sábado, abril 30, 2005

VEJA Entrevista: Condoleezza Rice


Operação Simpatia

Defensora da guerra, a secretária de Estado
agora prega a democracia e a justiça social
– e diz que Bush é um homem muito solidário


Vilma Gryzinski

 

Eraldo Peres/AP

"Quando os pais da pátria diziam 'Nós, o povo', não incluíam pessoas como eu. Muitos dos meus antepassados foram escravos"

No primeiro governo do presidente George W. Bush, Condoleezza Rice encarnou o papel da senhora da guerra. Como assessora de Segurança Nacional, ocupou a linha de frente da política de intervenção preventiva, consubstanciada na invasão do Iraque. Agora, no segundo mandato, promovida a secretária de Estado, Condi, como é providencialmente chamada, mudou o foco: com o pior da situação iraquiana para trás, ela vem cruzando o planeta como a face mais humana do governo Bush e grande propagadora das vantagens da democracia. É muito mais fácil, em lugar de defender a guerra, pregar que é preciso fortalecer as instituições democráticas, combater a corrupção e ajudar os pobres a sair da miséria. Quem pode ser contra isso? Mesmo quando a missão inclui assuntos mais comezinhos, como as encrencas de Hugo Chávez na Venezuela e as hesitações brasileiras na Alca, Condi tem se saído extraordinariamente bem na Operação Simpatia. Sua espetacular história de sucesso a precede: nascida no coração racista da América, entrou na faculdade aos 15 anos, formou-se aos 19, doutorou-se com 26. Pianista, especialista em relações internacionais e fluente em russo, chegou a reitora de Stanford e, embora negue quase que diariamente, o caminho da Casa Branca é uma possibilidade no horizonte. Afável e supremamente confiante, falou a VEJA durante sua passagem por Brasília.

Veja – O presidente Hugo Chávez disse que há americanos preparando uma invasão da Venezuela. Verdade ou mentira?
Rice – Isso é simplesmente um escândalo. É claro que os Estados Unidos não vão invadir a Venezuela ou fazer qualquer coisa do gênero. Os EUA querem ter boas relações com a Venezuela. Existem preocupações relativas à democracia na Venezuela e à maneira como ela se relaciona com os vizinhos. Mas nós não vamos invadir a Venezuela.

Veja – Qual a melhor atitude a tomar quando se lida com um personagem como Chávez, que está sentado sobre um mar de petróleo, tem o apoio de 60% da população e pode usar as pressões americanas em seu favor?
Rice – A única coisa que faz sentido é ter uma pauta positiva. É sobre isso que vim conversar aqui. Falamos sobre a Venezuela, é certo, mas foi uma parte relativamente pequena das discussões. Falamos também sobre como este hemisfério, que fez progressos notáveis em termos de desenvolvimento democrático na última década, pode levar adiante esse processo de forma a causar impacto na vida das pessoas que ainda não se beneficiaram dele. Tratamos da necessidade de ter crescimento econômico, não apenas pelo fenômeno em si, mas para que redunde em melhorias na vida das pessoas, criando as circunstâncias adequadas para aumentar o nível de ensino e o acesso aos sistemas de saúde. A questão da liberalização comercial também está na pauta, porque esse é um dos motores do desenvolvimento econômico e contribui para melhorar o nível de vida das populações. Nós temos ainda uma pauta positiva na questão da ajuda a democracias frágeis. Quando há crises como a que houve recentemente no Equador, é muito bom que existam países sul-americanos dispostos a ajudar.

Veja – Existe no Brasil um medo generalizado de que, com a Alca, setores inteiros da economia nacional sejam riscados do mapa pela pura força da economia americana. O que a senhora diria para acalmar esses receios?
Rice – Eu entendo essas preocupações. A quem as tem, diria que, em geral, a liberalização do comércio tende a expandir as economias, fortalecendo os mercados e trazendo mais investimentos. Em suma, incentivando o crescimento. Sugeriria também que vissem o que aconteceu no México, com o Nafta.

Veja – Há opiniões divididas a respeito.
Rice – Olhem para o México, antes e depois do Nafta. Não há dúvida de que o acordo trouxe muita prosperidade. Os próprios mexicanos dirão que essa prosperidade em grande parte foi fruto da liberalização comercial produzida pelo Nafta. Vejam os negócios que estão sendo abertos – e não me refiro às grandes transações. Falo dos pequenos negócios, de novos mercados, de como tudo está avançando. E, mesmo em relação às pessoas que possam não se beneficiar disso, sempre há maneiras de ajudá-las a se ajustar melhor, através de treinamento e capacitação.

Veja – Uma pesquisa realizada depois da reeleição do presidente George W. Bush mostrou que 78% dos brasileiros têm uma opinião negativa sobre ele. Se a senhora tivesse um minuto para tentar convencer quem pensa assim a mudar de idéia, o que diria?
Rice – Eu diria: gostaria que conhecessem melhor esse presidente, seu comprometimento com um mundo mais seguro, os desafios que enfrentou depois que os Estados Unidos foram perversamente atacados em 11 de setembro, seu desejo de que todas as pessoas, não importa onde vivam, usufruam a liberdade. E sua solidariedade para com as pessoas que estão lutando para sair da pobreza e superar doenças. Esse presidente duplicou as contribuições americanas para programas de ajuda ao desenvolvimento durante seu mandato, destinou 15 bilhões de dólares para combater a aids ao longo de cinco anos nos países mais afetados. Gostaria que as pessoas prestassem mais atenção a esses gestos solidários.

Veja – Como a senhora explica que a imagem dele, em grande parte do mundo, seja exatamente o oposto?
Rice – Não sei dizer, exceto pelo fato de que o presidente teve de tomar decisões realmente duras. Depois dos ataques de 11 de setembro, nós tínhamos de travar a guerra contra o terrorismo e não podíamos fazer isso com uma posição simplesmente defensiva. Gosto de lembrar que os terroristas só precisam acertar uma vez, e nós precisamos acertar 100% do tempo. Não é uma luta justa. Tivemos de levar a guerra aos terroristas em lugares como o Afeganistão e o Iraque. Também tivemos de insistir num Oriente Médio diferente. E veja o que já conseguimos com essa insistência. É impressionante testemunhar as tropas sírias saindo do Líbano, por exemplo. Os libaneses provavelmente nunca poderiam sonhar que isso viesse a acontecer.

Veja – Em todo o Oriente Médio, no entanto, há um grande número de pessoas convencidas de que a pregação em prol da democracia é apenas mais um truque para impor o domínio americano. Elas vêem conspirações em toda parte e acham que o 11 de Setembro foi obra da CIA em conjunto com o Mossad. Como reagir a isso?
Rice – Temos de simplesmente continuar tentando mostrar a verdade, da mesma forma como fizemos durante a Guerra Fria. Mas creio que as imagens que chegam do Oriente Médio começam a contar uma história diferente. Hoje de manhã, estava vendo as dificuldades dos iraquianos para a formação de seu futuro governo. Ressalte-se porém que teria sido impossível pronunciar estas simples palavras: iraquianos discutindo o seu futuro governo. Acredito que haverá uma mudança de percepção à medida que ficar claro que a única motivação dos Estados Unidos é apoiar aqueles que querem ser livres – não, insisto, uma democracia ao estilo americano, pois os sistemas democráticos podem ser diferentes, como são, no Brasil, no Chile ou no Canadá. Os Estados Unidos querem um mundo em que as pessoas sejam livres para dizer o que pensam, para seguir a religião que quiserem, para educar os filhos como acharem melhor e para se beneficiar dos frutos de seu trabalho. E, acima de tudo, que estejam livres da batida na porta, à noite, da polícia secreta. É isso que defendemos. E não o fazemos numa posição de arrogância. Nós, mais do que qualquer outro país, temos de partir de uma posição de humildade, porque sabemos como o caminho democrático foi difícil nos Estados Unidos. Sempre lembro que, quando os pais da pátria diziam "Nós, o povo", não incluíam pessoas como eu. Muitos dos meus antepassados foram escravos. Na primeira Constituição, de 1787, houve um entendimento estabelecendo que um escravo valia três quintos de um homem. Qual o significado disso, num país erguido sobre princípios de igualdade e liberdade? Significava que ainda havia um longo caminho pela frente.

Veja – E quando quem bate na porta à noite são tropas americanas? Quando 20 000 civis iraquianos aparecem nas listas das baixas de guerra? Qual a justificativa moral para essas vítimas?
Rice – Não vamos nos esquecer de quem é responsável pela maioria das baixas civis. Gente como (o líder terrorista Abu Musab al-) Zarqawi e outros que foram para o Iraque porque simplesmente não querem que exista democracia lá.

Veja – Refiro-me a baixas feitas em operações militares.
Rice – As baixas civis no Iraque não são decorrentes apenas de operações militares. Os iraquianos hoje estão sofrendo baixas porque há terroristas que querem impedir que exista um futuro melhor. Gostaria de lembrar dos 300 000 mortos que já encontramos em covas coletivas (vítimas do regime de Saddam Hussein). Estava mais do que na hora de livrar o Iraque desse ditador brutal, e ele não iria embora apenas com mais resoluções da ONU. Sim, infelizmente houve civis que morreram em virtude de operações militares. Mas o povo afegão, por exemplo, estava melhor sob o Talibã, quando mulheres eram executadas em estádios de futebol?

Veja – Qual sua reação quando fica sabendo que iraquianas estão sendo obrigadas, hoje, a usar o hijab, a vestimenta tradicional, por pressão dos fundamentalistas?
Rice – Já falei com muitas iraquianas e elas estão lutando para garantir que seus direitos sejam consagrados na nova Constituição; seja o direito de cobrir a cabeça, o que é perfeitamente legítimo, ou de não fazê-lo. Conheci iraquianas que se vestem como eu e você, outras que usam o véu. Esse é o futuro que se descortina para elas – muito diferente do que poderiam esperar quando havia salas de estupro nas câmaras de tortura do regime, ou quando podiam ser fuziladas, com seus maridos e filhos, por ser curdas ou xiitas, quando as pessoas podiam ter a língua arrancada por criticar Saddam. É preciso pôr as coisas em perspectivas. Sei que o Iraque tem um caminho difícil pela frente, da mesma forma que o Afeganistão. Mas alguém pode dizer que esses países estavam melhor sob o regime de Saddam ou do Talibã?

Veja – A senhora pode garantir que o Iraque não vai virar república islâmica fundamentalista assim que os americanos derem as costas?
Rice – Ninguém pode garantir isso, mas posso dizer que as evidências até agora indicam que os iraquianos querem um país moderno, democrático e inclusivo. Quando os xiitas tiveram uma grande votação, na última eleição, muita gente se perguntou se não passariam de oprimidos, como foram durante o regime de Saddam, a opressores. Aconteceu justamente o contrário: eles convidaram os sunitas para fazer parte do governo, apesar da baixa participação deles na eleição. Os iraquianos querem deixar seu passado de brutalidade para trás.

Veja – A senhora nunca tem dúvidas? Nunca se diz "não sei o que fazer" quando defrontada com situações, digamos, como a do Haiti, que parecem tão sem saída, sem opções?
Rice – É verdade que existem lugares e situações que parecem que nunca vão ter solução. Mas o meu trabalho, a minha responsabilidade, não é ficar conjecturando, e sim procurar saídas. Muitas vezes digo às pessoas que me apresentam um problema e fazem uma boa análise dele que acharia a exposição muito boa se eu ainda estivesse nos meus tempos de Stanford. Acredito em buscar soluções, ancoradas nos princípios da democracia, e me anima o fato de que, olhando para o passado, existissem tantos problemas que pareciam insolúveis. Na própria América Latina, há quinze ou vinte anos, muita gente diria que não havia a possibilidade de existir democracia, mas aconteceu. Só tem de continuar.

Veja – Se, em vez de estar à frente do Departamento de Estado, a senhora chefiasse o Itamaraty, buscaria de forma tão prioritária um lugar para o Brasil num Conselho de Segurança ampliado?
Rice – Não fico nada surpresa que países que estão assumindo um papel mais assertivo tentem obter um assento no Conselho de Segurança. Acho saudável debater as estruturas da ONU. Só não podemos separar a questão do Conselho de Segurança da reforma da ONU em geral.

Veja – A senhora disse as palavras mágicas, como secretária de Estado, em relação ao Brasil: potência mundial. Mas olhando o país mais como se ainda estivesse em Stanford, na qualidade de professora de ciências sociais, em que posição real vê o Brasil daqui a dez anos?
Rice – Acho que dentro de dez anos poderíamos ver um país fazendo progressos reais no plano interno. Isso significaria possibilitar acesso real ao ensino e à saúde aos brasileiros que hoje vivem marginalizados. Com esse alicerce democrático consolidado, veria um Brasil com peso real na região, ajudando a disseminar a democracia, a prosperidade e o livre-comércio. E que, a partir dessa base, se torne um ator global realmente importante, um promotor da democracia e da justiça social para todo o mundo. Há países emergindo como potências globais, como a Índia, outra grande democracia multiétnica, a África do Sul e o Brasil. Isso é uma coisa maravilhosa. Os Estados Unidos não temem que outros países sejam importantes, poderosos e capazes de agir no plano da política internacional, especialmente quando temos em comum os mesmos valores democráticos.

Diogo Mainardi:Vamos soltar os bandidos


"Os americanos acreditam que, tirando
os criminosos de circulação, a criminalidade
também diminui. Os lulistas rejeitam a
receita americana. É simplória demais"

Os Estados Unidos garantem que a melhor maneira de combater o crime é trancar os bandidos na cadeia. A solução pode parecer extravagante para nós, brasileiros, mas os americanos acreditam que, tirando os criminosos de circulação, a criminalidade também diminui. O país acaba de anunciar um novo recorde no número de detentos: mais de 2,1 milhões. Entre 1994 e 2004, a população carcerária americana aumentou 42%. No mesmo período, a taxa de criminalidade caiu 33%. O saldo é surpreendente: mais bandidos na cadeia, menos crimes. Quem diria?

Os lulistas rejeitam a receita americana. É simplória demais. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, prega exatamente o contrário para o Brasil: "Não podemos continuar com o crescimento assustador da quantidade de gente indo para a cadeia, ao mesmo passo que não temos a condição de alcançar isso com a construção de novos presídios". O diretor do Departamento Nacional de Penitenciárias, Clayton Nunes, concorda com o chefe: "O problema dos presídios brasileiros não está na criação de novas vagas". O melhor a fazer, segundo Clayton Nunes, é soltar boa parte dos presos, porque "95% da população prisional não oferece perigo à sociedade". O presidente do PT, José Genoíno, defende a mesma idéia: "A eficácia governamental não se mede pelo número de presos". A opinião é compartilhada pelo deputado Geraldo Thadeu, relator da Subcomissão do Sistema Penitenciário. Ele recomenda a adoção, em escala nacional, do modelo aplicado na cidade mineira de Itaúna, onde a cadeia é gerida diretamente pelos detentos, que ficam até com a guarda das chaves. O deputado Thadeu tem razão. Por que seguir o exemplo dos últimos trinta anos nos Estados Unidos se podemos contar com o pioneirismo de Itaúna?

A administração lulista reconhece que os presídios estão superlotados. Os eficientes técnicos do governo só parecem perdidos quanto à real dimensão do problema. Em 14 de maio de 2004, Clayton Nunes informou no Congresso Nacional que o sistema carcerário brasileiro tinha um déficit de 110.000 vagas. Em 16 de junho, Márcio Thomaz Bastos admitiu no mesmo Congresso Nacional que faltavam 178.000 vagas. Em 23 de junho, Clayton Nunes voltou ao Congresso Nacional e reduziu o número para 65.000 vagas. Uma variação de 200 e tantos por cento em apenas quarenta dias. Márcio Thomaz Bastos revelou aos deputados que, para suprir a demanda, teríamos de construir sete novas cadeias por mês. Por via das dúvidas, ele preferiu não construir nenhuma, em dois anos e meio de governo.

Sempre que os Estados Unidos anunciam um novo recorde no número de detentos, os lulistas oferecem uma interpretação negativa para o fato. Uns profetizam o "ocaso do império americano". Outros denunciam a prática de uma "política de repressão racista" no país, uma vez que negros e latinos lotam as prisões. Negros e latinos lotam as prisões simplesmente porque cometem mais delitos. É duro entender a mentalidade dos americanos. Eles querem prender os bandidos. A gente é menos primário. A gente quer soltar.
VEJA

Tales Alvarenga:Espelho, espelho meu

A frase do presidente Lula mandando a classe média tirar o traseiro da cadeira para obrigar os bancos a cobrar menos juros não pode ser confundida com gafe, aquela declaração equivocada que as pessoas deixam escapar num momento de desatenção. O que Lula afirmou sobre os juros é ignorância mesmo. Achar que os juros são altos porque o brasileiro é preguiçoso e acomodado mostra a falta de familiaridade do presidente com uma cadeia banal de eventos, como a que determina a taxa de juros. Com sua frase, Lula errou duas vezes. Na primeira, foi grosseiro com os brasileiros, que sofrem com os juros estratosféricos. Na segunda, a pior, o presidente demonstrou outra vez que desconhece os rudimentos da economia de seu país.

Por não ter a mínima idéia do que está falando, Lula sugere uma solução estapafúrdia para o problema dos juros. Pede que as pessoas se mexam e dêem um aperto nos bancos. Um ministro chegou a sugerir um "levante" da população contra os juros altos. O próximo passo desses governantes despreparados será talvez pedir que os contribuintes boicotem a cobrança de 36% do PIB em impostos por meio de uma revolta na qual todo e qualquer brasileiro se tornasse um sonegador de tributos.

É triste, mas é assim que os desafios nacionais são vistos a partir de Brasília. Não seria de espantar, levando em conta que Lula já procurou famintos num país que tem pobres obesos, segundo o IBGE, e já tentou impor cotas para negros na universidade, numa sociedade que tem o mesmo porcentual de negros na faculdade e na população em geral. Na questão dos famintos e dos negros, o que houve foi um engano estatístico, autorizado pelas crenças tradicionais a respeito da desigualdade de renda no país. Mas o caso dos juros não permite interpretação favorável ao presidente, por mais boa vontade que se tenha com ele.

Juros altos são resultado da falta de confiança na capacidade do Estado de saldar seus débitos. O Estado deve muito, gasta mais do que arrecada e tenta arrecadar cada vez mais para poder gastar o que não tem. O ciclo é infernal. E o governo não dispõe de uma agenda de reformas estruturais que impeça esse mecanismo de continuar funcionando. Dívida elevada, carga tributária excessiva, leis trabalhistas retrógradas, burocracia enlouquecedora, ritos jurídicos e judiciários desanimadores, rombo na Previdência. Isso tudo provoca inflação e taxas básicas de juro perto dos 20%. Os bancos cobram muito mais e o Estado também está por trás do custo elevadíssimo do dinheiro para o consumidor.

O governo toma nada menos do que 68% da poupança destinada ao crédito no Brasil, pagando regiamente os bancos para que eles comprem títulos públicos. Obriga os bancos a depositar uma parte do dinheiro que emprestam. O depósito compulsório no Brasil é um dos maiores do mundo. As operações de crédito sofrem ainda uma tributação draconiana – e o dinheiro vai para o bolso do governo. Por fim, a legislação brasileira favorece o devedor inadimplente. Isso leva os bancos a cobrar taxas ainda maiores pelo elevadíssimo risco de emprestar dinheiro no Brasil. Olha, presidente Lula, se há um brasileiro que não tira o traseiro da cadeira para combater os juros altos, ele se chama, com todo o respeito, Luiz Inácio Lula da Silva.
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André Petry:Os corruptos de fé?


"A mistura de política com religião não costuma dar boa coisa, mas nada é comparável ao desastre que se produz quando a mistura é entre política e fanatismo religioso. O exemplo emblemático está na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, onde, entre seus setenta deputados, pelo menos 25 se assumem publicamente como evangélicos. No primeiro movimento da mistura indigesta, a maioria dos deputados, entre eles os evangélicos, resolveu inocentar um colega, o evangélico Alessandro Calazans, que foi pilhado pedindo propina quando presidia uma CPI. Seu achaque está gravado em fita cassete, foi didaticamente publicado por VEJA, mas, mesmo assim, seus colegas resolveram poupá-lo. Agora, num segundo movimento, os deputados do Rio devem votar, até 10 de maio, um código de ética da Assembléia Legislativa. Dizem que o código criará regras duras para a cassação do mandato de deputados que quebrem o decoro parlamentar – a mesmíssima violação cometida por Calazans.

Não é piada. É deboche mesmo.

O que será que leva os deputados do Rio de Janeiro, ou pelo menos um bom punhado deles, a achar que nós todos formamos uma imensa platéia de patetas? Que somos todos babacas e estamos prontos para acreditar em qualquer teatro? O que será que os leva a achar que o mal-estar deixado pela decisão de inocentar Calazans será agora neutralizado pela criação do código de ética? O que os leva a pensar que podem, num dia, livrar despudoradamente a cara de um deputado e, no dia seguinte, agir como se fossem a vanguarda da ética? É óbvio que há outros fatores para explicar tal comportamento, mas um deles sem dúvida está num certo fundamentalismo evangélico. Ou seja: um certo sentimento de fé comum que, na Assembléia do Rio, tem levado um deputado evangélico a sempre apoiar outro deputado evangélico, ainda que com flagrante prejuízo da ética.

É o mesmo sentimento que, nas últimas eleições no Rio de Janeiro, mas não apenas no Rio, tem levado um eleitor evangélico a quase sempre votar num candidato evangélico – ainda que, de novo, isso implique o massacre da ética.

Para pressionar por sua absolvição, o que fez o deputado Alessandro Calazans, que pertence à Igreja Internacional da Graça de Deus? Encheu as galerias com irmãos crentes... E quem fez questão de defendê-lo em plenário? Vários deputados: um era da Igreja Universal do Reino de Deus, outro era da Maranata, um terceiro era da Presbiteriana... Não se está aqui dizendo, ou insinuando, que os evangélicos sejam corrompidos ou que sejam mais corrompidos que católicos ou budistas. O que se está dizendo é que, na Assembléia do Rio, a identificação evangélica entre os deputados está sendo radicalizada, como se a irmandade na fé estivesse acima de qualquer outro valor, e essa identificação é usada para legitimar uma aliança a serviço da corrupção e da falta de ética.

É por isso que eles, em nome da fé, acham que podem debochar de nós. De todos nós, inclusive dos evangélicos honestos.
VEJA

Roberto Pompeu de Toledo:A jóia da coroa

A maior conquista da política externa do governo Lula são as excelentes relações com o governo do presidente George W. Bush. Pode parecer irônico, e é mesmo. Nestes 28 meses de governo, gastou-se enorme quantidade tanto de retórica quanto de combustível de avião para propagar a idéia de uma política externa diferente– "independente", "terceiro-mundista", "sul-sul" ou "de esquerda", escolha-se o rótulo que se preferir. De um variado cardápio, que incluía das relações ditas estratégicas com a China à ênfase supostamente preferencial no Mercosul, passando por insistentes turnês africanas, o que se extraía como ponto comum era o desejo de ostentar distância de Washington. Eis que a secretária de Estado Condoleezza Rice nos faz uma visita na semana passada e sua permanência no país, permeada de charme e de elogios ao Brasil, "uma potência regional que caminha para se tornar potência mundial", assinala a volta ao porto seguro das relações com os Estados Unidos, ao cabo de uma laboriosa e fútil viagem da circunavegação da diplomacia lulista ao redor do planeta.

A confusão entre fantasia e realidade, doença que afeta os governos em geral, e manifesta-se com especial virulência no governo Lula, tem na política externa sua área preferencial de atuação. Alguns exemplos:

Fantasia: "Eu tenho a convicção de que o que nós fizemos na América do Sul nestes dois primeiros anos foi um avanço maior do que o que foi conquistado nos últimos quarenta ou cinqüenta anos" (presidente Lula, dia 20 último, perante a Organização Regional Interamericana de Trabalhadores). Realidade: o Mercosul está em destroços e a relação com a Argentina recuou ao nível conturbado da época da construção de Itaipu. Até o ato simples e mecânico de conceder asilo político ao presidente deposto do Equador converteu-se em motivo de discórdia, a Argentina reclamando de o Brasil forçar a mão no afã de exercer influência sobre os vizinhos. As condições para a trombada estão postas. De um lado, um presidente argentino dado a ressentimentos e amuos. De outro, um presidente brasileiro não só sedento de exercer liderança, mas vulnerável ao pecado de alardear liderança. O resultado são infantilidades como o argentino não ir ao funeral do papa porque o brasileiro foi.

Fantasia: "O Itamaraty considera que Seixas Corrêa tem grandes chances de ser escolhido para o cargo" (Correio Braziliense, 28/2/2005). Realidade: a candidatura do embaixador brasileiro Luiz Felipe Seixas Corrêa à diretoria-geral da Organização Mundial do Comércio, lançada para se contrapor à do francês Pascal Lamy e à do uruguaio Pérez del Castillo, foi eliminada logo na primeira rodada de consultas entre os países-membros. Ficou atrás até do que era tido como o maior azarão do páreo, Jaya Krishna Cuttaree, das Ilhas Maurício. As consultas são sigilosas, mas consta que, na América Latina, só o Panamá optou pelo brasileiro. Do episódio, sobrou a evidência de que o Itamaraty se lançou a uma aventura, característica da empolgação que o tem acometido. De quebra, exibiu ao mundo a fratura do Mercosul, que já tinha no uruguaio um candidato nascido em seu seio.

Fantasia: "Nossos países estão consolidando, definitivamente, uma das mais sólidas relações políticas, comerciais, culturais e econômicas que o mundo já conheceu" (presidente Lula ao presidente chinês Hu Jintao, em novembro último). Realidade: a China, ao vetar o ingresso do Japão no quadro permanente do Conselho de Segurança da ONU, virtualmente congelou a reforma do órgão. Por tabela, feriu de morte o acalentado projeto brasileiro de figurar, ele também, no seleto clube dos "permanentes". Não que o enterro do projeto mereça lágrimas. Pertencer ao Conselho de Segurança traz inconvenientes que vão da ciumeira dos vizinhos à contingência de, uma vez lá dentro, ser confrontado a todo momento com os caprichos e imposições da potência americana. Mas é uma cisma do governo Lula. Faz parte de seu show. E foi golpeado justamente pelo "parceiro estratégico" chinês.

O som e a fúria são a característica central da política externa de Lula. De concreto mesmo, temos as relações com os EUA. Em honra delas, vale até uma boa trapalhada, como a protagonizada na semana passada pelo ministro José Dirceu, ao se precipitar em direção à Venezuela na véspera da chegada de Condoleezza. Ao que tudo indica, ele foi tentar arrancar do coronel Hugo Chávez algum tipo de abrandamento de sua postura antiamericana, para oferecê-lo como um mimo à secretária de Estado. Voltou de mãos vazias. O assessor de Lula para política externa, Marco Aurélio Garcia, diria depois que Dirceu foi à Venezuela discutir "assuntos gerais"– como se fosse concebível alguém correr a um avião, ir até outro país e voltar correndo só para discutir "assuntos gerais". O que se queria mesmo era exibir força e oferecer um agrado a Condoleezza. O governo Lula não sabe e até pensa o contrário, mas a relação com os Estados Unidos é a jóia da coroa de sua política externa.

VEJA

O mapa da indústria GESNER OLIVEIRA-



O brasil está mudando. O verbo planejar começou a ser conjugado. O "Mapa Estratégico da Indústria", lançado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) na última terça-feira em Brasília, é um exemplo. Ilustra uma tentativa de se desvencilhar das emergências do curtíssimo prazo e dedicar tempo para pensar o futuro.
Não surpreende que o documento da CNI tenha recebido pouco destaque relativamente à sua importância. Foi uma semana de mudanças na equipe econômica, mais propostas esdrúxulas do deputado Severino e até mesmo o raro evento de uma entrevista coletiva do presidente Lula. Prevaleceu o curto prazo.
Mas o documento da CNI é um primeiro passo para a aplicação de gestão e planejamento estratégico no debate sobre os rumos da indústria e do país. O exercício da CNI usa o chamado "Balanced Scorecard", na denominação em inglês, livremente traduzido por "gestão estratégica" ou "mapa estratégico". Tal método, desenvolvido por Robert Kaplan da Universidade Harvard e aplicado em várias empresas, consiste na tradução de objetivos estratégicos em um conjunto bem definido de programas de ação. Esses últimos estão sujeitos a acompanhamento sistemático mediante um painel de indicadores.
A utilização de indicadores objetivos é essencial. Alguns defendem que Zico foi melhor do que Romário. É uma questão empírica. Não é possível respondê-la sem contar com indicadores pertinentes e saber, por exemplo, quais os percentuais de finalização com sucesso, passes certos, desarmes, dribles, entre tantas outras estatísticas que ganharam espaço nas seções de esportes. Não se pode prescindir de um painel de indicadores relevantes para avaliar o desempenho de um jogador, de uma equipe ou de um país.
As metas fixadas pelo "Mapa Estratégico da CNI" são ambiciosas. Estabeleceu-se uma taxa média de crescimento de 5,5% até 2010 e de 7% até 2015. Isso equivale a mais que o dobro da taxa observada nos últimos dez anos (2,43% anuais). Se o Brasil tivesse crescido a 5,5% na última década, o PIB per capita seria de US$ 5.125, mais de 53% de nível atual (US$ 3.330). A última vez em que o PIB cresceu mais de 5,5% foi em 1994, ano de lançamento do Plano Real (5,85%). A última vez em que o PIB cresceu mais que 7% foi em 1986 (7,51%), ano do Plano Cruzado.
Embora singulares, as experiências da China e da Índia são úteis para aguçar a vontade nacional de resgatar o crescimento rápido e sustentado. Fenômeno que ocorreu no Brasil durante a maior parte do século 20, mas foi interrompido nas duas últimas décadas.
Para retomar a trajetória de crescimento, será preciso concentrar esforços em uma mesma direção e em ritmo mais acelerado. A impressão que se tem é que o Brasil está promovendo mudanças na direção certa, mas a um ritmo excessivamente lento. Tome-se a Lei de Falências, aprovada neste ano. Tramitou no Congresso por mais de dez anos, em um período marcado por forte endividamento e reestruturação industrial, durante o qual instrumentos modernos de recuperação de empresas teria sido essencial para preservar os fatores produtivos no mercado.
Não adianta chorar sobre leite derramado. Mas não se pode se dar ao luxo de postergar aquilo que no "Mapa da CNI" é tido como base do desenvolvimento como a logística, a oferta de energia, a infra-estrutura de telecomunicações e o saneamento básico. Como se sabe, a situação é trágica nessa matéria. Basta tomar um dos indicadores selecionados pela CNI: o estado de conservação das rodovias, que, segundo o próprio presidente Lula admitiu na entrevista de ontem, constitui uma fragilidade de seu governo.
A conquista da estabilidade de preços nos anos 90 dá condições mínimas para discutir médio prazo. A maior exposição da economia brasileira ao mundo crescentemente competitivo e marcado por um ritmo alucinante de inovação tecnológica obriga ampliar horizonte de planejamento.
Não há nada de errado na ambição das metas, antes pelo contrário. Mas, para alcançá-las, será fundamental garantir monitoramento adequado dos programas. Nesse sentido, os próprios autores do "Mapa Estratégico" admitem ser necessário detalhar mais alguns dos objetivos e programas propostos. Contudo não há dúvida de que o setor privado tenha dado um passo importante. Está na hora de o setor público fazer o mesmo.
FOLHA DE S.PAULO

JANIO DE FREITAS:A fala do trono

 Muito original a entrevista coletiva que Lula demorou 28 meses para conceder: em uma hora e 25 minutos de perguntas e respostas, não saiu uma só frase que acrescentasse algo, alguma coisa merecedora do nome de informação, capaz de justificar, senão os dois expedientes presidenciais consumidos em ensaios, pelo menos a longa expectativa e o tempo da própria entrevista. Mas a culpa não foi só de Lula. É difícil dizer qual dos dois lados se mostrou mais frustrante.
Mesmo a pergunta obviamente primordial, pronta na boca de qualquer pessoa, ficou pendurada em espera desanimadora: "Presidente, por que, afinal de contas, dois anos e quatro meses para dar uma entrevista coletiva, que é o modo dos presidentes transmitirem, periodicamente, esclarecimentos e informações às suas sociedades? O que houve ou há, que o presidente Lula sentiu a necessidade de não se ver perguntado?"
A maioria das perguntas refletiu a fixação mental do jornalismo brasileiro destes anos com o assunto econômico. E como, neste governo, o assunto econômico gira em torno de poucos pontos, as perguntas fizeram o mesmo. Juros na cabeça, é claro. O que permitiu a Lula mostrar certo progresso, tão poucos dias depois de censurar os brasileiros que não mudam de banco para buscar juros menores. Disse ele, a meio de uma das perorações: "Não é tão simples uma pessoa mudar de banco".
Em compensação, aproveitou uma das suas historinhas, entre as várias que sacou desde sofás aos mal lembrados tempos metalúrgicos, para cometer uma das suas. Citou, em uma das tantas defesas diretas e indiretas dos juros em seu governo, a luta do "deputado Gasparian durante dois anos" (o então constituinte Fernando Gasparian) para incluir na Constituição o teto de 12% ao ano para os juros. "Não só não conseguimos como aquilo era uma guerra no plenário", ensinou Lula ao auditório. A luta, que em vez de dois anos durou só o tempo da Constituinte, permitiu dizer "nós conseguimos, sim". O art.192, par.3º, da Constituição assinada por Lula proibiu juros reais (inclusive taxas e comissões) acima de 12% a.a., considerando crime a cobrança superior ao teto. E Lula liderou o PT na luta, perdida, quando Fernando Henrique quis a exclusão do teto constitucional.
O insistente capítulo dos juros levou a outra insistência. A do próprio Lula, na petição, várias vezes, desta frase: "Os juros não podem ser o único instrumento de combate à inflação". Muito bem. Mas por que o governo Lula, além de ter os juros como esse único instrumento, está já no seu terceiro ano sem fazer -pior, sem permitir- sequer o mínimo ensaio de outros modos anti-inflacionários? Isso passou em branco, como, de resto, aconteceu com o assunto de muitas perguntas, burlado por respostas sempre longas para serem mais facilmente tergiversantes.
Para quem prometeu 10 milhões de empregos em quatro anos, encher o peito para falar de 91 mil, e acrescentar que dorme bem por ter "a consciência de que faz o que deve pelo povo brasileiro", é grotesco como ato pessoal e autocondenatório como expressão presidencial. Mas por aí foi a entrevista, no incontrolável tom de campanha que têm as falas de Lula, sempre na base do "estamos preparando" e "vamos fazer". Com o apropriado clímax de encerramento: "Não estou fazendo um Brasil para mim. Estou construindo para o futuro. Eu quero um Brasil para os meus netos".
Pois muitos outros queremos um Brasil para os que hoje não recebem os meios de uma vida humanamente justa. Essa história de futuro tem 500 anos de Brasil. E nem por um só dos seus invocadores foi mais do que uma fuga às suas responsabilidades.
FOLHA DE S.PAULO

FERNANDO RODRIGUES:220 vezes "eu"

BRASÍLIA - Nada como uma entrevista para deixar mais claro para a população o que pensa o presidente da República. Ontem, Lula fez um bem para a sua administração ao ficar uma hora e 19 minutos aturando as perguntas de 14 jornalistas.
Estamos todos agora sabendo que Romero Jucá e Henrique Meirelles só saem do governo se forem para a cadeia. De alguma forma, Lula já havia expressado essa opinião. Ontem, ficou cristalina sua devoção aos dois subordinados enrascados.
Também está evidente que a política econômica é essa que está aí e ponto final. Podem ser realizados ajustes. O governo quer tentar renegociar contratos com prestadoras de serviços. Deve reduzir tarifas de importação. Mas Lula está obcecado com o combate à inflação. Os juros ficarão nas alturas por um bom tempo. Afinal, o presidente disse ser "unha e carne" com Palocci.
Nessa área econômica, vale registrar uma expressão perdida de Lula: "Nós somos um país capitalista". Ótimo. Já é um começo quando o presidente da República diz isso em público -ainda que o Brasil viva numa espécie de pré-capitalismo, muito louvado por uma parcela do PT.
Na entrevista de ontem, Lula revelou em público sua insatisfação com o relacionamento entre o Planalto e o Congresso. Mudanças vêm aí. José Dirceu e Aldo Rebelo só foram citados assim, de maneira indireta.
É possível dizer que o presidente foi evasivo? Ou que a entrevista deixou de fora vários assuntos urgentes, como o excesso de MPs e a alta carga tributária? Pode ser. Mas essas ausências se deram mais por conta do ineditismo do encontro -o primeiro depois de dois anos e quase quatro meses de mandato. Seria impossível sabatinar o presidente sobre todos os temas relevantes da República em pouco mais de uma hora.
A regularidade desses contatos entre mídia e Palácio do Planalto ajudará a fortalecer a democracia no país. Tudo depende de Lula -que se autocitou 220 vezes ontem.

FOLHA DE S. PAULO

CLÓVIS ROSSI :Distante e morno

SÃO PAULO - É bom deixar claro que gosto de Luiz Inácio Lula da Silva, a pessoa física. Do presidente, o leitor sabe o que penso.
É por isso que dá mais tristeza do que raiva vê-lo exposto ao público sem a alma, como aconteceu, mais uma vez, na entrevista coletiva de ontem, a primeira quase ampla, geral e irrestrita que concede (sem direito a réplica e eventualmente tréplica, toda entrevista vira monólogo).
Se o leitor não pertence nem ao Fla nem ao Flu em que se transformou a política brasileira (ou seja, em incondicionais do PT ou do PSDB, o que em geral turva o raciocínio), convido-o a ler cada trecho da entrevista como se estivesse lendo declarações dos antecessores civis de Lula.
Não vai achar grande diferença. Salvo, como é óbvio, em temas pontuais, como a eleição para a presidência da Câmara, que outros presidentes não perderam. No mais, o tônus vital é o mesmo: plano, para não dizer monótono.
Os outros poderão ter dito coisas parecidas com mais ou menos elegância, com maior correção nas concordâncias (erros que não impedem necessariamente um presidente de ser um bom presidente), mas não se nota, no discurso, qualquer diferença que entusiasme ou irrite.
Salvo na reincidência em pregar a tolice de "reeducação" do sistema financeiro pela mobilização dos traseiros populares, ainda que, desta vez, não tenha usado "traseiros".
As outras diferenças vêm das circunstâncias pessoais ou históricas: José Sarney de fato falava e governava mais, digamos, à esquerda, para apagar o pecado original de, tendo vindo do partido da ditadura, governar em nome da oposição a ela. Itamar Franco é ensimesmado demais para deixar marcas retóricas.
Um político que começou a carreira se dizendo "um brasileiro como você" tornou-se um presidente como todos os outros, distante e morno como todos os outros.

FOLHA DE S. PAULO

PRIMEIRA COLETIVA


 Depois de 28 meses de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu ontem sua primeira entrevista coletiva -uma saudável forma de relacionamento das autoridades com a sociedade por intermédio dos veículos de comunicação. Nos Estados Unidos, onde a fórmula é consagrada, o presidente George W. Bush já compareceu a 21 eventos dessa natureza.
Lula, no entanto, resistia a conceder coletivas, contrariando a opinião de alguns de seus próprios assessores da área de comunicação. Ao que se especula, temia situações embaraçosas, que o levassem a cometer eventuais deslizes.
Todavia, além de já estar demonstrado que o presidente não precisa dessa modalidade de contato com a imprensa para incorrer em gafes, é provável que os problemas de comunicação enfrentados pelo governo e a proximidade do ano eleitoral o tenham levado a mudar de idéia.
Cercada de preparativos, a entrevista de ontem demonstrou o acerto da decisão. O principal reparo a ser feito diz respeito ao veto à possibilidade de réplica por parte dos jornalistas, que acrescentou mais uma restrição ao formato, já em si já pouco fluente, devido ao número de participantes e à variedade temática das questões apresentadas.
Ainda assim, a conversa permitiu -em meio a frases ensaiadas e divulgação de dados favoráveis ao governo- conhecer um pouco melhor a opinião do presidente sobre alguns assuntos. Lula, por exemplo, apontou como as principais falhas de sua gestão o episódio da eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, a permanência de um quadro de deterioração da malha rodoviária do país e o fato de que o único instrumento até aqui encontrado pela equipe econômica para controlar a inflação tenha sido o aumento da taxa básica de juros.
É de esperar que essa experiência democrática incentive o Planalto a programar um calendário regular de entrevistas e que as coletivas se integrem à rotina de comunicação dos demais governantes brasileiros.

folha de s.paulo  editoriais

Dora Kramer:Lula reincorpora o candidato

Treinado, contido, vigilante e sem assumir posição sobre nenhum tema polêmico, o presidente Luiz Inácio da Silva deu ontem sua primeira entrevista coletiva vestido no figurino pré-moldado por Duda Mendonça para ganhar a eleição 2002. Tudo indica será essa também a farda da tentativa de reeleição em 2006.

Entrou de novo em cena o 'Lulinha paz e amor', que não ataca adversários, não usa o passado para acusar, chama a todos de "querido e querida", muda o rumo da conversa quando o assunto não lhe convém e, principalmente, não se desvia um centímetro do campo das generalidades; fica em cima do muro onde o terreno é mais seguro.

Bastante diferente do presidente que há dois anos e quatro meses todos os dias tem algo a ensinar, um pensamento a transmitir.

Sob a ótica da Secretaria de Imprensa da Presidência, a experiência resultou positiva. A pauta, econômica, não poderia ter sido melhor pois representativa da parte mais sensata e eficaz do Governo; a reverência e, em alguns momentos, franca amabilidade dos entrevistadores não criaram ambiente para cobranças mais fortes; o formato rígido sem direito a réplica por parte dos jornalistas afastou a possibilidade de confronto de informações.

Além disso, o presidente estava irrepreensível no quesito contenção verbal. E fiscalização mental também.

Pelo menos uma vez, Lula vislumbrou a gafe ao longe e fugiu dela. Foi na segunda pergunta, sobre um possível aumento de salários para os militares. O presidente começou solto, querendo dar lições de sindicalista: "O trabalhador tem que brigar sempre, até porque o aumento só vale no primeiro mês". Avançou e teria escorregado na frase "dificilmente uma categoria que deixa acumular perdas...", se não percebesse a tempo que caminhava para atribuir aos militares seus salários baixos.

Parou por aí, deu uma volta até São Bernardo do Campo – "comecei minha carreira...." –, retornou elogiando o trabalho social das Forças Armadas e terminou reeditando a promessa de carinho feita na semana passada.

Não houve outro momento de risco. Mas também não houve momento algum em que se pudesse saber exatamente o que pensava o presidente a respeito de coisa alguma.

Por exemplo, sobre autonomia do Banco Central. É contra ou a favor? "Vamos deixar o Congresso e os especialistas discutirem, e se ficar demonstrado que isso pode servir para baixar os juros, não serei louco de não fazer".

Ou seja, depende.

Sobre as mudanças ocorridas entre o discurso antigo do opositor e a prática atual do governante, simplesmente derivou a resposta para o ponto que lhe interessava: ressaltar o "rompimento amigável" do Governo com o FMI. Esperava-se alguma autocrítica.

Estados Unidos e Venezuela?

Lula é a favor da "paz e da harmonia" entre os povos americanos, e não vê "possibilidade de conflito entre os dois países". O cenário é de acirramento, e mereceria uma opinião mais realista sem precisar ser imprudente.

As acusações contra o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e o ministro da Previdência, Romero Jucá, levaram o presidente a repetir o mantra da presunção da inocência adotado quando o presumido é aliado, mas flexibilizado quando atinge o adversário.

No que tange à segurança pública, tema tratado como prioridade nos primeiros discursos de Lula depois da posse, ficamos sabendo o seguinte: o presidente defende um "esforço conjunto" de municípios, estados e União para o combate ao crime "que hoje é organizado e sofisticado" e requer "inteligência". Não se trata, segundo ele, "de pegar o ladrão como se fazia antigamente".

Quanto aos erros, Lula foi instado a citar três. Admitiu falha na infra-estrutura, reconheceu que os juros precisam de tratamento diferente e surpreendeu ao incluir a eleição de Severino Cavalcanti na lista minutos depois de ter dito que a presidência da Câmara não era assunto a ser tratado pelo Executivo. "Sorte dele que ganhou, azar de quem perdeu", disse.

Como a economia dominou, todo o resto ficou de lado: a imensa embrulhada política que atrapalha a campanha da reeleição, os evidentes e assumidos problemas de gestão, a multiplicidade de interlocutores oficiais na política externa, a relação promíscua com os partidos aliados, o fisiologismo adotado como norma de conduta.

Nada se falou a respeito das mudanças ministeriais consideradas até outro dia urgentes e repentinamente suspensas, nem um pio sobre o aumento de gastos no Palácio, nenhuma referência às brigas internas do PT, zero interesse a respeito da bandeira que, em 2006, substituirá o estandarte da esperança usado em 2002.

A avaliação sobre a primeira entrevista do presidente, portanto, não cabe numa resposta única. Para dentro do Palácio do Planalto, foi muito boa – tão boa que não justificou o atraso na realização nem a resistência do presidente em incorporar a prática às tarefas inerentes ao mandato.

Para fora, o evento de ontem não influiu nem contribuiu. Lula reafirmou os preceitos da política econômica e a confiança no ministro da Fazenda, como faz diariamente.

Valeu como teste, mas conviria na próxima – se houver – Luiz Inácio da Silva apresentar-se mais próximo ao figurino do presidente e menos ao molde do candidato, se quiser sustentar a tese de que a campanha eleitoral ainda não começou.

Erro

Por imperdoável desatenção, a palavra 'pretensão' saiu ontem grafada como 'pretenção'.

O DIA

AUGUSTO NUNES :Entrevista antecipa tática do candidato


Sejamos clementes: pela primeira vez em 28 meses, o presidente Lula da Silva aceitou expor-se publicamente a questões formuladas por um grupo de jornalistas. Isso é bom. E desta vez não houve, registre-se, a detestável triagem de nomes e temas sempre reivindicada por inquilinos do Palácio do Planalto.

Livremente indicados pelos órgãos de comunicação, 14 profissionais escolhidos por sorteio fizeram perguntas com igual liberdade: não havia assunto proibido. Pouco mais de uma hora depois, quando saiu do auditório que servira de cenário para a estréia longamente esperada, Lula reconhecera na prática que tais encontros figuram entre os deveres do presidente. O país quer saber? Cumpre ao chefe de governo explicar (e explicar-se).

Nesta sexta-feira, Lula rendeu-se à evidência: assim são as coisas nas democracias genuínas. Formalmente, prometeu conceder com regularidade entrevistas do gênero. Tomara que as próximas sejam coletivas de verdade. A de ontem ainda não foi. E não foi porque a maioria dos Altíssimos Companheiros entendeu que Lula deveria jogar na defesa. Para evitar a infiltração de adversários na pequena área do time do Planalto, subtraiu-se aos jornalistas o direito à réplica, mesmo se considerassem a resposta inconsistente, inconvincente, inexata, equivocada ou fantasiosa.

A supressão desse direito democrático matou no nascedouro a possibilidade de confrontos inevitáveis nas coletivas que efetivamente buscam iluminar zonas de sombra em qualquer setor do governo, rastrear a mente do entrevistado, pinçar a verdade na areia movediça forjada por declarações contraditórias. Banida a réplica, a entrevista pareceu ainda mais engessada que os penosos debates entre candidatos. Lula disse o que quis. Não pôde ser contestado.

Perguntou-se por que as instituições financeiras controladas pelo governo, como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, não determinam reduções sensíveis nos juros aplicados aos cheques especiais. (Esse bom exemplo induziria multidões de comodistas patológicos a levantarem o traseiro e mudarem de banco com fundados motivos.) Lula desconversou sobre a essência e passou a discorrer sobre os programas de crédito que o governo vem abrindo.

Uma jornalista observou, em meio à pergunta, que o Planalto sofrera uma relevante derrota com a ascensão de Severino Cavalcanti à presidência da Câmara. "Acho Severino um aliado", disse Lula ao começar a resposta. "Acha mesmo?", sorriu a entrevistadora. Resumida em duas palavras, foi a única réplica do encontro. Os jornalistas respeitaram o silêncio obsequioso que lhes fora imposto mesmo quando Lula escorregou em contradições. Não foram muitas. Mas exigiam a contestação que não houve.

Convidado a mencionar três erros cometidos pelo governo, Lula abriu a lista com um episódio que, minutos antes, procurara desdenhar: a vitória de Severino. Como assim?, indagaram dezenas de fisionomias vincadas pelo desconcerto. O deputado é companheiro ou adversário? Rostos dispensam palavras para expressar-se. Mas não podem ser ouvidos. É preciso vê-los. Não foram capturados por nenhuma das imagens geradas pela Radiobrás.

Quem conhece de perto esse talentoso comunicador percebeu que, na ligeiríssima introdução, Lula estava tenso. Segundos depois, esbanjava a segurança de quem fora submetido na véspera a vigorosos interrogatórios dirigidos por Duda Mendonça, com assessores no papel de jornalistas. Aprovado na fase dos preparativos, preparou-se para o que viesse. O tom e o conteúdo das respostas lembravam palanques.

A primeira coletiva do presidente acabou transformada no primeiro discurso do candidato à reeleição.

JB

Merval Pereira:Mãos de tesoura

O presidente Lula deve estar se perguntando por que, afinal de contas, não aceitou antes dar uma entrevista coletiva, como lhe propôs por dois anos seu amigo e ex-secretário de Imprensa Ricardo Kotscho. Depois de uma hora e meia de perguntas basicamente econômicas, saiu da experiência certamente mais seguro de que pode responder a qualquer indagação, e reiterou, de maneira organizada e irrefutável, o apoio à política econômica em vigor.

Embora muitas das respostas não tenham sido satisfatórias, especialmente quando tentou explicar que não poderia julgar ministros seus, como Romero Jucá, da Previdência, ou Henrique Meirelles do Banco Central, antes que sejam considerados culpados pela Justiça, a entrevista não doeu, e serviu até mesmo para mandar recados para dentro do governo.

Além de não ser verdadeira a afirmação de que sempre se pautou por não prejulgar as pessoas — podia até ser assim no plano pessoal, mas no político essa não era a regra petista na oposição — Lula não tinha qualquer necessidade de nomear um ministro, no caso do senador Romero Jucá, que já estava respondendo a processo. No caso do presidente do Banco Central, realmente seria inadequado demitir seu presidente devido às acusações em que são possíveis várias interpretações legais.

Mexer na equipe econômica, aliás, é o que o presidente Lula só fará em casos extremos, como ficou claro durante toda a entrevista. Na verdade, o que se tirou de melhor dela foi talvez a mais enfática defesa da política econômica do ministro Antonio Palocci, de quem se diz "unha e carne", o que sinaliza que não há espaço para aventuras nessa área.

O presidente Lula, aliás, nunca esteve tão conservador, tão paternalista, quanto ontem, quando usou a metáfora preferida da família para explicar várias questões, desde o aumento salarial dos militares até o salário-mínimo. E nunca havia ficado tão explícita sua determinação de não contaminar a economia com questões ideológicas.

Até mesmo a autonomia do Banco Central, que mais uma vez está sob fogo cruzado dos críticos dos juros altos, foi tratada com surpreendente naturalidade pelo presidente Lula. Este é um assunto que provoca urticária nos setores mais esquerdistas do petismo, e é um dos alvos dos que são contrários à política econômica. Pois Lula tratou-o com desassombro, afirmando mesmo que se ficar convencido de que esta é a melhor solução, não terá dúvidas em adotá-la.

Para quem já havia classificado de bravatas muitas das reivindicações feitas durante o período oposicionista, não foi surpresa Lula afirmar que só faria aventuras na economia, ou "pirotecnia", se ainda tivesse 30 anos. Quase sessentão, Lula está mais para o pai que quer dar estabilidade à sua família do que para o revolucionário que um dia já apavorou a classe média brasileira.

Ele agora apavora de outra maneira, mais fácil de ser contornada por uma boa campanha publicitária: apavora pelos improvisos em que freqüentemente fere, não apenas a língua portuguesa — ontem, durante a entrevista, quase não acertou as concordâncias — mas o bom-senso das pessoas; apavora pela ignorância de temas mais corriqueiros, como a questão dos juros bancários ou as pesquisas do IBGE; pela incapacidade de decidir e, apavora, enfim, pela demonstração diária de que, embora seja um político notável e um homem de bem, nem ele nem o PT estavam preparados para governar.

Apesar de tudo, considera tarefa difícil achar erros em um governo "que acerta tanto", e continua com a mania de que está inaugurando o mundo na sua administração. O presidente Lula parece não conseguir conectar causa e efeito, o que ficou claro na entrevista coletiva, mesmo que ninguém tivesse tocado na ferida. Ele mesmo, em uma entrevista para a TV da CUT, havia chamado a atenção para o fato de que o país vive um paradoxo: altas taxas de juros para conter a inflação, e ao mesmo tempo uma política de crédito popular que faz crescer o consumo.

Ontem, voltou a tocar no assunto, vangloriando-se da política de microcrédito, especialmente o consignado em folha de pagamento, quando ela é uma das razões para o crescimento da inflação, que antes era provocada mais pelos preços administrados e hoje é também de demanda.

A política de microcrédito começou há 30 anos em Bangladesh, quando Mohammed Yunus e alguns voluntários resolveram fazer uma experiência radical de incentivar o crédito para pessoas pobres, como maneira de estimular o desenvolvimento. Daí nasceu o famoso Grameen Bank, cuja experiência se espalhou pelo mundo.

Hoje, o microcrédito é visto como um instrumento valioso de política social, mas não tem nada a ver com uma revolução capitalista que Lula se atribui ter desencadeado. Na verdade, todo esse dinheiro no fim é subsidiado pelo governo, e juntamente com outras medidas que incham a máquina pública, é responsável pelo aumento dos gastos do governo, o que exige uma carga tributária cada vez maior.

O fato de que, assim como no governo de Fernando Henrique, essa vasta rede de proteção social é uma parte da causa do aumento dos gastos públicos não absolve o governo. Seria preciso cortar gastos em outras áreas da administração, e aprovar novas reformas estruturais, para que a economia brasileira pudesse crescer sem distorções, como prometeu Lula na entrevista coletiva. E para que os juros fossem menores.

Ele tem agora no governo o homem certo para a tarefa de cortar custos: o novo secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Murilo Portugal, que era conhecido no tempo em que ocupou a Secretaria de Tesouro do governo Fernando Henrique como "Murilo Mãos de Tesoura".



O GLOBO

Miriam Leitão:Quase monólogo

Mesmo com a entrevista coletiva de ontem, o presidente Lula está na história da democracia brasileira como o presidente civil mais avesso a essa prática comum em qualquer regime democrático. Entrevista coletiva não tem que ser um evento, é para ser rotina. É difícil saber o que ele temia, já que o formato, em que os repórteres têm o direito de fazer uma pergunta apenas, em que não pode haver réplica, favorece enormemente o entrevistado, como se viu ontem.
— Tem sempre uma primeira vez — disse ontem Lula ao iniciar sua entrevista.


Estranho é, num regime democrático, ter que esperar tanto pela primeira vez. O presidente disse que esta deve ser a primeira de uma série de outras entrevistas e afirmou saber estar em dívida com os jornalistas que pedem a ele entrevistas exclusivas:

— Talvez seja a época de fazer isso — disse.

Com o clima eleitoral antecipadamente criado pelo próprio governo, fica muito conveniente para ele passar agora a dar mais entrevistas. A estréia da nova fase foi, sintomaticamente, com uma entrevista exclusiva de 50 minutos para seus amigos da CUT.

Os governantes militares faziam exatamente como Lula fez nestes primeiros dois anos e quatro meses do seu mandato. Davam apenas entrevistas fora do país, formais, ao lado dos chefes de Estado do país visitado. Os jornalistas aproveitavam para perguntar sobre a situação interna, já que era a única hora em que os generais concediam uma abertura. Havia também naquela época — como há agora — espaço para pequenas abordagens informais. O mais fechado de todos os militares, o general Ernesto Geisel, deu certa vez uma importante entrevista ao repórter da TV Globo Geraldo Costa Manso, em Tóquio. Figueiredo se deixava abordar com certa facilidade no exterior, para irritação do seu esquema de segurança. A técnica era simples e eu mesma a usei várias vezes. Fazia uma primeira provocação, ele parava e começava a responder, os jornalistas se aproximavam e saía uma entrevista improvisada.

Lula seguiu este modelo do regime militar: fala em pequenas abordagens aqui ou no exterior, mas são conversas atropeladas com todos os jornalistas falando ao mesmo tempo. Na hora em que uma pergunta não lhe agrada, basta os assessores tirarem o presidente e tudo termina bem para ele.

Lula é, ao mesmo tempo, o presidente que mais fala e o que menos dá entrevista. Ele fala muito, freqüentemente de forma irrefletida, em qualquer cerimônia: os já famosos improvisos-escorregões do presidente. Mas resiste à pergunta, ao contraditório, à pauta que ele não determine. Curioso é que, antes de ser eleito, Lula tinha uma excelente relação com os jornalistas; nada prenunciava o presidente avesso a coletivas em que ele se transformou.

O formato das entrevistas americanas é muito melhor que o das do Brasil. Correm mais soltas, com os jornalistas disputando a atenção do presidente, sem ter essa fila toda organizadinha pela assessoria. Há quem critique porque é o presidente que escolhe quem pergunta, mas o resultado final é bem mais jornalístico. Esse triste formato brasileiro das coletivas presidenciais vem do regime militar e nenhum governo civil quis mudá-lo porque é muito cômodo para o presidente: o repórter vem com a sua pauta, o presidente dá uma resposta vaga ou insuficiente, e não há espaço para a insistência no tema tratado. Logo em seguida, vem outro repórter, com outra pauta, e assim o entrevistado vai sendo poupado das suas contradições e respostas imprecisas. Ontem, quem tentou replicar foi admoestado por André Singer.

E, assim, a entrevista ganhou cores de monólogo: um jornalista perguntou por que ele mudou. Mas, ao fazer isso, deu os exemplos do salário-mínimo e do FMI. Ele aproveitou para ir pelas laterais. Disse que o salário-mínimo é sempre baixo, teceu outras considerações sobre o tema, contou que, na década de 70, quando começou sua vida sindical, o FMI não tinha "principalidade". Mas o sentido da pergunta era por que ele mudou tanto abandonando o que sempre defendeu. Ficou sem resposta. Outra pergunta era sobre se o aumento de 23% prometido aos militares no ano passado será concedido. Lula voltou a falar dos seus tempos de sindicalista, falou da importância que vê agora nos militares e disse que vai tratar o assunto com carinho e dar um reajuste dentro das possibilidades. Ou seja, não respondeu de novo.

E foi por aí, não respeitando o sentido das perguntas. Alguém perguntou sobre o aumento dos servidores e a resposta começou no mesmo tom desviante:

— Vou lhe contar uma pequena história — disse, de novo, fugindo para os auto-referenciados tempos do sindicalismo.

O mesmo repórter perguntou pela situação do ministro Romero Jucá, ao que Lula respondeu:

— Você deve acompanhar a minha vida política e eu primo por entender que todo ser humano é inocente até prova em contrário.

Infelizmente o PT, na oposição, não era de dar aos seus adversários o benefício da dúvida.

Em outros dois momentos, o presidente mostrou desconhecer assuntos que estão na imprensa. Numa outra resposta, tentou minimizar a derrota na Câmara, para logo depois citar esse como o primeiro dos seus erros.

Os encontros com a imprensa têm que ser mais freqüentes e menos controlados. Têm que ser rotina e não evento. As entrevistas a grupos menores ou exclusivas não podem ser um prêmio aos que manifestam opiniões mais favoráveis ao governo. Não podem ser palanque, têm que ser uma das formas pelas quais governantes democráticos prestam contas à população e esclarecem a opinião pública.

O GLOBO

O dia em que o jornalismo político morreu



Por Rui Nogueira


Tem nome o grande vitorioso da primeira entrevista coletiva concedida pelo presidente da República com dois anos e quatro meses de governo. O vencedor foi o secretário de Imprensa e porta-voz do Planalto, o jornalista e cientista político André Singer. Ele estava certo em insistir que Lula aceitasse a empreitada, e tudo indica que o acerto decorreu de uma não menos correta avaliação prévia, a de que jornalismo político está morto, mas ainda faltava enterrá-lo.

A solenidade fúnebre foi nesta sexta, no 2º andar do Palácio do Planalto.

Uma imprensa abduzida foi "fuuunnndo" no interrogatório com respostas que só podiam ser as que o presidente deu. O fato político mais marcante do ano, a vitória do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) e a acachapante derrota do governo na disputa pela presidência da Câmara, foi apresentado com duas informações falsas. Assim, ao vivo, pela TV e para todo o país.

Primeira informação falsa: a de que a Câmara passou a "andar em ritmo lento" depois da vitória de Severino. Foi o contrário. Os resultados das decisões tomadas pelos deputados podem não ser do agrado do governo ou da oposição, mas uma coisa é certa: o ritmo acelerou tanto que o governo ficou zonzo, foi derrotado na votação da MP 232 e levado a reboque na votação da Lei de Biossegurança e em outras votações. Depois, por causa da morte do papa João Paulo 2º e das medidas provisórias (responsabilidade do Executivo, não de Severino) que trancaram a pauta, aconteceu o óbvio: a Câmara parou. Segunda informação falsa: a de que o governo foi derrotado na votação da Loas (Lei Orgânica da Assistência Social) depois que Severino assumiu. A vontade de defender o Executivo e satanizar o Legislativo era evidente.

A influência de Severino Cavalcanti nas votações de comissões do projeto que expande os benefícios da Loas – e pode estourar o Orçamento da União em até mais R$ 26 bilhões – é a mesma influência das lagartixas de jardim sobre as marés dos oceanos. Nenhuma. Os fatos, ora, os fatos.

Nada disso foi esclarecido, e Lula, mais uma vez, cuidou de dar a serventia merecida ao assunto. Ao tratar a derrota do PT como um "azar", o presidente distanciou-se um pouco mais do seu partido e aprofundou a mensagem que lhe interessava: Palocci, sim; PT, deixa pra lá. A área política atrapalha, e o sonho é governar sem ela. Congresso parado com as medidas provisórias foi assunto que não entrou em pauta.

O que a mídia e o presidente queriam era tratar de juros, mais juros e juros reais, de empréstimos consignados e dos perigosos juros (mais uma vez) dos cheques especiais, do salário mínimo, do salário dos servidores públicos e do soldo dos militares, da insegurança pública no Rio e no resto do país, das relações EUA-Venezuela, da situação jurídico-administrativa do ministro Romero Jucá (Previdência Social) e do "ministro" do BC, Henrique Meirelles, das rodovias esburacadas, do controle da inflação e da importância de mirar o centro da meta, além da intimidade "unha e carne" do presidente com o ministro Antonio Palocci (Fazenda).

Soubemos, ainda, que o presidente dorme tranqüilo e de consciência leve por tudo o que já fez para melhorar a vida dos brasileiros. A pergunta que mereceu essa resposta foi o único momento em que o presidente Lula demonstrou uma leve irritação. O repórter quis saber se ele dormia direito apesar de o governo do PT gastar mais com o pagamento de juros do que em investimentos em infra-estrutura. O presidente tinha tudo, realmente, para se incomodar com a pergunta, como mostra o economista José Roberto Afonso.

"A conta dos juros subiu muito mais que o aumento do superávit. No último biênio de FHC, foi 7,2% do PIB; já no primeiro triênio de Lula, foi de 9,6% do PIB. Ou seja, no governo Lula, na média, se gastou 2,4% do PIB a mais com os juros da dívida. Nunca os governos do país gastaram tanto com juros no pós-guerra, e é curioso que Lula só fala em taxa, mas não diz que o mais importante é a despesa, que decorre da aplicação de uma taxa sobre um estoque de dívida, que no governo dele é muito grande", explica o economista.

Nem o "golpe Alencar" chamou a atenção dos jornalistas. Lula confessou que o empresário José Alencar (PL-MG) virou vice para ser usado, na campanha de 2002, como porta-voz de uma política antijuros altos que o futuro presidente da República prometia pôr em prática. Na boca do metalúrgico e sindicalista Lula, seria mais difícil produzir o convencimento necessário. A promessa era de fazer um "governo da produção", o que redundou em um governo da agiotagem.

Que país é este em que vivemos, que capital da política é essa Brasília dos mapas e em que mundo vivem nossos jornalistas para que nem José Dirceu, Waldomiro Diniz e Aldo Rebelo tenham sido mencionados? Os jornalistas que fazem a cobertura de política e moram em Brasília não tinham uma mísera pergunta sobre reforma ministerial?! O PP de Severino vai ganhar o ministério? E Roseana Sarney? E a coalizão político-partidária que não consegue virar coalizão governamental por mais concessões fisiológicas que o Planalto lhe faça?

Precisava mesmo comprar o Aerolula? E o reequipamento da Força Área? E o programa nuclear? E a aliança para a reeleição, em 2006? E a verticalização das alianças? E como é que se faz uma intervenção do Rio que é derrubada unanimemente pelo Supremo (STF)?

Com Lula, o Brasil governa-se sem política. Falou-se muito dos ministros que regem a economia: Palocci, Furlan, Roberto Rodrigues e Celso Amorim, que também cuidam de negociações comerciais. Tocou-se, de maneira bem lateral, no nome de Márcio Thomaz Bastos, da Justiça. E o partido do presidente, o PT? E presidente do PT, José Genoino?

Lembrei-me de tantos assuntos políticos que sou obrigado a concluir: morremos sem graça e de graça, oferecendo a cabeça na bandeja. Foi o presidente quem introduziu no dicionário político o "traseiro", mas, mesmo assim, ninguém tocou no assunto. Pelo lado escatológico? Não, pelo lado político.

Luiz Inácio Lula da Silva agradece o "confronto" que lhe proporcionamos e imagina, envolto em incontida felicidade, o que será a campanha de 2006. Parabéns, André Singer.

Primeira Leitura

sexta-feira, abril 29, 2005

Eles, que deram um pé no traseiro da teoria política

Por Reinaldo Azevedo


VIRAM SÓ? Até ele se comporta e senta no banquinho. Dizem que até reconhece algumas letras...
Só não sinto pena de Lula em razão das bobagens que diz porque reprovo a sua pouca disposição para sentar o traseiro na cadeira e ler ao menos um livro, o que poderia, sem dúvida, ser útil à sua formação. Assim como ele nos incitou com o seu "Levanta o traseiro e anda", eu retruco: "Sossega o traseiro e senta". Por favor, presidente, tenha ao menos a paciência de ler os relatórios que certamente lhe mandam sobre taxa de juros, spreads bancários e coisas afins. Antes de sair por aí usando termos à matroca, cujo significado o senhor certamente ignora, pare um pouquinho para consultar, vá lá, nem que seja o dicionário.

Restam-lhe ainda 613 dias de mandato (ai, Jesus!). Se aprendesse três palavras novas por dia, ao fim do curso, seriam 1.839 vocábulos que se somariam àqueles que já conhece. Para o senhor ter uma idéia, uma boa tradução do capítulo 13 da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, um dos mais belos textos da literatura universal, não tem mais de 250 palavras. Descartadas as repetições, conectivos, preposições e termos de apoio, devem ser, sei lá, menos de cem os termos distintos. Serelepe como o senhor é, não padecendo da preguiça glútea de que nos acusa a todos, o senhor poderia retrucar que a palavra não faz o pregador, e sim a inspiração. Até concordo. Mas a palavra que abunda, fique certo, não prejudica a inspiração que claudica. Da ampliação dos recursos pode nascer um manejo um pouco mais destro que venha a livrá-lo desse constante sinistro verbal.

Vão dizer que estou aqui a tratar Lula com desrespeito. Eu, não. A rigor, foi ele quem, a título de estímulo, deu um pé no traseiro de seus novos patrões. É até compreensível. Lula não devia satisfações a ninguém desde 1975, quando assumiu a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. Iniciava ali a sua carreira de self-made man, livre-atirador da ideologia (que nunca teve) em favor do socialismo que nunca soube o que era. Depois vieram alguns intelectuais da USP e alguns marxistas de batina e lhe venderam a preços módicos utopias que haviam custado milhões de vidas na Europa, Ásia e América Latina. Ele comprou.

Juntou, então, a utopia (de fato, distopia) à vida folgazã de dirigente sindical. A sorte foi-lhe sorrindo de empreitada em empreitada, até lhe dar a Presidência da República. Mas, oh desdita!, embora ele goste do emprego, vê-se, descobriu que não pode ser mais olímpico como era quando imperador de aparelhos sindicais. Resultado: fica zangado. E, ao se zangar, é claro que ele não vai ler a Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios. Nada disso. Prefere tirar dos alfarrábios da infâmia nacional aquela que é a crítica mais pusilânime que certa elite vagabunda fazia aos brasileiros: este é mesmo um povinho mequetrefe, que só sabe reclamar.

Na sua ânsia de ser aceito por aqueles a quem julgou combater um dia — nota: jamais combateu porque nunca soube o que quis e nunca teve projeto —, mimetiza-lhes o pior. Sociologicamente, Lula é um desastre formidável: quando sindicalista, sempre teve uma visão vesga e aparvalhada do processo produtivo; presidente, torna-se ventríloquo da versão deformada da economia de mercado.

Sim, vejo alguns colunistas que lhe cantavam as glórias e derramavam adjetivos aos pés — gente que, em verdade, tem tanta aversão aos livros e à teoria política quanto o seu antigo objeto de culto — fazer muxoxos de desagrado e acusá-lo de traidor. Aqui, peço licença para defender Lula. Traidor ele não é! Vocês é que estavam desinformados. Desinformação que continua a alimentar ainda hoje os panegíricos às avessas quando evocam o seu passado de grande líder como contraste ou paradoxo com sua atuação presente. O que eu posso dizer neste particular? Ainda bem que Lula não se levava a sério, não é? Ou Quito seria aqui. O que não quer dizer, obviamente, que esteja fazendo a coisa certa ou que não sirva a um projeto autoritário de sociedade. Sejamos gratos por Lula ter desistido de seus antigos equívocos para que possamos, com mais clareza, apontar seus equívocos presentes.

O que eles querem
O momento político não é dos mais iluminados, não. A crônica política ajuda a criar confusão e desinformação e a turvar o cenário. Boa parte dos críticos do presidente, se bem lidos, anseia é por um Lula mais parecido com seu discurso pregresso, o que é uma temeridade. Corresponderia a somar ao desastre administrativo em curso o autoritarismo político, que, volta e meia, mostra a fuça, mas sempre contido a tempo pela sociedade. Se querem uma prova, procurem investigar quantos são os olhos compridos e substantivos lânguidos que são dirigidos ao Equador. Há mesmo quem use aquele país como uma espécie de advertência a Lula, como se dissessem: "Ou o senhor caminha imediatamente para a esquerda ou o aguarda a voz rouca das ruas". Na prática, sugerem que o que resta de discurso incendiário no petismo seja apagado com gasolina.
E eu, no entanto, digo: o problema de Lula não está, é claro, em ser fiel ao que disse. Pessoalmente, espero que seja cada vez mais infiel, já que o discurso petista não passava de uma soma de anacolutos políticos e econômicos. O problema de Lula é bem outro: está no desrespeito às instituições e na forma absolutamente ligeira, freqüentemente irresponsável, com que aborda questões da maior gravidade. A equação macroeconômica é certamente ruim e dependente apenas da saúde financeira de estranhos. Isso é consenso até entre os defensores do governo. Não há uma só pessoa que faça um juízo, vá lá, matemático ou econométrico do crescimento do país que não o veja como parte da expansão mundial, de que participamos com timidez, diga-se. Mas também é óbvio que não reside aí o pior do governo petista.

O monumental desastre em curso é de ordem gerencial e, se quiserem saber, guarda relação distante, de fato, com a taxa Selic. Algum economista que não dá a mínima pelota para a política e que entrega o futuro ao curso dos fatos deve ter soprado aos ouvidos de Lula algo como: "Sem crise, mantemos compactada boa parte da elite com essa política; com crise internacional, todos os absolutos são mesmo relativos". E Lula se convenceu. O buraco está em outro lugar. À diferença dos meus coleguinhas de esquerda que querem um Lula mais Lula, um governo ainda mais petista, infiro que a memória partidária original incrustada na máquina administrativa é que responde pelos descalabros.

Assim é com a politização incompetente da Saúde; com a baderna sangrenta que se instalou no campo, com a piada macabra em que se transformou a assistência social no país (e pensar que Lula vendeu o Fome Zero até na ONU — se bem que a ONU, uma espécie de petismo planetário, mereceu ouvir), com a desmoralização da já desmoralizada Previdência (Jucá é do PMDB, mas atendia originalmente ao propósito da aliança partidária para 2006), com o desprezo olímpico devotado à segurança pública (o defunto Plano Nacional de Segurança jamais saiu do papel) ou com a política externa desastrada e amante de ditaduras. A rigor, para os propósitos a que se destina — bem entendido! —, só a política econômica funciona. E tudo porque este é, sim, senhores!, um governo do PT. E não porque falte petismo ao Planalto. Quem considera Lula um traidor tem é de se juntar a Heloisa Helena. Eu acho que ele cumpre um destino. Como diria Genoino em seu momento Schopenhauer, "uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa".

Conto, claro, a possibilidade de que possa estar errado, e os meus coleguinhas de esquerda, certos. Mas só aceito debater com textos. Quero que me apresentem ao menos um de economia política produzido pelo PT ao tempo em que era de oposição que não conduzisse o país ao desastre. Só os aduladores de biografias vitaminadas pela mitificação ideológica poderiam supor que o PT era viável numa sociedade democrática, com aspirações à civilização. Reitero: apresentem-me os textos da viabilidade das propostas petistas de governo.

Então quer dizer que o PT ainda é o melhor antídoto contra o petismo? Não! Essa é outra falácia posta em curso pelos partidários moderados — alguns elaboram a análise como crítica, outros, como calmante para as elites. Na realização dos desastres acima listados, está se construindo também um Estado e uma forma de entender a coisa pública. O PT não se realiza só como negatividade, mas também como positividade — a depender, claro, do que se quer. Esse Estado serve hoje ao propósito de alimentar uma nova classe e garantir a sua reprodução.

Tenta-se construir marcos que se querem indeléveis, que teriam potencial para enrijecer a democracia, como é o caso da reforma universitária ou da reforma sindical (que parece ter naufragado). A República Sindical — esta que silencia diante da absurda fala de Lula sobre os nossos traseiros — toma conta hoje do aparelho estatal e paraestatal, com ramificações no setor financeiro por meio dos fundos de pensão. O flerte do governo Lula com Chávez, por exemplo, é muito mais importante do que parece. Na Venezuela, trama-se abertamente contra a democracia, embora respeitando formalmente alguns de seus ritos.

Os basbaques
O jornalismo basbaque (aquele mesmo que acreditava de tal sorte em Lula que agora o chama de traidor) cai na conversa de que Condoleezza Rice realmente aposta no presidente brasileiro para ser o Nestor de Chávez — isso se soubesse, é claro, quem é Nestor... E Lula não será. Diante do óbvio insucesso do Brasil como mediador das relações Washington-Caracas (afinal, Condoleezza não é maluca, e Chávez é), restou a Marco Aurélio Garcia, o ministro interior de Lula para Relações Exteriores, dizer, nesta quarta, que o Brasil não é "garoto de recados". Por enquanto, tem sido, sim: garoto de recados do protoditador da Venezuela.
Precisamos, enfim, de traseiros menos serelepes também no jornalismo. Hora de um pouco de história e de teoria política. Quem se habilita?

Lucia Hippolito: O desejo de controlar as informações

"Finalmente, depois de quase dois anos e meio de mandato, o presidente da República vai dar sua primeira entrevista coletiva aos meios de comunicação brasileiros. Uma atividade que deveria ser de rotina, transformou-se num acontecimento.
Em qualquer país democrático do mundo, o que mais se vê é o governante dando entrevistas coletivas. Trata-se de uma simples prestação de contas à sociedade. Jornalistas perguntam, governantes respondem. E a vida continua.
No Brasil, talvez por causa dos 21 anos de ditadura, não se consolidou o hábito de entrevistas coletivas periódicas do presidente da República. Até porque os presidentes brasileiros não têm o hábito de prestar contas publicamente à sociedade.
Bem ou mal, de Sarney para cá, assistimos a algumas coletivas de presidentes da República.
Mas Lula governou quase dois anos e meio sem dar uma única entrevista coletiva. Preferiu fazer pronunciamentos gravados, em cadeia nacional de rádio e TV. Os contatos com a imprensa, ou foram contatos sociais, em jantares, ou conversas rápidas, com determinados jornalistas.
Tudo controlado, tudo bem medido e ensaiado, para que nada escapasse ao controle do Palácio do Planalto.
Todos os pedidos de entrevista coletiva foram sendo adiados. Até que finalmente, marcou-se para hoje.
A semana não é das mais favoráveis. Afinal, há uma série de problemas que pedem uma explicação do presidente da República. Denúncias que atingem o ministro da Previdência Romero Jucá, problemas de articulação da base governista, relações delicadas com alguns governadores, reforma tributária parada no Congresso, estrangulamento da sociedade pelo arrocho fiscal. Tudo isto sem falar nas taxas de juros, nos problemas com a Alca, no descontentamento dos militares, na lentidão dos programas sociais.
Enfim, assunto para a coletiva não falta.
Mas o que mais choca nessa história toda é a postura do Palácio do Planalto. Ontem o presidente Lula trancou-se com o marqueteiro oficial e passou o dia ensaiando perguntas e respostas, como se estivesse se preparando para um debate de campanha eleitoral.
Durante todo o dia, os veículos de comunicação tentaram saber qual seria o formato da entrevista. Quantos jornalistas poderiam comparecer, quantas perguntas seriam feitas, se haveria réplica, se o presidente escolheria o jornalista que faria as perguntas. Mas o formato foi mantido por muito tempo em segredo, como se fosse um debate entre adversários: de um lado o presidente, e do outro a imprensa.
Isto não é bom. Revela que o Planalto pressupõe um clima de hostilidade com a imprensa, e quer evitar, ou pelo menos controlar, o livre fluxo das informações.
Jornalistas não são nem amigos nem inimigos. Apenas gostariam de ter sido informados com alguma antecedência, para pudessem se preparar para aproveitar esta oportunidade tão rara, como é uma entrevista coletiva do presidente Lula."

BLIG  Ricardo Noblat

O novo ataque ao Copom - LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS


A discussão sobre a questão dos juros no Brasil está em uma fase perigosa. A entrada em cena do presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, não pode ser desprezada pelo analista mais cuidadoso. Esse senhor já mostrou uma independência e uma visão das responsabilidades de seu cargo que podem credenciá-lo como um catalisador da oposição, até agora pulverizada, à política de juros do Banco Central. Sua proposta de ampliar a composição do Copom é muito preocupante e precisa ser levada em conta.
A política de juros do Banco Central tem sofrido, ao longo dos últimos anos, uma série de críticas de parte de analistas econômicos, lideranças do setor industrial e políticos. Embora por motivações e argumentos diferentes, o sentido comum dessas manifestações é que alguma coisa está errada com a ação do Banco Central. Não é possível que uma economia como a brasileira funcione adequadamente, com juros reais que se mantêm acima de 12% ao ano, desde o início do Plano Real.
Esse é um sinal claro de que é preciso uma discussão séria e sem preconceitos sobre a política monetária em vigor. Se o argumento puramente econômico não for suficiente para o leitor, apelo para o fato de ser o Brasil um caso único entre todas as economias de mercado do mundo. Não existe, no mundo desenvolvido ou entre as nações emergentes, um aleijão como esse. Só esse fato deveria ser suficiente para que houvesse, em nosso país, uma reflexão abrangente e serena sobre esse tema.
Mas isso não ocorre. Qualquer tentativa de levar adiante uma crítica da política monetária é recebida com pedras e acusações de defesa da volta da inflação. Sob a pecha de desenvolvimentistas, são jogados no mesmo cesto de irresponsabilidade economistas com profundo senso da necessidade do equilíbrio macroeconômico e outros sem compromisso com uma ortodoxia inteligente. Com isso, não se evolui, pois poucos se arriscam a enfrentar esse verdadeiro corredor polonês na imprensa.
Lembro-me de que, em 2000, durante encontro do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) em Fortaleza, fiz uma apresentação sobre as falhas que via no sistema de metas de inflação, em vigor no Brasil, e apontei problemas que seriam enfrentados no futuro. Mas vivíamos, então, a euforia trazida pelo controle da crise cambial de janeiro de 1999, e tais críticas foram jogadas na lata do lixo. Ainda procuro o texto dessa minha intervenção para poder publicá-lo, mas garanto ao leitor da Folha que ele está atualíssimo. A maioria dos problemas de hoje estava perfeitamente identificada no texto.
Como não conseguimos fazer uma crítica ao sistema atualmente em vigor dentro de um ambiente de racionalidade econômica, corremos o risco de fazê-lo sob o domínio da demagogia e da ignorância. O governo Lula não tem mais o escudo protetor que o cercava desde sua eleição, em 2002. As dificuldades começam a pesar na avaliação do governo, e um certo clima de revolta já pode ser identificado na imprensa, na opinião pública e nos meios políticos.
A reação contra a MP 232 mostrou que a equipe econômica não tem mais o poder de impor, sem limites, suas decisões. Nesse ambiente, um ataque organizado e com coragem contra o Copom pode prosperar e criar um clima de insegurança entre os agentes econômicos. A história nos mostra exemplos freqüentes de situações como essa. Não enfrentar a tempo questões de relevância para a sociedade, utilizando-se de instrumentos que cerceiam o debate, pode desaguar em situações críticas.
Não adianta, agora, chorar sobre o leite derramado. Creio que todos os que queremos preservar a racionalidade de nossas instituições devamos cerrar fileiras contra esse movimento do deputado Severino Cavalcanti e do vice-presidente da República. Transformar o Copom em um órgão colegiado da sociedade seria um erro de grandes proporções, como, aliás, já ocorreu com o CMN (Conselho Monetário Nacional), na época dos militares e do governo Sarney.

FOLHA DE S.PAULO