unidos.
A alegria da libertação só não pôde ser vivida plenamente porque a mãe da Oma e os pais do Opa tiveram o mesmo destino terrível de tantos outros judeus na Segunda Guerra: a morte em campos de concentração. Mas pelo menos sua memória agora é respeitada. Em 2002, um Museu Judaico foi inaugurado em Creglingen, que vive do turismo e integra o chamado “roteiro romântico do Sul da Alemanha”. Em 25 de março de 2003, no aniversário de 70 anos do pogrom, crianças das escolas da cidade redigiram e leram a história de cada habitante judeu vitimado pelo nazismo na porta de suas respectivas casas, com velas nas mãos. Depois, as biografias foram levadas para o museu, onde estão expostas, em meio a outros documentos – entre eles, os registros sobre o assassinato do meu bisavô.
A quilômetros de distância, aqui no Rio, toca a campainha na casa da Oma. É minha mãe, trazendo minha filha de dois anos. Alheia ao astral carregado por mais de uma hora de entrevista comovente, a menina quebra o clima: “Mamãe, mamãe, eu quero praia, eu quero praia agora!”.
Às vezes me perguntam se, como descendente, tenho direito a passaporte alemão. Não sei, mas obrigada. Prefiro Ipanema.
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