quarta-feira, abril 27, 2011

A festa e a conta - Rolf Kuntz

O Estado de S. Paulo - 27/04/2011


A economia brasileira continua em festa, e a conta, naturalmente, vai
subindo. A inflação passa de 6% e pode superar o limite da banda
oficial, 6,5%. Nas contas externas, o déficit em transações correntes
bate recordes - US$ 5,7 bilhões em março, US$ 14,6 bilhões no primeiro
trimestre e US$ 50 bilhões em 12 meses. A atividade cresce, as
empresas lucram, os juros permanecem altos e a inundação de capital
estrangeiro continua. Entraram US$ 42,6 bilhões entre janeiro e março,
em termos líquidos. Esse dinheiro bastaria para cobrir quase o triplo
do déficit em conta corrente do período. O investimento direto
estrangeiro, US$ 27,3 bilhões, foi o principal componente da enxurrada
financeira. Compensaria quase o dobro do buraco nas transações
correntes. Esse tipo de investimento, em geral considerado o mais
benéfico para a economia, deve chegar a US$ 60 bilhões em 2011,
segundo o governo. Pelos prognósticos oficiais, o setor externo
continuará seguro, o ajuste interno será conduzido gradualmente e no
fim do próximo ano a inflação estará no centro da meta, 4,5%. Tudo se
arranjará maciamente e sem dor.

Seria bom viver nesse mundo imaginado pelo ministro da Fazenda e por
seus colegas de governo. Mas o gradualismo, até agora, produziu pouco
ou nenhum resultado no combate à inflação. Ao contrário: os
indicadores só pioraram desde o trimestre final do ano passado. A
inflação tem um importante componente externo - as cotações das
matérias-primas, afetadas pela quebra de safras, pela forte procura
dos emergentes e pela crise no Oriente Médio. Mas quase dois terços
dos preços têm subido, no mercado brasileiro, e esse dado só é
explicável se for levada em conta a demanda interna muito forte. Essa
mesma demanda se reflete na expansão das importações. A valorização do
real sempre afetaria as contas externas, barateando os produtos
estrangeiros e encarecendo os nacionais. Mas não há como atribuir o
desequilíbrio na conta corrente só ao desajuste cambial, quando todos
os dados apontam para um mercado interno ainda muito aquecido.

O grande influxo de capital externo produz efeitos com sinais opostos.
Permite cobrir o buraco das transações correntes. Assim se acomoda
parte do excesso da demanda interna. Sem esse fator a inflação seria
maior. Mas essa mesma enxurrada financeira mantém o real valorizado e
mina o poder de competição dos produtores nacionais, pondo em xeque a
sobrevivência não só de uma ou de outra empresa, mas de segmentos
industriais.

Apesar do amortecedor propiciado pelas importações e pelo influxo de
capitais, a inflação permanece elevada e tende a crescer. O
gradualismo adotado pelo Banco Central (BC) desde o fim do ano passado
pode ser insuficiente para a contenção da alta de preços. Aumentos
maiores de juros poderão, no entanto, atrair volumes maiores de
dólares.

Os controles de capitais produziram efeito pouco sensível até o mês
passado. Neste mês, segundo o presidente do BC, Alexandre Tombini,
entradas e saídas estão empatadas - um sinal, segundo ele, da eficácia
das novas barreiras adotadas pelo governo. Pode ser, mas será
necessário algum tempo mais para se confirmar essa avaliação. Além
disso, controles de capitais nunca produzem mais do que efeitos
temporários. Essa tem sido a lição mais comum da experiência
internacional.

Fatores externos, como o baixo nível de atividade no mundo rico e o
excesso de dinheiro nos mercados podem explicar em parte o problema
cambial do Brasil. Fatores de atração, como o crescimento econômico, a
lucratividade empresarial e os juros altos também entram na conta. Mas
o dado politicamente mais importante é outro: o Brasil entrou na
armadilha cambial bem antes da crise, por causa da teimosia de um
governo disposto a gastar demais e acostumado a deixar ao BC o custo
do combate à inflação. O real já estava supervalorizado antes do
agravamento da crise em setembro de 2008. Só se depreciou por um
período muito curto. A deterioração da conta corrente havia começado
em 2007, foi contida por pouco tempo e acelerou-se quando a demanda
interna voltou a se expandir velozmente. Os números são claros.

Para tirar o País da armadilha, o governo terá de aceitar um ajuste
fiscal de verdade, muito mais sério que esse alardeado pelos ministros
da Fazenda e do Planejamento. Mas ninguém pode acreditar numa séria
intenção de austeridade quando lê, por exemplo, o projeto de Lei de
Diretrizes Orçamentárias. Quanto ao resultado obtido pelo governo
central em março, é insuficiente para confirmar a adoção de uma nova
política. Além de uma boa dose de seriedade fiscal, o governo
precisará cuidar para valer das condições de competitividade, passando
da conversa às ações concretas. O resto é espetáculo.