quarta-feira, abril 27, 2011

O que interessa é carne no prato e farinha na cuia - José Nêumanne

O Estado de S. Paulo - 27/04/2011

O ovo de Colombo do marketing político mundial foi posto de pé pelo
americano James Carville. Responsável pela campanha de Bill Clinton à
presidência dos Estados Unidos, ele fez o candidato movimentar os
lábios sem pronunciar a frase que atravessaria o planeta como um
mantra: "É a economia, estúpido!" No caso de nações ricas, como a
dele, a leitura labial da palavra economia lembra pleno emprego,
tecnologia de ponta, alta produtividade, etc. Mas no de países
emergentes, como o nosso, poucos desses fatores têm a importância de
um só - a inflação. A perda do valor de compra da moeda, que significa
menos proteína (e, com o passar do tempo, menos comida em geral) na
mesa do trabalhador, e o retardamento da girândola faz-vende-compra
que Fernando Henrique pôs para rodar e seu sucessor, Luiz Inácio Lula
da Silva, usou com sabedoria para evitar que o tsunami da crise
imobiliária americana chegasse a nossas praias tropicais, tornando-o
"marolas", devem ser evitados a todo custo.

O ex-presidente tucano promoveu a maior revolução social de nossa
História recente com a solução genial do Plano Real para acabar com a
deterioração do salário do operário. Ao envergar a faixa que era do
antigo aliado transformado em adversário preferencial, o petista
mostrou ter aprendido a lição ao traduzir para o "popularês" as
fórmulas sofisticadas dos economistas que elaboraram a receita mágica
da preservação do valor do dinheiro em seus inacessíveis idioletos
acadêmicos. O sucesso da economia no mandarinato petê-lulista muito se
deveu à profusão de fatores positivos nos oito anos de sua duração,
dos quais se costumam destacar a conjuntura internacional muito
favorável e o magnífico desempenho da agroindústria nacional. Nada
disso, contudo, produziria o efeito espetacular que se traduziu em
crescimento acima do esperado e prestígio político inusitado para o
chefe do governo se este não tivesse dado demonstrações firmes e
perseverantes de sensatez ao não deixar a herança do antecessor se
dissolver na balela desenvolvimentista de muitos de seus
interlocutores. Como Fernando Henrique manteve Pedro Malan, Lula nunca
permitiu que fosse perturbada a rigidez dos preceitos liberais
clássicos que conduziram sua política econômica sob a batuta de
Henrique Meirelles.

Muita gente boa (inclusive o autor destas linhas) tem manifestado
encantado júbilo com as diferenças de estilo entre a presidente Dilma
Rousseff e o patrono que a inventou, lançou e elegeu. Como Lula falava
pelos cotovelos, a boca fechada de Dilma faz soar uma melodia que nem
sequer João Gilberto seria capaz de entoar melhor. O primado dos
direitos humanos na política externa e a postura serena e digna no
convívio com visitantes estrangeiros e visitados no exterior também a
têm favorecido nessa comparação. Mas é provável que Dilma Rousseff -
logo ela, a "gerentona" impecável, a cobradora implacável - desafine
justamente na nota só do samba que sustenta a escala da economia. É
isso mesmo: a inflação. Guido Mantega, um zero à esquerda no governo
anterior, parece, de repente, ter sido deslocado para a direita;
Alexandre Tombini dista anos-luz de seu antigo chefe; e o desfile
parece descambar na desarmonia total.

O Tyrannosaurus rex da inflação dá sinais de que pode estar
despertando do sono letárgico produzido pelas doses de realismo
monetário injetadas entre suas escamas por Malan e Meirelles. Há uma
certa tendência no Ministério da Fazenda e até mesmo no novo Banco
Central a desdenhar do risco do despertar do monstro, com aquela
conversinha para boi dormir da inflação importada, produzida apenas
pelos fatores sazonais das safras agrícolas com consequências na
produção de alimentos. Por mais que o boi durma, o dinossauro
inflacionário zomba desse tipo de soporífero e já afia suas garras. O
diagnóstico da autoridade monetária é parcial, como insiste em mostrar
a coleguinha Miriam Leitão. "A economia vai bem, a inflação assusta e
a política monetária parece ter produzido pouco resultado até agora",
resumiu magistralmente o companheiro Rolf Kuntz.

De Lula podia-se dizer que não fazia, só falava. Isso não significa
necessariamente que, só por não falar, Dilma faça. Nunca antes na
História deste país houve um político profissional que falasse tanto,
embora não fizesse na mesma proporção, como o ex-dirigente sindical
metalúrgico. Parte considerável de seu êxito eleitoral nas três
últimas eleições federais, duas vitórias dele e uma de sua candidata
tirada do nada, deveu-se à sua capacidade de se comunicar com o
brasileiro do roçado, da favela, da cozinha e do quarto de empregada.

Mas de nada lhe teria esse talento notório valido se não fosse o bom
senso de não transigir quando se tratou de manter a política econômica
de pé sobre os pilares dos templos do satanizado neoliberalismo. Ele
falava de futebol, bajulava o amigo persa Mahmoud Ahmadinejad, não
dava ouvidos a quem ridicularizava suas tiradas autoindulgentes e
desdenhava de quaisquer críticas, catalogadas em seus arquivos
particulares como intrigas da oposição. E se garantiu no topo da
popularidade enxotando a golpes de pragmatismo o corvo inflacionário.
Mas trouxe-o de volta anabolizando gastos públicos para eleger Dilma
Rousseff.

Esta começou a semana dizendo: "Todas as nossas atenções estarão
voltadas para o combate acirrado à inflação". Mas de prático nada faz
para impedir que riscos de corrosão do valor da moeda rondem os lares
pobres. De acordo com a pesquisa do boletim Focus, divulgada pelo
Banco Central, a expectativa para a inflação oficial continua distante
de 4,5%, o centro da meta, flutuando de 6,29% para 6,34%.

Já é mais do que hora de ela passar de boas intenções à ação oficial,
adotando medidas que ponham de novo o monstro para dormir. Agirá muito
melhor se se preocupar menos com a Copa de 2014 e mais com a inflação:
mais valem carne no prato e farinha na cuia do que bola na rede.