Mesmo com a entrevista coletiva de ontem, o presidente Lula está na história da democracia brasileira como o presidente civil mais avesso a essa prática comum em qualquer regime democrático. Entrevista coletiva não tem que ser um evento, é para ser rotina. É difícil saber o que ele temia, já que o formato, em que os repórteres têm o direito de fazer uma pergunta apenas, em que não pode haver réplica, favorece enormemente o entrevistado, como se viu ontem.
— Tem sempre uma primeira vez — disse ontem Lula ao iniciar sua entrevista.
Estranho é, num regime democrático, ter que esperar tanto pela primeira vez. O presidente disse que esta deve ser a primeira de uma série de outras entrevistas e afirmou saber estar em dívida com os jornalistas que pedem a ele entrevistas exclusivas:
— Talvez seja a época de fazer isso — disse.
Com o clima eleitoral antecipadamente criado pelo próprio governo, fica muito conveniente para ele passar agora a dar mais entrevistas. A estréia da nova fase foi, sintomaticamente, com uma entrevista exclusiva de 50 minutos para seus amigos da CUT.
Os governantes militares faziam exatamente como Lula fez nestes primeiros dois anos e quatro meses do seu mandato. Davam apenas entrevistas fora do país, formais, ao lado dos chefes de Estado do país visitado. Os jornalistas aproveitavam para perguntar sobre a situação interna, já que era a única hora em que os generais concediam uma abertura. Havia também naquela época — como há agora — espaço para pequenas abordagens informais. O mais fechado de todos os militares, o general Ernesto Geisel, deu certa vez uma importante entrevista ao repórter da TV Globo Geraldo Costa Manso, em Tóquio. Figueiredo se deixava abordar com certa facilidade no exterior, para irritação do seu esquema de segurança. A técnica era simples e eu mesma a usei várias vezes. Fazia uma primeira provocação, ele parava e começava a responder, os jornalistas se aproximavam e saía uma entrevista improvisada.
Lula seguiu este modelo do regime militar: fala em pequenas abordagens aqui ou no exterior, mas são conversas atropeladas com todos os jornalistas falando ao mesmo tempo. Na hora em que uma pergunta não lhe agrada, basta os assessores tirarem o presidente e tudo termina bem para ele.
Lula é, ao mesmo tempo, o presidente que mais fala e o que menos dá entrevista. Ele fala muito, freqüentemente de forma irrefletida, em qualquer cerimônia: os já famosos improvisos-escorregões do presidente. Mas resiste à pergunta, ao contraditório, à pauta que ele não determine. Curioso é que, antes de ser eleito, Lula tinha uma excelente relação com os jornalistas; nada prenunciava o presidente avesso a coletivas em que ele se transformou.
O formato das entrevistas americanas é muito melhor que o das do Brasil. Correm mais soltas, com os jornalistas disputando a atenção do presidente, sem ter essa fila toda organizadinha pela assessoria. Há quem critique porque é o presidente que escolhe quem pergunta, mas o resultado final é bem mais jornalístico. Esse triste formato brasileiro das coletivas presidenciais vem do regime militar e nenhum governo civil quis mudá-lo porque é muito cômodo para o presidente: o repórter vem com a sua pauta, o presidente dá uma resposta vaga ou insuficiente, e não há espaço para a insistência no tema tratado. Logo em seguida, vem outro repórter, com outra pauta, e assim o entrevistado vai sendo poupado das suas contradições e respostas imprecisas. Ontem, quem tentou replicar foi admoestado por André Singer.
E, assim, a entrevista ganhou cores de monólogo: um jornalista perguntou por que ele mudou. Mas, ao fazer isso, deu os exemplos do salário-mínimo e do FMI. Ele aproveitou para ir pelas laterais. Disse que o salário-mínimo é sempre baixo, teceu outras considerações sobre o tema, contou que, na década de 70, quando começou sua vida sindical, o FMI não tinha "principalidade". Mas o sentido da pergunta era por que ele mudou tanto abandonando o que sempre defendeu. Ficou sem resposta. Outra pergunta era sobre se o aumento de 23% prometido aos militares no ano passado será concedido. Lula voltou a falar dos seus tempos de sindicalista, falou da importância que vê agora nos militares e disse que vai tratar o assunto com carinho e dar um reajuste dentro das possibilidades. Ou seja, não respondeu de novo.
E foi por aí, não respeitando o sentido das perguntas. Alguém perguntou sobre o aumento dos servidores e a resposta começou no mesmo tom desviante:
— Vou lhe contar uma pequena história — disse, de novo, fugindo para os auto-referenciados tempos do sindicalismo.
O mesmo repórter perguntou pela situação do ministro Romero Jucá, ao que Lula respondeu:
— Você deve acompanhar a minha vida política e eu primo por entender que todo ser humano é inocente até prova em contrário.
Infelizmente o PT, na oposição, não era de dar aos seus adversários o benefício da dúvida.
Em outros dois momentos, o presidente mostrou desconhecer assuntos que estão na imprensa. Numa outra resposta, tentou minimizar a derrota na Câmara, para logo depois citar esse como o primeiro dos seus erros.
Os encontros com a imprensa têm que ser mais freqüentes e menos controlados. Têm que ser rotina e não evento. As entrevistas a grupos menores ou exclusivas não podem ser um prêmio aos que manifestam opiniões mais favoráveis ao governo. Não podem ser palanque, têm que ser uma das formas pelas quais governantes democráticos prestam contas à população e esclarecem a opinião pública.
O GLOBO
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