O Globo |
31/1/2007 |
Quando o presidente Lula, na sua fala na reunião de Davos, disse que os Estados Unidos deveriam deixar o milho para alimentar as galinhas, desistindo de fabricar etanol com ele, pode não ter sido muito delicado, mas estava chamando a atenção para o fato de que o etanol fabricado com cana-de-açúcar, como no Brasil, é economicamente mais viável do que o fabricado nos Estados Unidos, e subsidiar os plantadores de milho nessa corrida para um combustível alternativo é mais uma armadilha a ser desmontada na retomada da Rodada de Doha para liberalizar o comércio agrícola no mundo. A reação da França e de alguns países com os mesmos interesses agrícolas, como a Áustria e a Irlanda, não foi uma surpresa para o governo brasileiro, que não vê nessa retomada explícita do protecionismo francês nenhum grande obstáculo para o prosseguimento das negociações agora reabertas, mais pelo senso de urgência política do que por qualquer outro motivo técnico. O comissário europeu Peter Mendelson, acusado de ter extrapolado o seu mandato ao retomar as negociações da Rodada de Doha, garantiu ao chanceler brasileiro Celso Amorim que continuará atuando firmemente para as negociações andarem, e tenta unir os países europeus em torno de um sentimento comum, colocando os Estados Unidos como o adversário nas negociações, e não os países do G-20, grupo de emergentes que negociam em conjunto a liberalização do comércio internacional. A Europa espera o movimento dos Estados Unidos para fazer sua proposta, pois teme abrir mão de seus subsídios e ficar exposta à pressão econômica americana. Há rumores, por exemplo, de que os Estados Unidos colocariam o limite de U$17 bilhões como ponto de partida para as negociações, mas esse número embute uma larga margem de manobra, pois no ano passado os subsídios agrícolas custaram cerca de U$12 bilhões. A União Européia tem sinalizado que aceita chegar a um corte de 54% dos subsídios, como quer o G-20, mas ainda não apresentou uma proposta detalhada. Será preciso ver por dentro da proposta se ela contempla setores importantes da agricultura, ou se apenas libera áreas periféricas que não atendem aos interesses dos países emergentes. O movimento do presidente George Bush de pedir ao Congresso a ampliação do "fast-track", uma permissão especial para negociações comerciais sem depender da autorização prévia do Congresso, é um gesto político importante que, no entender dos negociadores brasileiros, neutraliza a reação contrária da França. A ministra da Agricultura dos Estados Unidos, Susan Schwab, que é a negociadora do lado americano, dissera ao chanceler Celso Amorim na reunião que tiveram em Genebra, na segunda-feira, que o presidente Bush não apenas faria o pedido ao Congresso, como um discurso anunciando formalmente o pedido. O entendimento é que, ao fazê-lo, o presidente americano já teria indicações de que o Congresso, mesmo com a maioria democrata, historicamente mais protecionista que os republicanos, aprovará a extensão da permissão especial, que se encerra em julho. A preocupação do G-20 era que algum avanço pudesse ser feito até abril ou maio, com o temor de que o novo Congresso não aprovasse a prorrogação do Trade Promotion Authority (TPA), o que previsivelmente dificultaria as negociações, pois as decisões teriam que ser aprovadas pela maioria democrata. O presidente Lula, nas reuniões com dirigentes de outros países no Fórum Econômico Mundial em Davos, conversou sobre a necessidade de retomar as negociações com um sentido político mais aguçado. Com o primeiro-ministro da Inglaterra, Tony Blair, foi muito enfático ao frisar que os países mais ricos do mundo têm obrigação de flexibilizar suas posições, para permitir que as economias emergentes possam competir em igualdade de condições no mercado internacional. A força do Brasil no campo agrícola é que o faz ser o líder informal do G-20. Um estudo divulgado pela União Européia mostra que o país será o de maior crescimento em produção e exportações no setor agrícola no mundo até 2020, ao mesmo tempo em que os países europeus perderão competitividade. Por isso o governo brasileiro vem dando um tom político às discussões, exatamente para evitar que sua força econômica na agricultura o coloque como uma ameaça tanto a europeus quanto a americanos. O próprio presidente Lula tem enfatizado o lado político da decisão de liberalizar o comércio mundial, e anunciou que nos próximos dias telefonará para vários dirigentes de países envolvidos na retomada de negociações da Rodada de Doha para pressionar politicamente por uma decisão. Em todas as conversas que tem mantido sobre a abertura do comércio internacional agrícola, o presidente Lula se utiliza do exemplo brasileiro do etanol da cana-de-açúcar, e do biodiesel, extraído da mamona, do girassol, para mostrar as oportunidades que os países desenvolvidos têm para ajudar no crescimento econômico dos emergentes e de países pobres como os da África. Ele está insistindo em que os países ricos financiem programas de substituição de combustível com a utilização do etanol e do biodiesel, o que uniria dois objetivos: incentivar as economias emergentes e despoluir o planeta. A pressão sobre os países ricos foi retratada durante a reunião de Davos em uma charge do "International Herald Tribune", jornal editado na Europa pelo "The New York Times", que mostra o presidente Bush em seu gabinete tendo em frente um rude agricultor produtor de etanol, com as botas enlameadas sujando os tapetes da Casa Branca. Bush, pensativo, suspira: "Saudades dos príncipes sauditas". |