quarta-feira, janeiro 31, 2007

Diálogos & dialéticas Roberto DaMatta


Encontrei-me com o brasilianista Richard Moneygrand, de volta ao Rio para realizar pesquisas e consultorias. Num jantar especial, semicomemorativo, conheci sua nona esposa. 'São muitos casamentos...', resmunga um amigo complacente, o rosto alegre mostrando os olhos azuis sempre fulgurantes de energia e inteligência. 'Ao contrário de você que fez as suas, para mim insonháveis, bodas de platina (45 anos), eu mal cheguei às de cobre (8 anos)...'

'Paciência...', reagi usando a palavra mais gasta do vocabulário nacional, olhando a jovem e bela Mary Smith, que seguia o nosso papo mais como observadora do que como participante.

'Minha história matrimonial é semelhante à experiência política do Brasil. Eu tenho problemas com o casamento monogâmico; vocês, com a 'liberal democracia'. Mais com o 'liberal', menos com a 'democracia', pois debaixo do Equador tudo tem o germe da velha dialética na qual uma coisa devora a outra. Só um brasileiro ousaria juntar 'ordem e progresso'. Se há ordem, termina o progresso; e se ocorre progresso, onde é que fica a ordem? Como nos meus sucessivos casamentos, nessa minha busca de serena intimidade e de paixão arrebatada, é contraditória. Há, no Brasil, quem esteja convencido que o 'liberalismo' (que destrava os interesses e a competição) vai comer uma 'democracia' imaginada concretamente como um regime perfeito, baseado num igualitarismo substantivo. Uma igualdade pré-Iluminista, não perante a lei, mas perante a 'vida' e o que se imagina como suas necessidades básicas, infra-estruturais e pré-políticas: comer, dormir, reproduzir-se... Ao lado desses imperativos morais, vistos como anteriores à própria sociabilidade, entram muitos gatunos e fantasmas.'

- Coisa complicada, não?

- Mas haveria o humano sem a busca do impossível?, retrucou Moneygrand. Sem esses contraditórios 'ordem e progresso'; 'sexo e amor', 'igualdade e hierarquia', 'crescimento econômico fundado no mercado e PAC'? De um lado, as rotinas bem-educadas das cláusulas pétreas, dos axiomas morais indiscutíveis, tipo 'não roubamos e não deixamos roubar'; do outro, as transformações profundas, revolucionárias e carnavalescas, capazes de pôr o mundo de ponta-cabeça mas, é claro, sob a direção dos produtores políticos e culturais adequados. O problema é que vocês amam a convulsão contraditória. O Brasil tem uma aristocracia igualitária.

- Mas você não acha que estamos nos livrando desse peso iberista e marchando para o americanismo?

- Para mim, o Brasil é como aquele bloco de carnaval, inventado pelo Aníbal Machado, no livro João Ternura, lembra?

- Claro, Moneygrand. Como esquecer, se fui eu quem lhe mostrou o carnaval cósmico de João Ternura como um modelo sociológico do Brasil?, repliquei um tanto amuado pela cretinice do brasilianista que me devolvia sem citar, como é comum no mundo acadêmico, algo que eu havia descoberto.

- Estou pensando no carnaval de Aníbal Machado, onde os problemas - mendacidade eleitoral e administrativa, fome, uma desigualdade estrutural que o governo promete corrigir, mas que vai aumentando pelo furor do seu controle legalista - surgem claramente; e, com eles, o bloco 'Custa-mas-vai' que muitos hoje diriam que tem 'custado' mais do que 'ido'.

- Tal como os seus casamentos em série. Essa sua busca constante do amor pleno que você até hoje pensa encontrar prontinho para ser apanhado e levado para casa, certo?

- Perhaps... Você disse uma vez que os Estados Unidos eram o país das sacolas e o Brasil, o dos embrulhos. É outra dialética. Tampada, sacola vira embrulho; e o embrulho, aberto por cima, transforma-se naquilo que nega: vira uma sacola. O mesmo ocorre com outras imagens.

- Já sei, a da Polícia Rodoviária parada, das prisões como centrais do crime e a do Ministério da Desburocratização criado, com seus regulamentos, para cortar o nó da papelada nacional...

- Vocês falam dos portugueses e, no entanto, foi o Brasil que inventou uma burocracia para acabar com a burocracia! Vocês pensam que abstraindo, generalizando e nacionalizando os problemas - que são sempre locais e demandam ações particulares e pontuais - se acabam. Francamente, criar uma burocracia para resolver a burocracia só mesmo nesse Brasil onde um pacote, um PAC, que fecha e contém, quer deflagrar crescimento.

- Iberismos?, sugeri procurando um garçom para pedir mais uma garrafa de uísque e observando a participação cada vez mais intensa de Mary Smith numa roda de samba onde aprendia o 're!que!bra!do!' carioca.

- Perhaps. Melhor seria dizer falta de entendimento das implicações simbólicas de uma sociedade de mercado. É como querer um bom jogo de futebol, com um juiz impedindo certas jogadas. No fundo, vocês têm horror ao sucesso, esse fruto proibido nas sociedades baseadas na honra e na família. Nelas, já se sabe quem são os ganhadores porque não há jogo e ninguém muda de lugar. Agora você entende por que o sucesso (que mexe com o sistema) é, como disse Tom Jobim, uma ofensa pessoal. E para quem ama a nomenclatura e adora planos, projetos e pacotes, o lucro é um engodo do coletivo.

FERNANDO RODRIGUES Lula 2.0

BRASÍLIA - As eleições amanhã para presidentes da Câmara e do Senado marcarão o início do novo modelo de relação entre Lula e o Congresso. Será uma espécie de Lula 2.0 na área política.
O petista nunca teve um sistema próprio de interação com o Poder Legislativo. Alugou um de segunda mão em 2003. Funcionou dois anos. Na renovação do leasing, implodiu com o mensalão.
Ao vencer a reeleição, Lula quis construir algo mais perene na política. A economia não precisava de ajustes profundos. Para efeitos eleitorais, a ortodoxia mesclada com assistencialismo resolveu. Bastou agora reempacotar o conservadorismo com uma pitada de marketing desenvolvimentista.
Já na administração de sua base congressual, Lula nunca conseguiu copiar FHC. De 1995 a 2002, três grandes partidos -PSDB, PFL e PMDB- funcionaram como âncora para o Planalto fernandista dentro do Congresso. Legendas médias e nanicas recebiam migalhas.
Lula jamais terá PSDB e PFL. O petista criou uma aliança com 11 siglas. O teste inicial será amanhã.
Exceto se José Agripino (PFL) e Gustavo Fruet (PSDB) ficarem com as presidências do Senado e da Câmara, o modelo Lula 2.0 começará muito bem.
No Senado, a opção governista é Renan Calheiros, do PMDB. Na Câmara, Lula estaria melhor pessoalmente com Aldo Rebelo (PC do B).
O PT ficaria mais controlado. Mas uma vitória do petista Arlindo Chinaglia também terá serventia ao Planalto: ajudará a trazer um naco mais robusto do PMDB da Câmara para dentro do governo -livrando o presidente de só depender dos senadores peemedebistas.
Tudo considerado, Lula já está com a popularidade na Lua e pode, nesta semana, beneficiar-se de um modelo político fisiológico eficaz de administração de seus votos no Congresso. Pobre oposição.

CLÓVIS ROSSI Fim da história, de novo?


SÃO PAULO - Quando esteve pela primeira vez em Davos, para o encontro anual de 2003 do Fórum Econômico Mundial, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu a Klaus Schwab, fundador do Fórum e seu presidente, um diálogo entre o mundo de Davos e o "povo de Porto Alegre", onde então se reunia o Fórum Social Mundial.
Schwab até ensaiou uma aproximação com Oded Grajew, um dos idealizadores do Fórum Social Mundial. Não passou de ensaio, talvez porque o "povo de Porto Alegre" parecia temer o contágio.
Schwab chegou a convidar para o encontro de Davos sindicalistas e representantes de ONGs, inclusive daquelas mais críticas. Fizeram algum sucesso até porque eram os únicos a dizer coisas diferentes, já que os políticos, também presenças constantes em Davos, haviam todos (Lula inclusive) se acomodado aos conceitos do chamado pensamento único.
Aos poucos, os alternativos foram sumindo de Davos. Os manifestantes também. Neste ano, não havia mais que uma dúzia deles, incapazes de chamar a atenção de quem quer que seja.
O "povo de Porto Alegre" foi-se tornando irrelevante para Davos. Agora que o Fórum Social Mundial resolveu descontinuar as suas reuniões, pelo menos até 2009, a irrelevância só fará aumentar.
É uma pena. Vozes alternativas são essenciais para não deixar a humanidade acomodar-se, como se a história tivesse de fato terminado, como pretendeu, anos atrás, Francis Fukuyama, ao proclamar o irreversível triunfo do capitalismo e da democracia.
O fato de o comunismo ter perdido só significa que o capitalismo é melhor que o comunismo. Mas não quer dizer que não precise de ajustes ou de vozes críticas. Foram elas, para ficar em um só campo, que puseram na agenda a questão ambiental que tardiamente se incorpora ao mundo de Davos.

Míriam Leitão - Destravar usinas



Panorama Econômico
O Globo
31/1/2007

O governo acha que sai hoje a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a usina de Belo Monte. Isso destravaria os trabalhos de preparação do licenciamento da hidrelétrica do Xingu, que tem uma complicação a mais por afetar terras indígenas. O Congresso precisou ser ouvido, mas uma liminar suspendeu os estudos preparatórios. O governo acredita que a liminar será cassada hoje. O Ministério de Minas e Energia acredita também que outras duas polêmicas usinas, as do Rio Madeira, estarão com licença prévia em 15 de fevereiro.

O ministro Silas Rondeau diz que o planejamento do MME prevê um crescimento de 4% a 5% ao ano nos próximos quatro anos. Em parte, com a ajuda de São Pedro:

- Há uma excelente hidrologia. Das 104 usinas da Região Sudeste, 52 estão vertendo (com água excedente no reservatório). Sobradinho e Furnas, que são o pulmão do Sudeste, vão verter até o mês que vem. Se a economia crescer a 5%, não nos faltarão mais que 600 MW; isso é energia equivalente a só uma hidrelétrica, nada que possa significar um apagão.

O ministro diz que poderia faltar energia se não estivessem sendo tomadas as providências que estão sendo tomadas. Porém, quando Rondeau fala, ele considera que tudo vai dar certo, e o ponto dos especialistas é que nada tem dado certo nessa área. A torcida pode ser grande, mas acontecer como o planejado não tem sido regra no setor, cheio de entraves e dúvidas fundamentadas sobre o custo-benefício de cada obra.

Hoje, Rondeau acha que sairá a autorização do STF para que se retomem os estudos ambientais de Belo Monte, no Xingu. A usina havia sido programada para produzir 11 mil megawatts. Será feita em duas etapas para alagar menos terra. A primeira etapa, quando estiver concluída, produzirá 5.500 MW. Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, terão uma capacidade de geração que vai oscilar muito, admite o ministro de Minas e Energia, exatamente pela tecnologia escolhida.

As usinas do Madeira são criticadas pelos ambientalistas, por serem no meio da floresta; pela Bolívia, pois eles acreditam que o regime de águas da cabeceira do rio que fica em território boliviano será afetado; por outras empresas do setor, por acharem que é um jogo marcado para ganhar o consórcio Furnas-Odebrecht, que prepara os estudos iniciais; pelos fiscalistas, porque custarão caro demais; pelos adversários do ambientalismo, porque acham que o governo fez uma concessão que não deveria ter sido feita ao usar a tecnologia bulbo, que dará mais incerteza à geração.

Um empresário me disse o seguinte: "A escolha pela tecnologia bulbo fará com que as usinas funcionem a fio d"água, e isso significa que, na maior parte do ano, não vão produzir energia." Perguntei a Silas Rondeau se esse raciocínio era verdade, e ele respondeu:

- Quase verdade.

Os contra-argumentos do ministro: daqui para diante, como é feito na Europa e no Japão, a maioria das hidrelétricas vai usar a tecnologia bulbo, que reduz muito a necessidade de alagamento. Quando elas estiverem operando a toda carga, vão produzir 6.400 MW, mas aí, como o sistema é interligado, as hidrelétricas do Sudeste poderão poupar água em seus reservatórios e produzir mais na época da seca no Norte, quando a energia de Madeira cairá para 2.000 a 3.000 MW.

O ministro admite que essas usinas maiores ainda vão demorar. Com o STF liberando a conclusão dos estudos hoje sobre Belo Monte, eles começarão a ser feitos. Vão demorar. São o que chamam de "peça antropológica", para cumprir a Constituição, pelo fato de afetar terra indígena. A licitação deve ser só em 2008. Já as do Rio Madeira podem ser licitadas este ano ainda, na opinião do ministério.

Só que elas não vão produzir energia até 2010. Estarão em construção. No caso do Rio Madeira, Furnas e Odebrecht fizeram todos os estudos iniciais e o projeto. Isso significa que elas já ganharam a licitação?

- Não. Pela lei, qualquer empresa pode fazer os estudos técnicos e, se eles perderem a concorrência, serão ressarcidos pelos custos. Eu nem sei se é Furnas que vai estar no consórcio. Pode ser a Eletrobrás - diz Silas Rondeau.

O gás natural terá um pequeno aperto em meados de 2008, admite o ministro. Mas ele acha que, a partir do segundo semestre, tudo se resolverá, quando a Petrobras estiver produzindo GNL no Rio e em Pecém, no Ceará.

- E esse gás a Petrobras importará do mundo, de onde tiver.

Isso reduz a dependência em relação à Bolívia, até porque a situação lá voltou a se complicar, segundo técnicos especializados em energia. O novo ministro Manuel Morales é um radical como era o ex-ministro Andrés Soliz Rada. E ainda é amigo próximo de Evo Morales. Os dois moraram juntos numa espécie de república até recentemente. Amigos de fé, Morales e Morales - que não são parentes, mas é como se fossem - vão agora exigir novos preços da Petrobras. O atual é corrigido com base numa cesta de óleos, só que o preço do petróleo está em queda. Já se prevê confusão entre os técnicos.

- A nomeação de Morales significa, na prática, a volta de um Soliz Rada. E com mais poder - comenta um técnico.

A Petrobras também terá problemas com o Equador, mas por bons e sólidos motivos: ela ganhou uma licitação num governo anterior para explorar petróleo no meio de uma reserva de biosfera da Humanidade. O novo governo deve rever isso.

Em meio às incertezas no setor, o ministro Silas Rondeau não nega que os problemas existam, mas garante que o governo está trabalhando neles.


Merval Pereira - Milho para as galinhas



O Globo
31/1/2007

Quando o presidente Lula, na sua fala na reunião de Davos, disse que os Estados Unidos deveriam deixar o milho para alimentar as galinhas, desistindo de fabricar etanol com ele, pode não ter sido muito delicado, mas estava chamando a atenção para o fato de que o etanol fabricado com cana-de-açúcar, como no Brasil, é economicamente mais viável do que o fabricado nos Estados Unidos, e subsidiar os plantadores de milho nessa corrida para um combustível alternativo é mais uma armadilha a ser desmontada na retomada da Rodada de Doha para liberalizar o comércio agrícola no mundo.

A reação da França e de alguns países com os mesmos interesses agrícolas, como a Áustria e a Irlanda, não foi uma surpresa para o governo brasileiro, que não vê nessa retomada explícita do protecionismo francês nenhum grande obstáculo para o prosseguimento das negociações agora reabertas, mais pelo senso de urgência política do que por qualquer outro motivo técnico.

O comissário europeu Peter Mendelson, acusado de ter extrapolado o seu mandato ao retomar as negociações da Rodada de Doha, garantiu ao chanceler brasileiro Celso Amorim que continuará atuando firmemente para as negociações andarem, e tenta unir os países europeus em torno de um sentimento comum, colocando os Estados Unidos como o adversário nas negociações, e não os países do G-20, grupo de emergentes que negociam em conjunto a liberalização do comércio internacional.

A Europa espera o movimento dos Estados Unidos para fazer sua proposta, pois teme abrir mão de seus subsídios e ficar exposta à pressão econômica americana. Há rumores, por exemplo, de que os Estados Unidos colocariam o limite de U$17 bilhões como ponto de partida para as negociações, mas esse número embute uma larga margem de manobra, pois no ano passado os subsídios agrícolas custaram cerca de U$12 bilhões.

A União Européia tem sinalizado que aceita chegar a um corte de 54% dos subsídios, como quer o G-20, mas ainda não apresentou uma proposta detalhada. Será preciso ver por dentro da proposta se ela contempla setores importantes da agricultura, ou se apenas libera áreas periféricas que não atendem aos interesses dos países emergentes.

O movimento do presidente George Bush de pedir ao Congresso a ampliação do "fast-track", uma permissão especial para negociações comerciais sem depender da autorização prévia do Congresso, é um gesto político importante que, no entender dos negociadores brasileiros, neutraliza a reação contrária da França.

A ministra da Agricultura dos Estados Unidos, Susan Schwab, que é a negociadora do lado americano, dissera ao chanceler Celso Amorim na reunião que tiveram em Genebra, na segunda-feira, que o presidente Bush não apenas faria o pedido ao Congresso, como um discurso anunciando formalmente o pedido. O entendimento é que, ao fazê-lo, o presidente americano já teria indicações de que o Congresso, mesmo com a maioria democrata, historicamente mais protecionista que os republicanos, aprovará a extensão da permissão especial, que se encerra em julho.

A preocupação do G-20 era que algum avanço pudesse ser feito até abril ou maio, com o temor de que o novo Congresso não aprovasse a prorrogação do Trade Promotion Authority (TPA), o que previsivelmente dificultaria as negociações, pois as decisões teriam que ser aprovadas pela maioria democrata. O presidente Lula, nas reuniões com dirigentes de outros países no Fórum Econômico Mundial em Davos, conversou sobre a necessidade de retomar as negociações com um sentido político mais aguçado.

Com o primeiro-ministro da Inglaterra, Tony Blair, foi muito enfático ao frisar que os países mais ricos do mundo têm obrigação de flexibilizar suas posições, para permitir que as economias emergentes possam competir em igualdade de condições no mercado internacional. A força do Brasil no campo agrícola é que o faz ser o líder informal do G-20. Um estudo divulgado pela União Européia mostra que o país será o de maior crescimento em produção e exportações no setor agrícola no mundo até 2020, ao mesmo tempo em que os países europeus perderão competitividade.

Por isso o governo brasileiro vem dando um tom político às discussões, exatamente para evitar que sua força econômica na agricultura o coloque como uma ameaça tanto a europeus quanto a americanos. O próprio presidente Lula tem enfatizado o lado político da decisão de liberalizar o comércio mundial, e anunciou que nos próximos dias telefonará para vários dirigentes de países envolvidos na retomada de negociações da Rodada de Doha para pressionar politicamente por uma decisão.

Em todas as conversas que tem mantido sobre a abertura do comércio internacional agrícola, o presidente Lula se utiliza do exemplo brasileiro do etanol da cana-de-açúcar, e do biodiesel, extraído da mamona, do girassol, para mostrar as oportunidades que os países desenvolvidos têm para ajudar no crescimento econômico dos emergentes e de países pobres como os da África. Ele está insistindo em que os países ricos financiem programas de substituição de combustível com a utilização do etanol e do biodiesel, o que uniria dois objetivos: incentivar as economias emergentes e despoluir o planeta.

A pressão sobre os países ricos foi retratada durante a reunião de Davos em uma charge do "International Herald Tribune", jornal editado na Europa pelo "The New York Times", que mostra o presidente Bush em seu gabinete tendo em frente um rude agricultor produtor de etanol, com as botas enlameadas sujando os tapetes da Casa Branca. Bush, pensativo, suspira: "Saudades dos príncipes sauditas".

Dora Kramer - Vitória pírrica



O Estado de S. Paulo
31/1/2007

“Mais uma vitória como essa e estarei arruinado”, constatou Pirro, rei de Épiro, ao receber os cumprimentos por derrotar os romanos na batalha de Heracléia, contabilizando perdas monumentais. Deu origem à expressão “vitória de Pirro”, ou “vitória pírrica”, bem adequada à sinuca em que se envolveu o governo Luiz Inácio da Silva na disputa pela presidência da Câmara dos Deputados.

O Palácio do Planalto, que antes ganharia em qualquer hipótese, agora recolherá perdas com qualquer resultado. Se ganhar Arlindo Chinaglia, do PT, terá de administrar um ambiente conflituoso decorrente da vocação petista para o atrito e da acentuada polarização entre governo e oposição no Parlamento; se vencer Aldo Rebelo, PT e PMDB disputarão com ele o poder no cotidiano.

Se por raciocínio hipotético remoto o vitorioso for Gustavo Fruet, nem se fala: será o PSDB na presidência da Câmara. É verdade que um partido que mal vem se agüentando nas pernas teria pouca chance de fazer bonito em posição de destaque, mas tanto poderia se perder de vez como também poderia se aprumar em torno da inesperada vitória.

Todas as avaliações internas apontam para a realização de um segundo turno entre Aldo e Arlindo e todas elas encerram a perspectiva de uma guerra de extermínio.

Tanto que, desde a pesada de mão do candidato à reeleição no debate de segunda-feira, dizendo que a vitória do PT fará mal à democracia, a palavra de ordem na base governista vem sendo a da necessidade de “reconstrução” da unidade da tropa após a disputa.

Portanto, os aliados de Lula assumem-se em vias de destruição. E por que isso, se parecia tudo tão bem arrumado logo após a reeleição do presidente da República?

Muito provavelmente por excesso de esperteza ou presunção. Presunçoso, Lula avocou para si o papel de articulador, menosprezando a evidência de que presidentes precisam de anteparos, principalmente quando se trata de arbitrar divergências. Esperto, quis adiar as insatisfações decorrentes da divisão dos ministérios para depois da escolha do presidente da Câmara e acabou contratando uma crise desnecessária.

Se Lula acredita que a confusão lhe será favorável, pois reinará mais forte quanto mais fragilizado e desorganizado estiver o Congresso, erra no cálculo, pois Parlamento à deriva é uma bomba de efeito imprevisível.

A endurecida de Aldo Rebelo no debate dá a medida de seu engasgo com o PT e, senão com o presidente diretamente, pelo menos com boa parte do governo.

Primeiro, foi incentivado a disputar a reeleição, coisa que não faria a bordo de seu minúsculo PC do B sem o respaldo do Planalto. Depois, foi praticamente convidado a se retirar da disputa pelos ministros Tarso Genro e Dilma Rousseff.

Em seguida, precisou desmentir que aceitaria um ministério para desistir da presidência da Câmara, versão que equivalia a comparar Aldo Rebelo a uma espécie de Severino Cavalcanti. A ofensiva dos petistas que reclamaram da “inadequação” e “deselegância” da atitude do oponente no debate de segunda-feira chegou ao ponto de o presidente Lula mandar que o PT não exagerasse na humilhação a Rebelo.

Resultado, o deputado escolheu o momento preciso, um debate com transmissão ao vivo três dias antes da eleição, para socar o fígado do adversário, apontando risco à democracia no caso de vitória e concentração de muito poder na seara petista.

Puro sofisma para, na luta política, alimentar e capitalizar animosidades. Em 2003, o PT, com o beneplácito de Aldo Rebelo, então líder do governo, não só concentrou o mesmo poder, na presidência de João Paulo Cunha, como o fez em situação de quase unanimidade nacional.

Nem por isso a democracia esteve em jogo. Por que estaria agora que o País enxerga muito joio e pouco trigo no partido, por isso mesmo fragilizado na capacidade de impor suas vontades?

Se o argumento de Aldo Rebelo não se sustenta na realidade, revela-se como sinal de que, passada a eleição, um articulador político será pouco para o governo construir uma relativa paz entre governistas no Congresso. O presidente Lula precisará de um mágico.

Carreiras solo

Cada qual a seu modo, os governadores José Serra e Aécio Neves vão produzindo fatos em que são protagonistas únicos em cena.

Logo depois do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento Serra calou, esperou todo mundo falar e, três dias depois, emitiu sozinho sua opinião sobre o pacote.

Anteontem, Aécio desembarcou na reunião dos governadores em Brasília e comandou o espetáculo, ignorando o combinado entre os colegas da Região Sudeste de serem representados por Paulo Hartung, do Espírito Santo.

Escorpião

Constatação mordaz de um tão desalmado quanto qualificado tucano a propósito da relação entre os governadores de São Paulo e Minas Gerais: “O Serra sempre imagina que o Aécio está engendrando alguma coisa contra ele. O Aécio tem certeza.”

terça-feira, janeiro 30, 2007

Opinião: A anistia que não deu certo Jarbas Passarinho

Líder no Senado do governo João Figueiredo, defendi, da tribuna, o projeto de anistia, hoje repudiado por esquerdistas. No Brasil, o ciclo militar ia terminar com a soma dos contrários, isto é, de um lado a pressão popular, que crescera desde a revogação do AI-5 em outubro de 1978, e, de outro, o sincero desejo da grande maioria dos militares de retornar à prevalência do poder civil.

Dois grupos, porém, perturbavam a desejada rapidez da remessa da mensagem governamental. Civis, especialmente políticos, radicalizavam exigências de vitoriosos. Cunharam a expressão: anistia ampla, geral e irrestrita. Minoria de militares, por seu turno, ainda resistia. Haviam vencido a luta armada e, nas eleições recentes, o PDS ganhara a maioria do colégio eleitoral, que lhe assegurava, pela vontade popular, a eleição do substituto do presidente Figueiredo.

A solução foi dada depois de um trabalho de planejamento que considerava as duas correntes: a minoritária militar, que gerara o episódio do Rio Centro, devidamente contida, e a dos provocadores esquerdistas na insistência da imediata redemocratização sem restrição de qualquer ordem. Do presidente eu ouvi que a anistia não fosse dada como perdão, que pressupunha arrependimento, o que não esperava nem pedia, mas como esquecimento, para reconciliação nacional. O senador Petrônio Portella e o ministro Golbery, considerando que houvera violências típicas da "guerra suja", sem respeito à Convenção de Genebra, pertinente às guerras regulares, insistiram na reciprocidade da anistia, o que, no fundo, esquecia terrorismo e sua contrapartida, a tortura. Politicamente, o governo antecipava o fim do bipartidarismo, para impedir que todos os exilados, uma vez anistiados, engrossassem o MDB.

O governo encaminhou um projeto que a oposição considerou insuficiente. Comandada por Ulysses Guimarães, tentou aprovar um substitutivo. Paradoxalmente, menos amplo, pois enquanto o projeto anistiava Leonel Brizola, o substitutivo não, bem assim os que haviam sido cassados antes do Ato Institucional, ou seja, aqueles que foram cassados entre 2 e 9 de abril de 1964. A bancada governista chegou a rebelar-se e querer votar o substitutivo, pois as galerias estavam tomadas por agitadores frenéticos a nos insultar e nós estávamos sendo mais generosos. Corria no plenário que o substitutivo fora uma represália do PCdoB (ainda não legal) junto a Ulysses Guimarães, porque considerava Brizola o responsável pelo golpe preventivo de 64. Outras leis se seguiram, com o tempo, à anistia aprovada, inclusive a das indenizações por vezes milionárias.

Agora o objetivo da esquerda, que nunca aceitou o esquecimento, é imitar a Argentina e punir os que aponta como terroristas. A professora Flávia Piovesan, em longa entrevista ao Estado de São Paulo, critica a Lei da Anistia "que não nasceu de um pacto nacional, mas da voz de um regime decadente". Para a ilustre mestra: "De um lado estavam os delinqüentes, que representavam o Estado. Do outro, as vítimas". Enquanto sustenta que é preciso punir os crimes da contra-insurreição, devo entender que chama de vítimas os que assassinaram um major alemão, aluno da Escola de Estado Maior do Exército, por engano, pois desejavam matar um capitão boliviano que prendera Guevara. Ou os que fizeram explodir um carro-bomba na frente do quartel do Exército, em São Paulo, matando um soldado de sentinela. Ou os autores da bomba no aeroporto de Guararapes, no Recife, que matou um guarda civil, um jornalista e um almirante e feriu gravemente dezenas de civis, homens, mulheres e crianças que estavam no saguão do aeroporto entre os que iam receber o general Costa e Silva. Ao autor desse ato terrorista (que está vivo), a mestra chama de vítima dos delinqüentes que defendiam o Estado.

Quando pessoas de elevado grau intelectual chegam a ser simplórias e maniqueístas, pondo de um lado as "vítimas" e do outro "os delinqüentes", é fora de dúvida que a "guerra suja" só é horripilante quando combateu as guerrilhas comunistas, e Marighella, que defendeu em jornal parisiense o terrorismo, era um idealista sem mácula. A anistia, de fato, não prosperou.

Dora Kramer - Conflito permanente



O Estado de S. Paulo
30/1/2007

Não se pode dizer que o debate dos candidatos à presidência da Câmara ontem tenha produzido vencedores ou perdedores, em termos de desempenho pessoal ou de conquista de votos para a eleição de quinta-feira.

No máximo, o encontro de Arlindo Chinaglia, Aldo Rebelo e Gustavo Fruet frente às câmeras permitiu a confirmação do lugar comum de que quem ganha é a sociedade com a exposição de pontos de vista e afirmação de compromissos para posterior cobrança.

Mas uma evidência se impôs ali: o PT é um partido com vocação inequívoca para a polêmica. Sua natureza convida mais ao conflito que à conciliação.

A disputa na Câmara, que começou tranqüila, fava contada para o governo, com uma oposição dividida entre o apoio do PFL à reeleição do atual presidente e o PSDB perdido em sua constrangedora ausência de rumo, agora é campo de atrito aberto entre os dois candidatos inicialmente governistas (Aldo Rebelo acentuou o verbo “fui” para definir sua posição de aliado), com o candidato petista deixando-se levar pelo temperamento e aceitando todas as provocações dos oponentes.

A indignação de lideranças petistas depois do debate - contra Rebelo, não contra o oposicionista Fruet - aumentou a animosidade. Passaram recibo quando poderiam ter simulado indiferença de vencedor.

Arlindo Chinaglia exagerou ao apontar a existência de “ódio” e “preconceito” contra o PT. Se dissesse que o partido desperta fortes emoções e que elas nem sempre são positivas, teria posto as coisas de forma mais adequada e exibido atributos de serenidade indispensáveis a quem postula o cargo.

Quando Aldo Rebelo se referiu ao risco da concentração de poder nas mãos de um só partido caso o PT vença a eleição e Gustavo Fruet apontou o significado simbólico do apoio de Severino Cavalcanti e companhia, Arlindo Chinaglia reagiu com exasperação. Mas seus adversários não estavam inventando nada.

A reação espinhosa confirma que se algo atua contra o partido não é o preconceito, mas um conceito firmado a partir de suas atitudes.

A decisão de disputar a presidência da Câmara a despeito da manifestada preferência do presidente da República pela reeleição de Aldo Rebelo - opção menos traumática - foi sustentada na necessidade de o partido recuperar competitividade política e compensar outras perdas, como a redução de ministérios sob seu controle.

Nada demais no fato de um partido ter projeto de poder. Só não pode reclamar quando compra uma briga e a força de seu ataque dá margem ao contra-ataque do oponente em igual proporção.

Da mesma forma, o PT não pode pretender que sua complacência com gente envolvida em escândalos de corrupção seja aceita sem críticas. A constatação é real. Se ao partido soam desconfortáveis as cobranças e as imputações que lhe são feitas, caberia a ele mudar. Teve tempo e oportunidade de sobra, mas preferiu dobrar a aposta quando se sentiu fortalecido pelas urnas e prosseguiu na lógica da “luta continua”.

Pode até ganhar a parada, mas o preço será o do conflito permanente.

Uns e outros

O projeto de rearrumação interna do PSDB já começou a ser arquitetado em São Paulo. Um de seus itens primordiais - o fortalecimento de uns e o enfraquecimento de outros na estrutura partidária - é para ser posto em prática sem alarde.

Entre esses “outros” estão figuras do tucanato paulista ligadas a Geraldo Alckmin e vistas como entraves ao plano do governador José Serra de fazer do atual prefeito, o pefelista Gilberto Kassab, o candidato à prefeitura em 2008.

Certos “alckimistas” são tidos como personagens de terceira linha no cenário nacional, que dispõem de espaço desproporcional à sua real importância. Como têm capacidade de atrapalhar a aliança com o PFL na eleição municipal de daqui a dois anos, passo-chave para a armação da disputa presidencial em 2010, à medida do possível terão racionada sua cota de oxigênio político.

O objetivo é desidratá-los para que, no momento da decisão da candidatura municipal, já não disponham de músculos suficientes para insistir na candidatura própria. Seja de Alckmin ou de algum outro tucano ligado a ele.

Hoje dentro do PSDB se atribui ao barulho desse grupo o erro de cálculo cometido na decisão sobre a candidatura presidencial de 2006.

Em retrospectiva, os tucanos analisam que a expectativa de crescimento de Alckmin era um fenômeno inexistente, referido exclusivamente no cenário de São Paulo.

Não querem, em 2008, a reedição da briga de foice interna que paralisou o PSDB no início do ano passado, enquanto Lula recuperava forças para a campanha pela reeleição.

Oficialmente, porém, não há nada. Continuam todos amigos de infância.

Mas a amizade dos grupos ligados a José Serra e Geraldo Alckmin é tão sólida quanto a aceitação do senador Tasso Jereissati na presidência do PSDB e a veracidade da versão segundo a qual a crise no partido está superada.

Os crediários de Lula 1 - Vinícius Torres Freire



Folha de S. Paulo
30/1/2007

Brasileiros trocam dívidas no cheque especial e no cartão pelo crédito consignado; crédito cresce bem; PIB não

O TOTAL de empréstimos no cartão de crédito e no cheque especial era equivalente ao saldo do crédito consignado, aquele com desconto em folha de pagamento, ali pelo final de 2004, meados do governo Lula. No final de Lula 1, o saldo do consignado é o dobro do total de dívidas tomadas por meio de cheque e no cartão, que são carésimas e receitas quase certas de falência pessoal (se considerados todos esses números como proporção do total de créditos pessoais). É o que se depreende do balanço do setor financeiro, publicado ontem pelo Banco Central.
Seria preciso mais detalhes das operações de empréstimos pessoais a fim de entender melhor como as famílias lidaram com suas dívidas nesses últimos dois anos, mas os números indicam que as pessoas trocaram dívidas caras por dívidas mais baratas. Ainda que as taxas de juros dos créditos consignados sejam de também natureza extorsionária, parece que o cidadão aproveitou a oportunidade para baratear um pouco o tamanho da sua pendura e de seus papagaios.
Apesar de todas as críticas, entre elas a de que o crédito consignado induz velhinhos a se endividar e que estimula endividamentos incontornáveis, a medida do governo Lula pareceu positiva. De resto, o consignado, apesar de ainda carésimo, ressalte-se, é mais uma evidência de que as taxas de juros são menores em empréstimos com maiores garantias -como já podia ver nos financiamentos de automóveis e, recente e timidamente, nos empréstimos para imóveis.
Apesar de alertas meio exagerados, o aumento do crédito não provocou uma explosão nos atrasos de pagamentos e na inadimplência, embora a quantidade de créditos ruins permaneça em níveis algo desconfortáveis desde o segundo trimestre do ano passado. Os juros bancários não acompanharam proporcionalmente a queda dos juros básicos (de mercado e do Banco Central). Desde maio, o aperto no "spread", aliás, foi proporcionalmente maior que a alta na inadimplência ("spread" é a diferença entre a taxa pela qual os bancos captam dinheiro e a taxa pela qual emprestam, grosso modo).
Nos quatro anos do governo Lula, o volume de crédito em relação ao PIB subiu. Isso jamais havia acontecido desde o Plano Real, embora a participação dos financiamentos sobre o PIB seja ainda menor que a de 1995, que pode ser um ano estatisticamente esquisito e de vôo de galinha econômico. Mas desde o Plano Real não tínhamos quatro anos tão calmos na economia brasileira, cortesia da estabilidade mundial.
Enfim, a gente fica imaginando o que foi feito da expansão do crédito: como ele circulou pela economia e a modificou? Os números mais gerais dão a impressão de que a expansão fiscal (dos gastos do governo, em especial com os mais pobres) e do crédito está financiando muito consumo, o que está aparente nas vendas do varejo. Como o brasileiro em geral é pobre, é alta sua propensão a consumir (isto é, gastar cada real adicionado a sua renda). Mas, dados o câmbio, os impostos e outros sabidos rolos da economia brasileira, tal impulso de consumo está pesando na balança do comércio e, por ora, ajudando a puxar o PIB para baixo.

O mundo começou e acabará sem o homem- Gilberto Dupas



Folha de S. Paulo
30/1/2007

Há fortes evidências de que a civilização está em xeque. Urge aos governos e às instituições internacionais tomarem medidas drásticas

ESSA GRAVÍSSIMA advertência de Lévi-Strauss serve como um grande alerta para o desastre ambiental decorrente das lógicas da globalização e do consumismo.
Mas os que lideram o discurso hegemônico sobre a direção do que chamam "vetores tecnológicos do progresso" tentam abafar as sirenes de alarme; somente alguns as ouvem e muito poucos agem.
Martin Rees, presidente da Royal Society, lembra que em apenas um instante minúsculo da história da Terra -os últimos cem anos- o padrão de desenvolvimento que escolhemos começou a provocar devastadoras mudanças ambientais no fino e delicado habitat da terra, ameaçando o futuro do homem.
Não temos espaço aqui para citar as inúmeras evidências científicas disponíveis, as quais podem ser encontradas em detalhes no meu livro "O Mito do Progresso". Fiquemos com algumas conclusões alarmantes.
A queima de petróleo, carvão e gás elevou a concentração de CO2 (dióxido de carbono) na atmosfera de 280 ppm (partes por milhão) em 1860 para 365 ppm em 1990; é provável que atinja 700 ppm em 2100. Assim, os solos ficarão mais secos e as fortes estiagens serão em maiores número e intensidade. A temperatura média global pode subir até 6ºC nos próximos 100 anos. O gelo polar derreterá e poderá elevar o nível dos oceanos em até 94 cm, o que exigiria a remoção de mais de 90 milhões de pessoas.
Na Europa e nos Estados Unidos, por volta de 50% dos lagos e rios estão gravemente poluídos. De todos os ecossistemas mundiais, pelo menos 60% estão sendo explorados de maneira não sustentável, em processo de degradação que pode ser irreversível em 50 anos. A expansão agrícola de 1945 até 2004 foi superior à soma dos séculos 18 e 19; a destruição ambiental resultante agrava o percentual de plantas, mamíferos, aves e anfíbios em extinção; algumas dessas espécies nem sequer foram catalogadas.
Para Robert May, "estamos queimando os livros antes de aprendermos a lê-los". Propõe-se um esforço de emergência para recolher, congelar e armazenar amostras da fauna completa de floresta tropical como uma espécie de seguro para o futuro.
O planeta também foi se tornando um imenso emissor de ondas eletromagnéticas, produto das múltiplas transmissões de rádio, televisão, telefone celular e radar, cujas conseqüências exatas sobre o meio ambiente e a saúde humana ainda estão por ser determinadas.
No entanto, já se sabe que bastam seis horas pedalando em meio a tráfego intenso para danos permanentes poderem ser causados aos vasos sangüíneos. A concentração de espermatozóides no sêmen dos homens tem caído assustadoramente; as hipóteses são consumo de produtos industrializados, estresse, poluição, medicamentos, produtos contra queda de cabelo, exposição à radiação, agrotóxicos, produtos químicos contidos em roupas, PCB -substância tóxica dos plásticos de embalagem- e outras toxinas da vida moderna. "São coisas que as pessoas vão incorporando e fazem um estrago tremendo nas mitocôndrias e no DNA", diz um cientista.
A revista científica "Human Reproduction" alerta para as relações entre aqueles fatores de poluição e a má-formação dos fetos ou os abortos espontâneos. O número de bebês prematuros cresceu 31% nos últimos 24 anos nos EUA e atinge um em cada oito nascidos, segundo pesquisa da Universidade de Stanford.
Enquanto isso, os compromissos do Protocolo de Kyoto estão engavetados. Os EUA produzem dez vezes mais CO2 per capta do que a média dos países em desenvolvimento; e o seu Departamento de Energia anuncia recordes anuais desde 2005, quando já se havia atingido quase o dobro da média anual de 1990. O Canadá aumentou suas emissões de gases em 57% no período 1990-2005. Os únicos índices um pouco mais estáveis estão na União Européia.
Há, pois, fortes evidências de que a civilização está em xeque. Urge aos governos e às instituições internacionais tomarem medidas preventivas drásticas imediatas em nome dos óbvios interesses dos nossos descendentes. Mas, como fazê-lo, se o modelo de acumulação que rege o capitalismo global exige contínuo aumento de consumo e sucateamento de produtos, acelerando brutalmente o uso de recursos naturais escassos? O dilema é ao mesmo tempo simples e brutal: ou domamos o modelo ou envenenamos o planeta, sacrificando de vez a vida humana saudável sobre a terra.

Médicos em emergência

Médicos em emergência

EDITORIAL
Folha de S. Paulo
30/1/2007

DOS ESTUDANTES de medicina que se formaram no ano passado no Estado de São Paulo, 38% foram reprovados num exame de proficiência aplicado pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp). É um resultado preocupante.
Uma taxa de quase 40% de insucesso num setor tão importante como a medicina já seria grave sob quaisquer circunstâncias. Muito pior quando se sabe que esse número está subestimado.
A prova do Cremesp não é obrigatória nem necessária para o exercício da profissão. Candidatam-se a fazê-la só formandos que se sentem preparados. Se todos os 2.203 alunos do sexto ano em 2006 tivessem realizado o teste (e não apenas 688), os resultados teriam sido ainda mais alarmantes. Na versão 2005 do exame -a primeira aplicada- a taxa de reprovação ficou em 31%.
O próprio desempenho dos alunos revela que é urgente tornar obrigatório e nacional o exame de proficiência para médicos recém-formados, mais ou menos nos mesmos moldes do teste para advogados da OAB.
Os alunos, decerto, não têm culpa pela proliferação de escolas médicas -já são 29 no Estado de São Paulo- nem pelo baixo nível de alguns desses cursos, que deveriam ser fiscalizados pelo poder público. Vale mais, porém, o direito do cidadão de não ficar à mercê de médicos com graves falhas de formação.
Para agravar o quadro, por uma série de distorções históricas no Brasil médicos recém-formados costumam ser contratados para dar plantões em unidades de emergência. São alocados justamente onde a experiência clínica e a boa formação técnica podem evitar o pior.

Clóvis Rossi - O fantasma do cassino



Folha de S. Paulo
30/1/2007

A onda de crises financeiras que sacudiu o planeta na segunda metade da década passada começou com o colapso do baht, a moeda tailandesa. Lembro-me bem de que, em almoço na Folha, Carlos Heitor Cony brincou que jamais poderia imaginar, mesmo com toda a sua longa vivência no jornalismo, que um dia teria de saber o que era o baht.
Bom, no ano passado, quando o governo tailandês fez uma barbeiragem qualquer, mas não houve contágio no resto do mundo, a não ser rápido e superficial, ouviu-se um suspiro global de alívio.
O raciocínio não explicitado era o seguinte, caricaturando um pouco: se a Tailândia derrubou o mundo há dez anos, mas agora não aconteceu nada, a economia mundial está a salvo de crises financeiras.
Talvez. Mas dois pesos pesados da banca (oficial) não estão tão seguros. Zhu Min, vice-presidente do Banco da China, disse, durante o encontro anual do Fórum Econômico Mundial, que o mercado de derivativos representa a fabulosa soma de US$ 300 trilhões (sim, trilhões), ou oito vezes a riqueza produzida a cada ano pelo mundo, sem que a turma esteja realmente atenta ao fenômeno. Derivativos é a parte francamente cassino do jogo financeiro global.
Significa apostar em tudo, da cotação do boi à dos juros. O francês Jean-Claude Trichet, presidente do Banco Central europeu, ecoou Min ao dizer que a "criatividade e a sofisticação" dos novos instrumentos financeiros impedem que se saiba "plenamente onde os riscos estão".
O "Financial Times" põe em uma altura ainda mais vertiginosa o volume dos instrumentos "criativos": US$ 450 trilhões.
É tanto dinheiro que o mundo de Davos preferiu passar sobre o tema como gato sobre brasas, talvez por ser o único eventual futuro raio no céu azul desenhado para a economia planetária.

Decisão temerosa- Ives Gandra da Silva Martins




O Globo
30/1/2007

A ministra Dilma Roussef, com o apoio entusiástico do governador Roberto Requião, informou que é intenção do governo federal não privatizar as rodovias federais, apesar do fantástico sucesso que foi a privatização das principais rodovias estaduais, principalmente no Estado de São Paulo.

A qualidade das rodovias paulistas, hoje, não deve nada à das melhores rodovias européias ou americanas, em nível de segurança, atendimento e perfeição do leito carroçável.

A declaração da "número um" do governo Lula ocorre no momento em que, em diversas decisões, o Tribunal de Contas da União detecta superfaturamento nas obras públicas federais, além de nunca terem sido justificados os famosos contratos de publicidade que a imprensa denominou de "valerioduto".

Não discuto a seriedade da ministra Dilma, mas o que tem detectado o Tribunal de Contas da União e muitos dos tribunais estaduais é que sempre paga o poder público por serviços prestados por terceiros mais do que pagariam as empresas privadas.

É que a empresa privada pertence a alguém. Seus administradores buscam garantir o menor custo com a melhor qualidade, pois têm que responder aos controladores, que exigem eficiência e probidade, sob pena de pronto afastamento.

Na administração pública, infelizmente, não é o que acontece. A empresa pública "não pertence a ninguém". Quem disputa cargos e posições muitas vezes não está imbuído da intenção de prestar bons serviços públicos, mas de fazer um bom negócio pessoal. Impressiona verificar como muitos agentes da atualidade saem do serviço público muito mais ricos do que entraram, em contraste com figuras do passado, como, por exemplo, o excepcional presidente Campos Salles, que era muito mais rico quando assumiu a Presidência da República do que quando deixou o cargo.

Infelizmente, em todos os períodos históricos e em todos os espaços geográficos, a estatização de determinados serviços representa prestação de pior qualidade, com mais desperdício e, por isso mesmo, até mais onerosos do que se fossem prestados por particular. Nas rodovias, por exemplo, o estrago que a má qualidade da pavimentação provoca nos veículos e o elevado número de acidentes estão a demonstrar que o Estado não é o melhor prestador de serviços públicos nesta área.

Neste quadro, é, também, de se perguntar: o que foi feito com a receita da contribuição de intervenção no domínio econômico, especialmente voltada para a conservação das estradas? Parece, nada obstante o volume arrecadado, ter se esfumaçado, como alertou o Tribunal de Contas da União, sendo utilizada, no máximo, na operação "tapa-buracos" empreendida no início de ano eleitoral, e, mesmo assim, malfeita.

Parece-me ser equivocada a sinalização que fez a ministra Dilma - em face da péssima qualidade da malha viária federal, no governo Lula, nada obstante o aumento da arrecadação tributária, inclusive a de tributo específico para essa destinação -, merecendo, tanto dela como do presidente Lula, um exame mais atento.

Até por que é de temer, em função do loteamento de cargos para obter adesões partidárias no Congresso, que não venha a ser fácil controlar, nesse sensível setor, os superfaturamentos, que tanto têm preocupado o competente Tribunal de Contas da União.

Jogo de palavras


EDITORIAL
O Globo
30/1/2007

A resistência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em admitir a gravidade da situação do sistema previdenciário acaba de inspirar uma argumentação acrobática para justificar a inércia oficial diante do tema. Em Davos, na Suíça, ao participar do Fórum Econômico Mundial, Lula se declarou despreocupado com o tema, por entender que o déficit da Previdência seria na verdade do Tesouro nacional.

Como na Constituição de 1988 os trabalhadores rurais foram incluídos no INSS sem terem contribuído com um centavo sequer para o sistema, o presidente conclui que o desequilíbrio da Previdência se deve a uma medida de cunho social, a ser financiada por todos os contribuintes. Daí caber ao Tesouro nacional pagar a conta.

Fujamos do jogo de palavras e de discussões semânticas. Todo déficit público, previdenciário ou não, reflete-se de alguma maneira no Tesouro. E a inclusão dos trabalhadores rurais no INSS - uma entre várias outras decisões equivocadas da Constituinte de 1987 em matéria de finanças públicas - apenas acelerou a tendência de desestabilização do sistema. Mesmo que eles fossem hoje retirados do guichê de pagamentos de benefícios da Previdência, ainda restaria um rombo a ser coberto pelo Tesouro.

No ano passado, o INSS fechou "no vermelho" em R$42 bilhões, um crescimento preocupante de 11,9% sobre o resultado negativo de 2005. Isso porque, atento ao calendário eleitoral, o governo Lula concedeu um reajuste de 16% ao salário mínimo, com impacto direto nas contas previdenciárias. Sem os trabalhadores rurais, o déficit seria de R$13,5 bilhões.

Têm razão economistas e empresários que alertam para o crescimento explosivo dos gastos públicos corrente, em que se destacam as despesas previdenciárias. Esses gastos devem ultrapassar os 19% do PIB este ano, e, enquanto não forem contidos, continuará ilusório prometer queda da carga tributária. No Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo faz cortes seletivos de impostos. Nada que consiga retroceder a carga tributária total, na faixa dos 38% do PIB. E como o discurso oficial continua a ser no tom da interpretação dada por Lula ao déficit do INSS, os gastos continuarão em alta, o peso dos impostos se manterá elevado e, por tudo isso, a economia não crescerá como o Planalto promete.

Luiz Garcia - Só para os outros



O Globo
30/1/2007

Faz sentido que juízes e promotores tenham direito a posse e porte de armas. Mas não é isso que está sendo motivo da atual briga de uns e outros com a Polícia Federal.

Cumprindo o Estatuto do Desarmamento, a polícia exige de todos os cidadãos que se sentem mais seguros com um revólver na cintura a prova de que sabem usá-lo. É exigência óbvia: evita o tiro no próprio pé e faz da arma um instrumento de segurança pessoal, não um risco para quem estiver por perto sempre que John Wayne se sinta obrigado a sacá-la.

No entanto, juízes e promotores estaduais estão brigando pelo perigoso privilégio de serem dispensados de uma obrigação sensata, exigida dos demais cidadãos. Deve-se reconhecer que eles - ou pelo menos os que atuam na área criminal - convivem com o risco de serem atacados por criminosos que tenham denunciado e condenado. Mas não parece ser perigo maior do que aquele que ameaça, por exemplo, comerciantes de favelas ou donos de botequins em qualquer bairro.

O Estatuto do Desarmamento é uma lei para todos. Para o porte de armas (algo mais sério que a posse), exige-se "aptidão psicológica para manuseio de arma de fogo" (o que, vamos admitir, é um tanto subjetivo), mas também - e é só isso que está sendo discutido - "comprovação de capacidade técnica" demonstrada em estande de tiro. Inteiramente razoável: faz com que a arma só seja usada por quem sabe não apenas quando sacá-la mas também como usá-la.

Mas tanto a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais como o Conselho Nacional do Ministério Público estão em pé de guerra contra a exigência. Por enquanto, estão perdendo a briga: no primeiro embate, o Supremo Tribunal Federal negou liminar pedida pelos juízes contra a Polícia Federal, que exige deles o teste da "capacidade técnica". Os promotores simplesmente enviaram uma recomendação à PF no sentido de que não lhes seja exigida a prova de que sabem atirar. E publicamente denunciam a exigência como absurda.

O importante no imbróglio é o fato de que a polícia apenas pediu que juízes e promotores façam o que uma lei exige de todos os cidadãos. Não estaria cumprindo seu dever se não o fizesse.

É curioso que porta-vozes de juízes e promotores, mesmo defendendo o privilégio com unhas e dentes (armas que todos nós, graças a Deus, temos o direito de portar e usar), reconhecem que é preciso saber usar uma arma para ter o direito de ter uma na cintura.

Um representante dos juízes disse concordar que "não se deva andar pelas ruas com armas sem saber manuseá-las". E um porta-voz dos promotores propôs que uma resolução do Conselho do Ministério Público determine que seus integrantes façam cursos práticos antes de comprar armas, o que já acontece em alguns estados.

Quem reconhece a necessidade do aprendizado está bem perto de aceitar a exigência de comprová-lo. Dar esse passo seria bem melhor do que essa história feia de alegar que uma lei sensata - que em nada ofende quem a obedece - é só para os outros.

Merval Pereira - Vitória política



O Globo
30/1/2007

A retomada das negociações da Rodada de Doha, decidida em uma minicúpula reunida em Davos, ao final da reunião do Fórum Econômico Mundial, não é uma garantia de que vá se chegar a um consenso para uma maior liberalização do comércio internacional, mas para o Brasil é, sem dúvida, uma vitória política importante. Além de ter sido o inspirador, e de, informalmente, liderar o G-20, grupo de países emergentes que se uniram em Cancún em 2003 para fazer face às pressões dos países ricos, a retomada de negociações foi precedida por um apelo enfático do presidente Lula no Fórum de Davos, "para que os países ricos adquiram a consciência de que, se não houver um acordo na Rodada de Doha, não adianta culpar o Iraque, não adianta tentar achar que as guerras que acontecem pelo mundo serão resolvidas com ajuda financeira de quando em quando. É na possibilidade do crescimento econômico, da geração de empregos, da distribuição de renda que nós vamos viver num mundo tranqüilo".

Ontem, o chanceler Celso Amorim prosseguiu as negociações em Genebra, reunido tanto com os embaixadores representantes do G-20 como com Peter Mandelson, pelo lado europeu, e Susan Schwab, pelo americano. Há um ambiente mais favorável às negociações, dizem diplomatas brasileiros que as acompanham, embora, até o momento, nenhuma proposta oficial tenha sido apresentada formalmente.

Mas os diversos grupos que reúnem representantes das economias emergentes ganharam tal dimensão política que, durante o Fórum de Davos, houve uma sessão onde se discutiu a possibilidade da ampliação do G-20 como organismo que assuma as mesmas funções, pelo lado dos países emergentes, que nos últimos 30 anos foram exercidas pelos ministros das Finanças dos países desenvolvidos no G-7, ou o papel político dos principais líderes mundiais no G-8.

Atualmente, o G-20 trata com mais ênfase das negociações agrícolas no âmbito da Organização Mundial do Comércio, mas a maioria dos participantes do debate considera que tanto o G-7 quanto o G-8, representando o pequeno grupo dos países mais ricos do planeta, já esgotaram sua capacidade de ação e hoje estão ultrapassados, antevendo um novo papel para o G-20, que já tem seu lado financeiro, no momento mais teórico e menos prático que o grupo que discute os acordos agrícolas.

O diretor do Instituto de Estudo da Economia e Política Mundiais, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, Yu Yongding, disse no debate que a China acredita firmemente no potencial do G-20 para ajudar a governança mundial dentro de novas bases, e quer participar desse novo papel. Ao contrário, a China não tem interesse em ingressar no G-8, garantiu Yu: "Nós não queremos entrar para o clube dos homens ricos".

O chanceler Celso Amorim deu mais ênfase ao trabalho do G-20 dentro das negociações da Organização Mundial do Comércio. O Brasil não tem interesse em que o G-20 se transforme em mais uma instância burocrática internacional, embora muitos dos debatedores tenham defendido a idéia de que, com a informalidade com que se organiza no momento, o G-20 acabará tendo dificuldades para atuar de maneira mais efetiva nas demais negociações econômicas internacionais.

Por obra da tecnologia moderna, assisti ao vivo aqui em Paris, através do G-1, o portal de notícias da Globo, ao debate entre os candidatos à presidência da Câmara. Mesmo que os votos não mudem, como era a impressão generalizada ao seu final, uma coisa pelo menos já mudou e deverá influir na votação: nunca antes neste país uma disputa pela presidência da Câmara se transformou em assunto político de interesse direto do eleitor não parlamentar como agora. Tanto que os candidatos se sentiram obrigados a ir ao debate para explicar suas posições para além dos eleitores tradicionais. E esses eleitores certamente estão levando um pouco mais em conta desta vez o que pensam os eleitores do lado de fora. A maneira extremamente profissional com que a TV Câmara tratou a transmissão do debate, e toda a solenidade que o cercou, sem transformar em um simples bate-papo entre correligionários o que era, na verdade, uma disputa de idéias para dirigir um dos principais poderes da República, deram uma dimensão política maior ao encontro.

Nas perguntas dos jornalistas credenciados na Câmara por órgãos de imprensa independentes dos interesses imediatos dos deputados, e nas dos populares, ficou claro que os escândalos recentes não foram esquecidos, e, seja qual for o presidente eleito, será cobrado por sua atitude diante de companheiros envolvidos, ou que venham a se envolver, em negócios escusos.

O deputado Arlindo Chinaglia, por exemplo, saiu-se bem na defesa de sua base eleitoral, ancorada nos partidos do mensalão, mas deixou transparecer para o grande público quais são seus interesses políticos imediatos. Já o candidato tucano Geraldo Fruet, do grupo independente, pode ter perdido votos no baixo clero, mas manteve firme sua posição de representar uma "terceira via" não governista, mais preocupado com os interesses maiores da instituição.

Acho que o atual presidente da Câmara, Aldo Rebelo, ao, durante o processo, ter se distanciado do governo e, ontem mesmo, ter se colocado como um candidato para barrar o excesso de poder do PT, pode representar uma alternativa independente, em caso de segundo turno.

Chinaglia, ao dizer que o PT abriu mão de apresentar um candidato para apoiar Aldo Rebelo no processo de substituição de Severino Cavalcanti, esqueceu-se de que naquela ocasião o PT não tinha a menor condição política de ser alternativa de pacificação da casa. Aldo Rebelo surgiu exatamente pela capacidade de agregar apoios fora do PT, mas mesmo assim ganhou por apenas 15 votos

Míriam Leitão - Não adianta negar



Panorama Econômico
O Globo
30/1/2007

Haverá energia para crescer? A polêmica foi animada neste fim de semana, pelo Ministério da Fazenda, com o estudo mostrando os riscos de não haver energia suficiente para atender a um crescimento mais acelerado. O ministro Guido Mantega disse ontem, de Londres, que o estudo era apenas uma opinião de uma divisão de uma secretaria do ministério, e que já foi ultrapassado pelos fatos.

Para entender a polêmica: o "Estadão" publicou um estudo da Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, dizendo que haveria risco de falta de energia até 2010. Ontem, o ministro Guido Mantega disse que não levou o estudo em consideração e que os possíveis problemas foram enfrentados pelo PAC. Nenhum problema some do horizonte apenas porque o governo anunciou intenção de investir na geração de energia.

A realidade não tem que se curvar ao que está nas planilhas de um documento, por mais oficial que ele seja. O documento da Seae não diz nada que técnicos da área não tenham dito: se a demanda crescer um pouco mais que o ritmo atual, pode faltar energia. Diversos problemas continuam existindo antes e depois do PAC. Negá-los não é o melhor remédio.

No PAC, a previsão de investimentos em energia elétrica - geração e transmissão - chega a R$78,4 bilhões, ou seja, R$19,6 bi por ano. Disso, não se sabe o que viria da Eletrobrás e das empresas privadas, mas olhando, por exemplo, 2005, o investimento privado no setor, segundo o Instituto Acende Brasil, foi de R$5,9 bilhões; e o estatal, de R$3,5 bilhões, R$9,4 bi no total - R$10 bilhões a menos que o montante com que o governo está contando. Em 2004 e 2005, a Eletrobrás acabou investindo menos 35% e 23%, respectivamente, que o previsto.

Algumas hidrelétricas, licitadas ainda no governo Fernando Henrique, começam a sair do papel. Estreito, entre Tocantins e Maranhão, acaba de receber licença. Vai produzir pouco mais de mil megawatts, mas só entra em operação em 2010. São Salvador só começa a produzir em 2011 e é pequena. Foz do Chapecó, de 800 MW, e Serra do Facão, de 212 MW, estão com licença e começando a entrar em obras. Aí surgiu um problema extra: as grandes empreiteiras, vendo que o mercado está esquentando, começaram a pedir aumentos nos preços.

As hidrelétricas da Amazônia não estão paradas por problemas ambientais que sejam superáveis apenas pelas pressões internas dentro do governo, ou por uma MP. A de Belo Monte é no Xingu e afeta - apenas indiretamente, segundo o Ministério do Meio Ambiente - terras indígenas. Sendo assim, a Constituição determina que o Congresso seja ouvido. O Congresso deu autorização, mas o Ministério Público pediu que fossem dadas mais informações sobre o impacto da usina; e novos levantamentos estão sendo feitos. As do Rio Madeira tiveram as audiências públicas suspensas pela Justiça. Quando tudo isso estiver superado e as obras forem iniciadas, demorarão mais que quatro anos a gerar à plena capacidade.

Essa diferença entre investimento e energia gerada fica clara no PAC. Lá está registrado que o investimento na construção de hidrelétricas da Amazônia está calculado em R$24,3 bilhões até 2010 e mais R$5,4 bilhões para linhas de transmissão. Só está prevista até 2010 a geração de 1.664 megawatts. Depois de 2010, o gasto será de R$10,5 bilhões nas usinas e mais R$466 milhões com linhas de transmissão para a entrada em geração de 15.685 MW. A maior parte do gasto (e que gasto astronômico!) é até 2010, mas apenas uma pequena parte entra em operação no atual governo.

Segundo a Aneel, das 38 hidrelétricas já com contrato assinado (há algumas licitadas no ano passado que ainda não têm contrato), apenas oito estão com obras em andamento e somente 7, desse total de 38, foram licitadas no governo Lula. Os investidores e especialistas em energia acham que o maior problema é a falta de um ambiente regulatório que lhes dê garantias de retorno.

A incerteza na oferta de energia aumentou enormemente depois da crise com a Bolívia, em maio do ano passado. A oferta nova de energia, para suprir os atrasos das hidrelétricas, viria das termelétricas, que hoje não têm garantia de oferta de gás. Havia uma demanda futura de gás que não se sabe se vai ser atendida. A Petrobras tem dito que voltará a investir na Bolívia porque pôr o dinheiro lá continua sendo um bom negócio. Falta transparência nisso. O que transforma em confiável um parceiro que pode rasgar contratos, invadir dependências de sua empresa, e acusar a estatal brasileira de sabotadora? Se é agora um bom negócio, que o imposto subiu enormemente e as bases do negócio mudaram, então a Petrobras estava mesmo tendo lucros abusivos? Nada ficou muito claro nesse episódio. Quem investiu para converter a geração de calor de sua fábrica - como fez o setor de vidros, só para citar um exemplo - não tem certeza de que terá o insumo no volume necessário para seus planos de expansão.

Claro que, além de tudo, tem o problema ambiental, sim. Tudo causa impacto ambiental, mas alguns projetos têm uma relação custo/benefício inaceitável nos dias de hoje. E isso tem que ser levado em consideração.

Um dos grandes especialistas do Brasil nessa área, Mario Veiga Pereira, diz que a oferta já contratada poderia, em teoria, atender a um crescimento de 4%. Mas isso é afetado por três problemas:

- Restrição da oferta de gás até 2010, atraso no cronograma de construção e atrasos no Proinfa (a energia alternativa). Se essas restrições e atrasos não forem sanados, haverá um desequilíbrio de oferta e demanda e maior risco de apagão - diz ele.

O risco existe, melhor que negá-lo, é trabalhar para evitá-lo.

segunda-feira, janeiro 29, 2007

De novo, Angra 3 LAURA CAPRIGLIONE

MENINOS e meninas de esquerda nos anos 70 nem se perguntavam se podia não ser verdade o que dizia a atriz Jane Fonda. Em 1972, ela foi pessoalmente a Hanói, levar apoio ao povo vietnamita que enfrentava o Exército americano. Posou para fotos ao lado de soldados prontos para matar marines, fez discurso na rádio local, liqüefez o moral das tropas ianques.
Com uma folha de serviços dessas, toda a turma acreditou piamente quando a mesma Jane Fonda apareceu em 1979, no filme "A Síndrome da China", falando de reatores nucleares que podiam aquecer-se descontroladamente, derretendo a estrutura que os contêm e afundando no chão "até atingir a China", daí o nome do filme.
A ficção ficou com cara de profecia porque, 12 dias depois de seu lançamento, aconteceu o acidente com a usina nuclear americana de Three Mile Island, um susto.
No Brasil, 1975 foi o ano do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que previa, entre outros itens, a construção das usinas de Angra 2 e 3. Ainda sob ditadura militar, censura e repressão, os cientistas conseguiram uma mobilização inédita da opinião pública contra o acordo.
Diziam que o Brasil estava comprando uma caixa-preta que não previa a transferência de tecnologia. Que as unidades nucleares de Angra se assentariam sobre uma falha geológica, com todos os riscos aí embutidos. Que a energia atômica era perigosa, suja. Que era cara.
Agora, como se nada fosse, Lula inclui no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) a retomada de Angra 3, na qual já se consumiram US$ 750 milhões (cerca de R$ 1,6 bilhão) para a compra de equipamentos, além de US$ 20 milhões (ou R$ 43 milhões) por ano em manutenção. Mais US$ 1,7 bilhão (R$ 3,6 bilhões) ainda são necessários para a conclusão da usina, que começaria a operar em 2013.
A favor, diz-se que a matriz energética brasileira tem de ser diversificada, fala-se em um possível novo apagão e até que a energia nuclear é uma das menos agressivas ao ambiente. Contra, ouvem-se poucas vozes, entre elas a do Ministério do Meio Ambiente e a do Greenpeace, que vêm com seus moinhos de vento defender as energias eólica e solar.
Embora desde o ano passado existam documentos mostrando o empenho do governo em estudos sobre a viabilidade econômica da usina, Lula não quis discutir Angra durante a campanha eleitoral -para que mais marola? Até quinta-feira, a construção da usina constava em página eletrônica do Ministério do Planejamento.
Foi depois retirada da rede, mas não dos planos. Por que o mistério? Quase 30 anos depois, Jane Fonda já fez autocrítica de sua ação no Vietnã, já se tornou propagandista de um método de fitness. Virou lembrança. OK. Apesar disso, bem que eu queria saber o que é que farão com aquele tal lixo radioativo.

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA Globalização comercial e financeira

A necessária estratégia de desenvolvimento deverá se basear em uma taxa de câmbio competitiva


AS DUAS alternativas para a globalização -a do Fórum Econômico Mundial e a do Fórum Social Mundial- não são relevantes para o Brasil. A primeira porque é a mera celebração do atual estágio do desenvolvimento capitalista; a outra porque, embora generosa, é utópica. Para nós, o que interessa é outra distinção; é compreender que a globalização comercial é uma grande oportunidade para quem tem mão-de-obra ainda barata, e a financeira, a causa de quase estagnação de países em desenvolvimento como o nosso.
A globalização enquanto fenômeno econômico é a competição comercial em nível mundial entre os Estados-nação por meio de suas empresas. Logo, a questão fundamental é saber como cada país será ou não bem-sucedido nessa competição. No início dos anos 1990, quando a hegemonia ideológica dos Estados Unidos estava no auge, o globalismo -a ideologia da globalização- afirmava que bastava para isso realizar reformas que abrissem todos os mercados, inclusive os financeiros.
Verificamos, 15 anos depois, que essa receita foi desastrosa para quem a seguiu porque não distinguiu a globalização comercial da financeira. Para países em desenvolvimento, cuja mão-de-obra é barata em relação aos países ricos, a globalização comercial representou uma incrível oportunidade. Primeiro os tigres asiáticos e depois a China estão aí para demonstrá-lo. Em compensação, a abertura financeira foi a principal razão da quase estagnação da América Latina.
O segredo do desenvolvimento dos países asiáticos dinâmicos foi ter limitado a globalização financeira. Eles compreenderam que a flutuação sem controles da moeda nacional podia anular a vantagem existente na globalização comercial, porque, quando a taxa de câmbio deixa de ser administrada, a moeda local nos países em desenvolvimento tende a se tornar apreciada e, portanto, não competitiva. A doença holandesa, causada pela disponibilidade de recursos baratos e abundantes, é a causa dessa tendência: a taxa de câmbio resultante -apreciada- é definida por esse recurso barato, cuja exportação é rentável a essa taxa. Outros bens comercializáveis com maior valor adicionado per capita, embora utilizem tecnologia no estado da arte, ficam inviabilizados porque necessitam de uma taxa de câmbio mais depreciada -uma taxa livre da doença holandesa- para serem rentáveis. E assim fica inviabilizado o desenvolvimento econômico que implica a transferência de mão-de-obra de setores econômicos com baixo valor adicionado per capita para setores com maior conteúdo tecnológico e maiores salários.
É isso o que acontece hoje no Brasil. Com a liberalização comercial, em 1990, que automaticamente baixou a taxa de câmbio efetiva, e a liberalização cambial, em 1992, que levou à perda da sua capacidade de administrar o câmbio, o país perdeu suas defesas contra a doença holandesa e estagnou. Sua indústria vai se transformando em uma indústria "maquila", que apenas usa mão-de-obra barata e pouco qualificada, como aconteceu com a economia mexicana. Nos anos 1990, a essa perda de defesa somou-se a adoção da "política de crescimento com poupança externa", ou seja, de crescimento com déficits em conta corrente, que apreciou ainda mais o câmbio e foi duplamente desastrosa.
Para competir com sucesso na globalização, a necessária estratégia nacional de desenvolvimento deverá se basear em uma taxa de câmbio competitiva. Para isso, além de estabelecer limites rigorosos ao endividamento externo, deverá poder limitar a entrada de capitais sempre que for necessário. Não precisará limitar sua saída, porque essa é uma política à qual recorrem os países que aceitam as recomendações da ortodoxia convencional, endividam-se e ficam ameaçados de crise de balanço de pagamentos. Não basta, porém, evitar crises: a doença holandesa é compatível com equilíbrio a longo prazo da conta corrente. Só administrando a taxa de câmbio competitiva o Brasil poderá aproveitar seu potencial empresarial e tecnológico e crescer competitivamente na era global.

FERNANDO RODRIGUES Razão e acomodação

BRASÍLIA - Tarso Genro disse na semana passada: "O governo Lula não precisa das reformas política e tributária para governar".
Elaborou mais: "O governo acha que a reforma política é extremamente importante para o país, assim como a reforma tributária, por isso queremos defendê-las e realizá-las, mas disto não depende a governabilidade. No sistema político atual, mesmo com a demonstração de esgotamento, qualquer governo teria condições de governabilidade. Não há perigo institucional".
As declarações de Tarso Genro são escorreitas, mas revelam uma certa acomodação do governo.
A correção está na negação do sofisma -defendido por Lula e por políticos em geral- segundo o qual uma reforma política imediata seria fundamental para o país.
Depois do desastre Collor e da transição com Itamar, o sistema atual produziu oito anos de FHC e está a meio caminho de mais oito anos de Lula. Com o tucano, o país conheceu a estabilização econômica e uma certa maturação institucional. Com o petista, há um início de melhor distribuição de renda e um certo desejo de mais desenvolvimento. Serão 16 anos de caminhada para a frente. O ritmo poderia ser outro, mais acelerado? Sim, poderia. Mas é esdrúxulo acreditar que a panacéia seja o voto em lista fechada e o financiamento público exclusivo de campanhas.
Até aí, Tarso Genro falou o certo. Teve coragem para negar o discurso escrito pelo publicitário João Santana e lido por Lula no dia da posse, em 1º de janeiro.
Registrado o acerto, é preciso apontar para a desambição governista: conforma-se com a velocidade lenta dos avanços institucionais e econômicos do país. Os petistas, todos, acham que o Brasil crescerá até 2010 mais do que nos períodos anteriores. Não muito mais, mas o suficiente para que a aliança lulista vá ficando no poder. Nesse caso, para que reformas? Em suma, é a vitória da mediocridade.

O contribuinte que se prepare


editorial
O Estado de S. Paulo
29/1/2007

O contribuinte que se prepare, porque o governo federal e os governadores dos Estados começam a articular uma negociação para a aprovação dos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Congresso. O governo acha necessário aplacar os governadores, que perderão R$ 627 milhões com a desoneração fiscal do PAC. Também considera que a ascendência dos governadores sobre as bancadas estaduais no Congresso torna-os parceiros indispensáveis para o êxito do programa. Eles teriam, além do mais, um importante papel na aprovação da prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) e da Desvinculação de Receitas da União (DRU). E os governadores, por sua vez, se dão conta de que, com isso, ganham imenso poder de barganha.

Até dias atrás, o governo queria a colaboração dos governadores para deslanchar uma reforma tributária cujos pontos essenciais são uma incógnita. Mas o jeito Lula de governar é esse mesmo: primeiro cria um factóide com questões acessórias e depois não apresenta o principal. Há quatro anos convocou os governadores, formou com eles uma comitiva para levar um projeto de reforma ao Congresso... e deixou o assunto morrer nas comissões. A culpa, é claro, foi dos governadores.

Mas a reforma tributária e o pacote de destravamento da economia se misturaram - e os governadores que, na visão do governo, eram a chave para a reforma tributária passaram a ser, também, vitais para a aprovação e o sucesso do PAC.

Em condições normais, seria muito difícil - beirando o impossível - colocar 27 governadores de acordo com uma reforma tributária, mesmo nos termos mais simples. Uma reforma tributária nunca é neutra. Alguns Estados perdem arrecadação, outros ganham - e ninguém está disposto a perder um centavo. Nas circunstâncias que o governo federal acaba de criar, esse acordo quase impossível se tornou desnecessário.

Os governadores preparam-se para barganhar com Brasília uma participação nas contribuições, aqueles tributos que não entram na composição dos fundos de participação constitucionais. Se podem receber um generoso quinhão da CPMF ou da Cide - a contribuição que incide sobre combustíveis -, por que haveriam de se envolver num conflitivo processo de repartição de tributos e de funções?

Ora, como o repasse adicional de receita para os Estados obviamente priva o governo federal de igual montante - e a gigantesca máquina estatal exige volumes cada vez maiores de recursos tributários para funcionar -, a saída será esfolar um pouco mais o contribuinte.

Até o dia 31 de dezembro, o governo precisa aprovar a prorrogação da CPMF e da DRU. Sem isso, as contas nacionais simplesmente não fecharão. A DRU libera 20% dos recursos constitucionalmente vinculados a projetos específicos e a CPMF rendeu no ano passado recursos da ordem de R$ 32 bilhões, com aumento de 9,62% sobre 2005. São os chamados “tributos da governança”, porque se tornaram indesejavelmente indispensáveis, na ausência de um sistema tributário racional e de reformas constitucionais que acabem com a excessiva vinculação de recursos.

Uma reforma tributária consistente teria, necessariamente, de rever o destino dado às contribuições. A Constituição de 1988, além de vincular receitas, elevou a participação dos Estados e municípios no bolo tributário de 31% para 44%. O governo federal, para se defender, passou a criar ou a aumentar contribuições, tributos que não entram no rateio dos fundos de participação. E fez isso com tal apetite que, hoje, as contribuições proporcionam R$ 315 bilhões anuais ao Tesouro, enquanto os principais impostos federais - aqueles que são repartidos com Estados e municípios - caíram de 70%, em 1980, para 41% do total arrecadado.

Os governadores têm razão para reclamar. A União, afinal, encontrou um jeito de tosquiar o contribuinte sem repartir a lã com mais ninguém. Não faltam estudos demonstrando como esse sistema é perverso e prejudica os Estados. Também não faltam sugestões para corrigi-lo sem que haja aumento da carga tributária. O problema é que a compensação teria de vir da redução da participação dos Estados e municípios nos tributos partilhados. Mas, para isso, seria preciso fazer a tão necessária reforma tributária e isso nem o governo federal nem os governadores querem fazer.

Nivelando por baixo- Marcelo de Paiva Abreu




O Estado de S. Paulo
29/1/2007

É possível que dentro de duas semanas ninguém mais agüente ouvir falar do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), proposto como eixo da estratégia econômica do segundo mandato do presidente Lula. É o parto da montanha com a mais completa cobertura dos meios de comunicação de que se tem notícia. E o que se pode dizer sobre o ratinho? É fácil perder a noção de seu significado efetivo, dada a prevalência de medidas discricionárias. O governo mostrou sua clara preferência por remendar, em vez de reformar. O programa traz claras marcas da improvisação que cercou a sua concepção. Embora a opção “desenvolvimentista” tenha sido continuamente brandida pelos críticos da “ortodoxia” da política econômica, durante o primeiro mandato, fica evidente que o jogo de cena não foi acompanhado de esforço mais sério de reflexão sobre como tirar a economia do marasmo medíocre em que está mergulhada por mais de um quarto de século.

No fundamental, trata-se de plano de investimentos adicionais equivalente a algo mais do que 0,5% do produto interno bruto (PIB), conjugado a uma “desoneração” fiscal da ordem de 0,3% do PIB, e com compromissos de difícil implementação quanto à redução dos gastos de pessoal. Não houve compromisso quanto à carga fiscal, de modo que não há certeza quanto à magnitude da desoneração fiscal líquida resultante. O governo ficou devendo a explicação de como modesto aumento de investimentos públicos e também modesta desoneração fiscal serão capazes de estimular os “espíritos animais” no setor privado, de tal forma que se aumente significativamente a formação bruta de capital fixo. Seria interessante saber como o mágico crescimento almejado de 5% ao ano em bases sustentadas poderá decorrer de estímulos tão limitados.

Ainda mais importante do que se debruçar sobre as minúcias dos investimentos projetados é colocar o programa no contexto da evolução das políticas implementadas nos dois mandatos do presidente Lula. Em 2003, no início do primeiro mandato, passada a constatação de que a política econômica prudente estava consolidada como pilar da estratégia de governo, a expectativa otimista era de que as ações em outras áreas do governo passassem a ter o nível de qualidade da condução da política econômica. Isto se reforçou à medida que se constatou que, a menos dos programas de redistribuição de renda, com incerto impacto sobre o crescimento, as demais ações do governo careciam completamente de eficácia. Tratava-se de, essencialmente, tentar estender a virtude e os bons resultados da política macroeconômica às outras políticas governamentais. Se os resultados da política econômica tivessem sido capitalizados politicamente de forma mais conseqüente - e não constituído alvo predileto de opositores em aguda luta interna -, não teria sido impossível progredir na reforma previdenciária, reduzir outros gastos públicos e implementar reforma tributária significativa. A redução dos gastos públicos, especialmente dos gastos correntes, teria permitido redução mais rápida da relação dívida-PIB. Com esta sinalização e em meio a expansão significativa das exportações, ajudada pelo boom da economia mundial, teria sido possível fazer decolar o progressivo aumento dos investimentos privados e o conseqüente aumento do ritmo de crescimento da economia.

Passado um quadriênio se constata que essas expectativas de boa contaminação eram vãs. A contaminação entre políticas teve causalidade oposta à que seria desejável. Prevaleceu a versão adaptada da Lei de Gresham (1519-1579, assessor econômico da rainha Elisabete I da Inglaterra) relativa à convivência de dois meios de troca de valor desigual: “A moeda má expulsa a moeda boa.” No Brasil lulista são as políticas más que tendem a expulsar a política boa. É a política econômica prudente e bem-sucedida que está sob pressão para se alinhar à norma medíocre das demais ações do governo. Nesta perspectiva, o PAC configura a vitória da crença na competência do governo em distribuir benesses seletivas, na possibilidade de evitar reformas conseqüentes e continuar remendando a colcha de retalhos que caracteriza a legislação tributária brasileira. Também admite implicitamente o fracasso na esfera regulatória ao reservar ao Estado o grosso dos investimentos em infra-estrutura energética. Culmina a ofensiva rousseffista contra a idéia de ajuste fiscal sustentado, que era a essência estratégica da política econômica paloccista. Para todos os efeitos, levou ao abandono de qualquer concepção baseada em transição gradual para trajetória virtuosa que possibilitasse a volta ao crescimento rápido e sustentado à luz de políticas essencialmente horizontais.

Não é razoável tentar buscar apoio na mitologia que cerca o o governo JK, invocando a semelhança do PAC com o Plano de Metas. Com todas as conhecidas fragilidades do Plano de Metas, não há comparação possível entre a sua preparação pelo Conselho de Desenvolvimento e a correria que marcou a elaboração do PAC. O Plano de Metas cristalizou anos de trabalho no governo Dutra, na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e no então recém-criado BNDE na identificação de projetos prioritários de infra-estrutura. JK foi capaz de mobilizar amplo leque de colaboradores competentes, de Roberto Campos a Lucas Lopes, muitos com experiência bem-sucedida na prefeitura de Belo Horizonte e no governo de Minas Gerais. E, também, de criar mecanismos de interação setorial eficaz entre governo e setor privado. Não adianta, ainda, insistir na tentativa de substituir falta de substância por muita ênfase. Pode funcionar por algum tempo, mas a pirotecnia tem efeitos passageiros, vai-se esvair e, então, vai começar a cobrança da aceleração sustentada do crescimento.